Poeta meu, obedece!
Estou pronto, Senhor.
Toma bem nota, pois decidi escrever um poema.
Encho-me de alegria, Senhor, pois é bem próprio de ti exprimires-te em poesia.
Não, não vou escrever poema algum.
Tu és sábio, Senhor. Na verdade, que poema te exprimiria bem?
Cruzei-me recentemente com um dos livros do poeta Carlos Poças Falcão. Não sou propriamente um leitor de poesia e muito menos um crítico literário, e por isso estou bem consciente de que é um atrevimento tentar escrever o que quer que seja sobre um dos mais criativos poetas portugueses da atualidade. Mais do que uma crítica literária, esta breve nota deve ser entendida como uma sugestão de leitura. Sobre poesia sei pouco ou nada, mas sei, ou pelo menos intuo, que o encontro com a poesia de Carlos Poças Falcão não desiludirá.
Há já várias semanas que tenho sobre a minha mesa de trabalho o primeiro livro do poeta vimaranense, intitulado A Nuvem (Editora Opera Omnia, 2019), publicado pelo autor no ano dois mil, há vinte anos atrás, portanto. Um livro de poesia, se é verdadeiramente de poesia, nunca se esgota. Há sempre sentidos ocultos, esconderijos disfarçados, novos cumes para alcançar. Tenho a consciência de que a minha leitura desta coleção de poemas tem disso pouco mais do que um simples folhear. Não pude deixar de notar, no entanto, a insistência com que o poeta visita o tema de Deus. Surpreendeu-me a precisão com que Carlos Poças Falcão retrata a experiência humana e sempre pessoal de (des)encontro com Deus. Parece não haver dúvidas de que foi atendida a prece do poeta: «meu Deus faz de mim um poeta claro / de uma limpidez corrente».
O Deus do poeta é um Deus sempre maior, que nenhum poema pode exprimir bem e cuja vontade nunca se acaba de conhecer.
O Deus do poeta é um Deus sempre maior, que nenhum poema pode exprimir bem e cuja vontade nunca se acaba de conhecer. Um Deus que permanece a uma distância infinita, mesmo quando o seu poeta se aproxima para lhe compor o manto. Ao longo de 24 poemas, que constituem um conjunto intitulado «Diálogos ou Assentimentos», o poeta preserva com peculiar mestria a alteridade radical de um Deus que se deixa encontrar mais na negação do que na afirmação.
Em A Nuvem, Carlos Poças Falcão não se limita, porém, a percorrer em verso o caminho para Deus a que os teólogos medievais deram o nome de triplex via. O nosso poeta exibe o peculiar dom de verter em palavras a experiência da Graça. No poema que abre o «Pequeno Livro Azul», encontramos como que uma versão abreviada do Salmo 130, que nos atrai, como talvez nenhum outro, para o âmago da fé de Israel:
olhar o tecto.
respirar baixinho
estar nas mãos de Deus
A Graça não se vê e também não se ouve. A Graça intui-se. Espera-se. E quando chega, alegramo-nos com a vida que ela acende:
não se vê o que as árvores esperam
mas os botões não abrem enquanto não chegar
não há rebentos novos e os gomos não despontam
enquanto não vier
…
mas quando aparece
há festividade e mantos nupciais
homens aprendem a língua dos pássaros
árvores esquecem para sempre o ido verão
Talvez não seja exagero reconhecer em Carlos Poças Falcão um poeta teólogo, um mestre das palavras, a quem foi dado o dom de traduzir em verso a experiência de encontro com Aquele que sempre nos precede e sempre nos ultrapassa. Ou poderíamos reconhecê-lo, simplesmente, como o poeta de Deus, que arrisca uma obediência reverente Àquele que uma e outra vez lhe diz «Poeta meu, obedece!»
Num tempo como um nosso, que banaliza as palavras, vale a pena visitar os poetas, aqueles artesãos incansáveis, que têm a paciência de devolver a cada palavra a simplicidade luminosa que o nosso descuido ocultou. Boa leitura!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.