Vou aventurar-me num tema assumidamente polémico e talvez demasiado abordado, sobretudo nos últimos tempos. E assumo, desde já, que quando um tema é polémico, o seu tratamento tem de se configurar de forma adequada, ou seja, não pretendendo desfazer a polémica. O que significa, por outro lado, não pretender que apenas umas das posições da polémica tenha a razão total. Da minha parte, em nada me repugna poder não ter razão naquilo que vou dizer. Mas arrisco a palavra, mesmo assim.
É sabido que uma das razões fundamentais para que o cardeal Joseph Ratzinger tenha escolhido o nome de Bento para o exercício do seu ministério como bispo de Roma foi o significado da figura de S. Bento para a história e a identidade europeias. Decisão profundamente coerente, a vários níveis. Também na dimensão da sua abordagem teológica, que no seu caso é talvez a mais significativa, pois foi reconhecidamente um papa teólogo. Mas qual o perfil principal da sua teologia? E terá conseguido ser também um teólogo papa? Se é certo que a sua perspetiva teológica – que aqui interpretarei apenas a partir da ligação simbólica ao nome escolhido – marcou profundamente o seu exercício do papado (mais numas intervenções que noutras), será que o exercício desse ministério teve impacto nessa perspetiva? Tendo em conta esta dinâmica, como situar a sua teologia – se é que uma obra teológica pode ser considerada propriedade do seu autor?
É sabido que o jovem teólogo Joseph Ratzinger acompanhou com entusiasmo as principais transformações da denominada Nouvelle Théologie, que desembocaram na elaboração de grande parte dos textos do Concílio do Vaticano II, sobretudo da Dei Verbum e da Lumen Gentium. Também é sabido que essas transformações se inspiraram numa forte recuperação da teologia patrística e da teologia bíblica. Por isso, não foram puras invenções da modernidade. Mas permitiram uma aproximação positiva aos tempos modernos.
A questão da historicidade da fé, assim como a conceção relacional da realidade, sobretudo dos humanos, estiveram no cerne da elaboração teológica de Ratzinger e também do Concílio. Com base nessa perspetiva, recusou outras abordagens do seu tempo, nomeadamente na Alemanha, em que sobressai sobretudo certa inspiração marxista (como foi o caso da Teologia Política); também se articulou polemicamente com certas perspetivas de Cristologia – que, aliás, pretendiam afirmar a dimensão da historicidade – e certas críticas ao modo diríamos que “eurocêntrico” – ou mesmo “romocêntrico” – como se pensava a eclesiologia. As primeiras tensões podem representar-se na relação polémica com Johann Baptist Metz e as segundas com Hans Küng.
Interessantemente, essas perspetivas vieram a alimentar orientações teológicas produzidas fora da Europa. O que talvez seja um indício de que a vinculação entre a teologia de Ratzinger (e em parte de Bento XVI) e a Europa seja algo significativo. Mas a Europa dos últimos séculos não pode separar-se de um processo complexo a que se convencionou chamar modernidade. O que torna a nossa questão ainda mais emaranhada, pois a relação de Ratzinger com a modernidade europeia é talvez mais ambivalente do que com a identidade Europeia (se é que existe uma). Visto numa perspetiva algo fundamental e talvez simplista, ele apresenta uma leitura otimista da relação entre fé e razão, incluindo nessa relação uma possível articulação entre fé e ciência. Nisso, corresponde à leitura otimista que o Concílio do Vaticano II fez da modernidade.
Mas temos de reconhecer que a mesma modernidade nem sempre corresponde a essa leitura otimista, ou porque desenvolveu um conceito unilateral e problemático de razão, ou porque nem sempre compreendeu o lugar da fé. Nesse sentido, Ratzinger é, ao mesmo tempo, moderno e crítico da modernidade. O que é difícil de avaliar é o sentido preciso da sua crítica à modernidade. De facto, esta parece não se orientar no sentido de uma superação da modernidade, por exemplo enquanto superação do seu eurocentrismo e dos modelos demasiado binários e redutores a que deu origem. Antes parece recuperar paradigmas tendencialmente pré-modernos, nomeadamente os que se têm inspirado na teologia agostiniana – sem que possa ser identificado diretamente com posições tradicionalistas radicalmente pré-modernas, mais adversas a reconhecer o lugar da razão. Seja como for, certa crítica à matriz demasiado moderna da identidade europeia não significou, na teologia de Ratzinger, libertação em relação à sua tendência eurocêntrica, pelo menos implicitamente.
Ao mesmo tempo e quase paradoxalmente, a sua colagem a uma modernidade otimista relativamente à articulação entre fé e razão acaba por se enquadrar numa leitura fortemente eurocêntrica de uma e de outra, através de paradigmas de compreensão do real que marcaram muito de perto o percurso do pensamento europeu, o que o torna “demasiado” moderno. Só que esses paradigmas, fortemente antropocêntricos e bastante redutores no espectro da pluralidade das compreensões, há bastante tempo que são questionados pelo pensamento decolonial e pelas denominadas “epistemologias do sul”, que entretanto começam a ser levadas muito a sério também na Europa.
Isso coloca em ebulição a pretensão de que estamos todos a falar da mesma coisa, quando falamos da relação entre fé e razão. O que significa que a correta valorização da articulação que a teologia de Ratzinger – e de grande parte das intervenções de Bento XVI – faz entre fé e razão, contra todos os fundamentalismos fideístas ou imunitários, não entra ainda na discussão das formas como podemos compreender uma e outra, pressupondo que possuem uma significação unívoca. Talvez as intervenções do Papa Francisco – que alguns consideram completamente diferente de Bento XVI – sejam o indício de que, sem se abandonar essa articulação fundamental, ela possa ter configurações muito diferentes, sobretudo se levarmos em conta o seu perfil europeu e os perfis extra-europeus. Ou seja, o discurso de um papa não europeu – e não europeizado, como acontece com muitos eclesiásticos não europeus – alerta-nos para uma maior complexidade da questão, e não para falsas alternativas, nem entre os papas, nem entre doutrinas, nem entre continentes.
Significa tudo isto que estamos perante um conflito de civilizações? Não me parece. Porque a própria Europa precisa de se transformar, na articulação com o diferente de si, e pensar a sua identidade precisamente como não-identidade fixa e pré-definida. Aliás, os nomes dos dois últimos papas são disso expressão. Se a referência a S. Bento evoca esta relação forte com a tradição europeia – o que implica uma relação com os seus valores, mas também com os seus problemas – a referência a S. Francisco, também ele europeu, evoca a possibilidade de explorar um outro perfil da Europa, eventualmente mais exposta ao seu exterior e menos senhora de si e dos outros.
Embora com alguns limites, atrevo-me a sugerir que as encíclicas de Bento XVI já deixam antever essa outra postura. Elas corresponderão, de facto, à alteração que se deu entre o perfil do teólogo e do prefeito romano, e o perfil do bispo de Roma, incumbido de uma tarefa global, não exclusivamente europeia. Nesses escritos, revela-se mais um teólogo papa do que um papa teólogo. Nesse sentido, preparam o acolhimento de uma voz, no interior do papado, que já não vem explicitamente da Europa. Tudo isto não significa o fim da Europa, mas apenas o fim do seu predomínio e o fim de um determinado lugar na pluralidade das culturas. Mas pode significar o início de uma nova missão também para a Europa, em articulação fértil com os diferentes de si.
Essa será sempre a missão universal ou católica de todo o cristão, cuja identidade é a exposição ao diferente de si mesmo e não a posse de um conjunto de propriedades claramente definidas. Somos enviados ao mundo, não somos senhores do mundo, a partir de um terreno previamente definido e eternamente seguro. Assumir a vulnerabilidade dessa situação – que corresponde à vulnerabilidade da própria humanidade – é algo que é mais difícil de identificar na teologia forte de Joseph Ratzinger, mesmo como cardeal, e que o seu desempenho do ministério petrino, talvez mais em atos do que em palavras, deixou bem explícito, até ao trajeto final da sua existência. Para ser sincero, entre o teólogo e o papa, por mais que admire a sua teologia, prefiro o papa, pois promete ser teológica, eclesial e existencialmente mais fértil. Mas isso é uma opinião pessoal…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.