Big Brother is watching you

O Estado Educador e a Agenda 2030 para a Educação Global da UNESCO.

Nineteen Eighty-Four, de George Orwell (1948), é uma prefiguração surpreendente do mundo actual. No futuro ali descrito, pensar e contestar é crime, e todas as pessoas estão sob vigilância da autoridade. Que impõe constantemente aos cidadãos a frase propaganda do Estado: Big Brother is watching you. 

Big Brother é na intriga a personagem mais sinistra, o líder máximo de uma sociedade totalitária, que se faz omnipresente nas câmaras que vigiam os seus cidadãos 24 h por dia, até mesmo dentro de casa.  Somos introduzidos naquele mundo fictício através de Winston, um funcionário público que trabalha no Departamento de Documentação do Ministério da Verdade e cuja função é “corrigir” todos os registos históricos a fim de os adequar aos interesses do Big Brother do presente, o qual “nunca erra”. Mas essa é apenas uma ferramenta de controle, que se soma à Polícia das Ideias e à reinvenção da própria linguagem.

Como resultado desse exercício diário, os cidadãos vão perdendo a identidade. Não conseguem lembrar-se de nenhum detalhe do passado, não têm referências para contestar a sua situação actual, nem consciência de que o podem fazer.

Mesmo quem não leu o livro é capaz de reconhecer na  imaginação do autor realidades hoje banais. As teletelas, potenciadas pelo avanço tecnológico e científico de hoje, estão em todo o lado a enviar mensagens e a controlar-nos. A linguagem ganhou novos termos, palavras antigas mudaram de sentido e ganharam novas acepções, sugerindo que desse modo a realidade também mudou.[1]

Além disso, a política de educação a que assistimos é também cada vez mais autoritária. O ponto de viragem simbólico foi o fim das escolas com Contrato de Associação, fruto da ideia de que só o Estado pode exercer ensino público (e as Universidades?). Com essa medida, o Estado afirmou-se o único Educador. Assim, teremos estudantes standard, a receber a mesma informação e os mesmos ensinamentos e a acreditar no mesmo programa axiológico.

As medidas reeducativas vão aliás crescendo fora da escola: é a taxa sobre os produtos açucarados, é o plástico dos sacos e pic-nics, e até o número de filhos com que as famílias ameaçam poluir o planeta.  Usar plástico é mau. O Estado combate o mal, e assim educa os cidadãos para o bem. O Estado entende que fumar é mau; por isso proíbe a venda do tabaco nas escolas (enquanto distribui preservativos). Big Brother is watching us!

Como compreender que um Estado que proclama a neutralidade em relação aos valores religiosos e éticos imponha, afinal, a sua ética?

Para o nobre objectivo de proteger o planeta, o Estado promove comportamentos éticos e dissuade os cidadãos de comportamentos não éticos. E para o nobre objectivo de combater o ódio e a discriminação, fomentam-se observatórios para os fenómenos de intolerância e racismo. Não há dúvidas de que qualquer forma de violência física ou verbal tem de ser combatida, mas a verdade é que qualquer tomada de posição sobre uma preferência sexual, ou sobre questões de soberania ou de imigração, ou sobre a defesa da família natural passou a ser considerada “discurso de ódio”. Quando o próprio Estado não só impede de falar como exige uma determinada forma de pensar, está a assumir o papel do Big Brother. Big Brother is watching us!

Como compreender que um Estado que proclama a neutralidade em relação aos valores religiosos e éticos imponha, afinal, a sua ética?

É que um Estado que não reconheça valores objectivos, anteriores a si mesmo, fica completamente livre para impor os valores que lhe convêm. Se não há valores objectivos e inalienáveis, então os valores do Estado tornam-se, esses sim, absolutos e inalienáveis.

O Estado neutro em relação aos valores só pode ser relativista. Mas o mesmo relativismo que faz com que todos os valores sejam iguais, também faz com que haja um só valor absoluto: o do Estado. A expressão “ditadura do relativismo” cunhada por Bento XVI não é só um jogo de palavras. O resultado do relativismo é a ditadura, erguida à custa dos sucessivos “ministérios da verdade”.

Um Estado neutro só pode impor a Neutralidade, que é a sua verdade absoluta. E como educar cidadãos para a neutralidade? Educando-os na tolerância para com tudo, excepto para com aqueles que fazem juízos de valor. Esses são acusados de ódio.

Nas escolas, a “Educação para a Cidadania” é outra longa manus do Estado Educador, a “promover comportamentos cívicos e mudar hábitos sociais”. É fácil imaginar os conteúdos ensinados. Todos estão ao serviço da ideologia assimilada pelo poder em exercício: os direitos (desde logo os “novos direitos” sexuais e reprodutivos), a igualdade dos diversos tipos de família, os idealismos ecológicos de Greta (a heroína que preteriu a escola), a cidadania global, a protecção das culturas primitivas, o novo racismo dos que querem a imigração regulada, e até a educação financeira, para fazer dos cidadãos… consumidores perfeitos.

Sendo o Estado o sujeito Educador, ele mesmo fornecerá os programas e professores – como se a Educação para a Cidadania fosse uma espécie de “religião cívica”, apta a gerar convicções funcionais, isto é, úteis à coesão social sob o poder estatal. Num Estado que se reconhece como única fonte do Direito, da moral pública e da educação cívica, não há lugar para outros sujeitos educadores que não sejam produto do seu próprio “Ministério da Verdade” (G. Orwell, 1984). Daí o monopólio estatal da educação.

A não ser que haja um poder acima deste, de ambições internacionais, como são os programas da UNESCO. No âmbito da Agenda 2030 para a Educação Global, a UNESCO publicou as suas “Orientações Técnicas Internacionais de Educação em Sexualidade”. Nelas, o papel dos pais é enfraquecido e, em alternativa, já se propõe que os filhos indiquem “adultos de confiança”, cujo perfil coincide com o daqueles mesmos peritos que propõem às escolas os mais controversos programas de educação. É outra mutação do vírus Big Brother, ao mais alto nível.

Quando a Igreja convocou para 14 de Maio de 2020 um encontro mundial para promover o «pacto educativo global», deu sinal de acolher (ao menos em parte?) essa agenda. Salvas as devidas distâncias, confesso que não pude deixar de me surpreender com a semelhança da linguagem da Agenda da Unesco e das palavras da convocatória para o encontro.

Seria muito pobre uma educação católica que ficasse reduzida à cidadania global. A educação católica define-se pelo serviço da Boa Nova (Euangélion) de Jesus Cristo, ou antes da “Boa” Nova-Ordem-Mundial? O Cristianismo ainda tem uma proposta a oferecer à humanidade, ou dará lugar a um ambientalismo panteísta, conduzido por mais uma ONG cada vez mais descaracterizada? Big Big Brother is watching us…?

[1] Só o Big Brother da ficção de Orwell foi superado pelo Grande Irmão da realidade. O autor não podia antever o gosto actual pela exploração do privado e o exibicionismo (dos reality shows mas também de certos usuários do Youtube e das redes sociais) por parte da mesma sociedade que vive obcecada pela Lei de Protecção de Dados.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.