Cabeça arrumada

Essa é a grande revolução do método, com uma aposta inédita na transparência – conceito nunca cumprido da política moderna – que nos lembra afinal para que serve termos tudo à vista.

O que tem Marie Kondo, a “guru da arrumação”, a ver com a política? Talvez pouco, se considerarmos a política como uma actividade nobre, elevada; um meio pelo qual o bem comum é cumprido e em que o interesse público é salvaguardado, acima de qualquer interesse pessoal ou privado. Acontece que a ideia que temos habitualmente da política é mais parecida com um lamaçal, um “pântano”, embora a palavra seja demasiado guterrista para o meu gosto. Ou com um ringue de boxe (em vez de um debate) ou com uma repartição (em que a burocracia é infernal). Perante este cenário que de elevado não tem nada, é natural tanta abstenção.

A parte desprestigiada da política, que é precisamente aquela que se ocupa do bem comum, tem demasiada atenção nos dias de hoje, como a constatação masoquista de uma desilusão. Esquecemo-nos do aspecto ético, que se ocupa da felicidade individual, como parte fundamental de uma comunidade saudável. Prefiro que pensemos na política como uma casa cheia de tralha, mas não como um caso clínico de acumulação de coisas sem critério. Estes casos, avisa Marie Kondo, no seu livro “The Life-Changing Magic of Tidying”, publicado em 2011, não dispensam a consulta aos especialistas de bata branca. Os outros podem ser resolvidos com a leitura e correta aplicação do método. Haja esperança.

O método KonMari existe para ser aplicado na casa de cada um, mediante escolhas pessoais e hedonistas, segundo as quais deitamos fora o que não nos agrada e guardamos os objetos, as peças de roupa, os livros, os utensílios de cozinha que “queremos ver no nosso futuro”. O livro não será em última análise sobre arrumação, mas sobre como podemos orientar a nossa vida sob um princípio que é ao mesmo tempo hedonista e estóico. Hedonista porque estamos focados naquilo que nos dá prazer e estóico, porque há poucas coisas que queremos manter na nossa vida. Nesta conciliação curiosa entre despojamento e egoísmo existe a felicidade de não termos de nos preocupar com mais nada a não ser com a alegria de nos rodearmos de escolhas nossas, que são poucas, precisas e verdadeiras.

Críticos de Marie Kondo acusam-na de acentuar os estereótipos de género, mas o método não podia ser menos feminino. Se gosto de uma camisola, fico com ela; se não gosto, agradeço-lhe (sim, à camisola) e posso doá-la a uma instituição ou oferecê-la a alguém.

Críticos de Marie Kondo acusam-na de acentuar os estereótipos de género, mas o método não podia ser menos feminino. Se gosto de uma camisola, fico com ela; se não gosto, agradeço-lhe (sim, à camisola) e posso doá-la a uma instituição ou oferecê-la a alguém. Este gesto simples de escolha individual baseado estritamente num gosto idiossincrático não é tradicionalmente feminino. Sabemos que a história está repleta de mulheres a quem tudo foi imposto.

O método que a japonesa Marie Kondo inventou, e que surge de uma preocupação em resolver um problema desde criança (arrumar o quarto), é uma revolução em vários aspectos. Não é preciso pensar sobre aquilo de que gostamos. Basta agarrarmos numa camisola, numa moldura, num copo e sermos sinceros sobre o que sentimos quando nos concentramos numa coisa. O ritual parece ridículo, mas não é mais do que uma forma de atenção particular a um objecto e que nos faz perceber se o queremos ou não.

Se nos despertar alegria (“spark joy”), devemos preservar o objecto. Para o método KonMari, pensar demais não é a maneira certa de proceder. Podemos sentir culpa de nos livrarmos de alguma coisa que nos ofereceram, mesmo que não gostemos do presente. Num breve capítulo do livro intitulado, “Uma ligação ao passado ou ansiedade acerca do futuro”, é explicada a dificuldade de nos livrarmos de certas coisas, como por exemplo, de coisas que nos ofereceram. Marie Kondo compreende, mas aconselha a livrar-se do que não lhe suscita alegria. Agradeça a todos e despache o objecto indesejado.

Há razões práticas para o método KonMari. O espaço habitável é exíguo no Japão. E não há tempo para estar sempre a arrumar a casa, por isso há que organizar as coisas de modo a estarem sempre à vista. Essa é a grande revolução do método, com uma aposta inédita na transparência – conceito nunca cumprido da política moderna – que nos lembra afinal para que serve termos tudo à vista. Para nos lembrarmos do que temos. E é por causa dessa lembrança permanente que sabemos que não precisamos de arrumar mais.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.