Porque é que às vezes parece ser tão dificil ser cristão? Porque é que temos a sensação que nos é pedido mais a nós que a quem não professa a fé cristã? Quantas vezes suspirámos cansados, quase derrotados pela exigência daquilo que achamos que é o que nos é pedido? Onde está essa paz tão prometida? Quando é que recebo dividendos por causa daquilo em que acredito? Onde está a minha recompensa? Aquela que me é devida por ser cristão?
No livro do profeta Habacuc, à pergunta “até quando, Senhor, pedirei socorro,
sem que me escutes?” (Hab 1, 2), Deus responde de modo meio estranho, quase cínico: “Se [a resposta] parece demorar, deves esperá-la”. (Hab 2,3). Deves esperá-la porque talvez ainda não te tenhas dado conta do que isso implica realmente. Do preço que tens que pagar pela consciência da verdadeira dimensão do seguimento de Jesus. Da constância na oração, na atenção aos sinais de Deus pelo meio das coisas da vida, na prioridade que é devida à leitura espiritual, ou do olhar espiritual que é devido às leituras de todos os dias. Tudo isso te é pedido. Jesus pede sempre um pouco de mais porque nunca pede menos que a vida. Ele aponta a essa exigência de caminho para que nos seja dada pela primeira vez a provar a doçura do ser (V. Joukovski). Aquela que talvez não exista na nossa vida neste momento, a verdadeira doçura das coisas, mais além daquela camada de açúcar superficial que mascara o verdadeiro sabor do bolo. E enquanto não percebermos isto estamos a desperdiçar uma vida que nos é dada uma só vez. Por isso insiste o Salmo: “Não endureçais os vossos corações” (Salmo 95, 8), para que o caminho seja o que é próprio do ser peregrino. Para que a tua vida não seja definida, conduzida ou pensada, profunda e espontaneamente, sem uma ligação íntima com Deus, sem estar numa ligação primordial com Ele, exposto diante d’Ele, em privado e em público, de uma maneira perceptível aquém e além de qualquer outra sensação (E. Salman). E para que enquanto caminhes “Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor” (2Tim 1,8), mas guardes a boa doutrina que te foi confiada, “com o auxílio do Espírito Santo, que habita em nós” (2Tim 1,14).
Quando lemos “o justo vive pela sua fé”, a expressão não deixa espaço para equívocos. O justo “vive” – é a palavra; não é “sustentado”, “animado” ou “fortalecido” pela sua fé. “Vive” como se a fidelidade não dependesse de nada mais que a própria vivência da fé. Como se o que estivesse no teu horizonte fosse, não a recompensa, mas o amadurecimento do coração a cada dia.
Se o Espírito Santo habita em ti, que mais se te pode dar? Que mais te pode ser prometido senão Aquele que já habita em ti. Aquele que se move dentro de ti, e que te empurra à vida, à liberdade e à esperança. E tu que tantas vezes não te dás conta disso, é justo que peças a Jesus: aumenta a minha fé? (Lc 17, 5). Ou não seria mais justo dizer: Faz-me dar conta daquilo que já vive em mim. Mostra-me aquilo que vive em mim: o amor de Deus que foi derramado no meu coração, pelo Espírito que me habita. Porque vivo como se isso não fosse verdade. Como se a fé não fosse senão procurar qualquer coisa fora, uma recompensa ou qualquer coisa distintiva que me deveria ser dada porque acredito em Deus.
Quando lemos “o justo vive pela sua fé”, a expressão não deixa espaço para equívocos. O justo “vive” – é a palavra; não é “sustentado”, “animado” ou “fortalecido” pela sua fé. “Vive” como se a fidelidade não dependesse de nada mais que a própria vivência da fé. Como se o que estivesse no teu horizonte fosse, não a recompensa, mas o amadurecimento do coração a cada dia. Que mesmo que o nosso querer seja pequeno, na pequena rotina insignificante dos dias Deus estivesse a amadurecer em nós. Como se aquilo que me é dado não fosse mais que o caminho com tudo o que acontece, na familia, no namoro, na amizade e no trabalho. Como se nessa aparente banalidade fosse chamado a viver com aquilo que já vive em mim e que sou chamado a deixar despontar. Deixar-me de desculpas e idiotices, de arrogâncias e de ideais e olhar para o que há de mais real em mim. Porque é na intimidade que se joga toda a nossa liberdade. Eu para Deus e Deus comigo. Eu ser esta coisa estranha que é ser discípulo d’Aquele que habita em mim. Rilke mostra esta intimidade de modo muito engraçado, com um poema que tem algo de ingénuo e comovedor:
Se muitas vezes te incomodo, Deus meu vizinho,
Durante a longa noite batendo à porta fortemente
É porque te oiço respirar raramente
E sei que na sala estás sozinho.
E se de alguma coisa precisares, ninguém há
Que nas mãos te deponha bebida habitual:
Estou sempre à escuta. Dá de ti sinal.
Meu ser perto está.
E talvez um dia, quando aquilo que nos habita despontar em nós, quando formos livres, possamos dizer com Paulo Le-Bao-Thim, mártir do Vietname do século XIX: No meio da tempestade lanço a âncora que me permitirá subir até ao trono de Deus: a esperança viva que está no meu coração.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.