Barbaridades

Se um bispo, ou superior religioso, sabe que um padre ou frade, sob a sua jurisdição, tem comportamentos pedófilos, tem de o denunciar de imediato às autoridades civis, instruir o processo canónico e impedir qualquer reincidência.

Conta-se que um furioso anticlerical tinha, como ideal, enforcar o último padre com as tripas do último bispo. Não logrou levar avante tão generoso plano, mas deixou numerosa prole, que comunga dos mesmos piedosos sentimentos.

O abuso de menores por sacerdotes é horrível e, portanto, ainda bem que foi a seu tempo denunciado pela imprensa e a própria Igreja tomou medidas drásticas para a sua definitiva erradicação. A Santa Sé já adoptou as normas pertinentes, que estão a ser aplicadas em todas as dioceses católicas do mundo, graças a Deus. A tolerância zero é uma realidade que está a dar resultados muito positivos: há quinze anos que, em muitas dioceses norte-americanas, já não há denúncias de abusos de menores por padres. É verdade que a crise de confiança no clero e na Igreja deixou marcas profundas, mas a forma decidida como a hierarquia enfrentou este escândalo permite crer que muitos voltaram a sentir que a Igreja católica é um local onde as crianças estão seguras e são respeitadas.

Mas há quem ainda não esteja satisfeito. Parece ser o caso de Bárbara Reis que, em “O milagre de Portugal sem padres pedófilos” (Público, 22-3-2019), se insurge contra as poucas denúncias de abusos de menores por presbíteros católicos porque, tendo em conta as numerosas queixas de membros do clero de outros países, não lhe parece crível que em Portugal se registem tão poucos casos. Uma tal situação levou-a a suspeitar de que os padres pedófilos portugueses estejam a ser protegidos pelos seus bispos portugueses: “passaram mais de 30 anos e a igreja portuguesa mantém a atitude mais cómoda: não faz nada. O resultado é este faz-de-conta que somos um país onde a pedofilia na igreja começou e acabou no padre Frederico Cunha e pelo meio houve meia dúzia de ovelhas negras”.

É muito esclarecedora a informação prestada pela ex-directora do Público: “na Austrália, a igreja anglicana recebeu 1115 denúncias de abusos sexuais com crianças cometidas por 569 padres nos últimos 35 anos”. Mas, se os abusadores eram ministros da igreja anglicana australiana, não são padres, mas pastores, o que tem alguma relevância para o caso. Com efeito, costuma-se dizer que o celibato dos padres explica, em parte, os abusos de menores pelo clero católico mas, pelos vistos, o facto de os pastores anglicanos serem casados na sua esmagadora maioria não quer dizer que sejam menos prevaricadores: 1115 denúncias de abusos sexuais, cometidos por 569 pastores, durante 35 anos e no mesmo país é, certamente, mais do que o verificado em relação aos padres católicos na Austrália, nos Estados Unidos, na Irlanda ou no Chile.

Bárbara Reis refere 1115 denúncias, mas decerto nem todas eram verdadeiras, nem deram lugar a condenações em sede judicial. É pena que não refira esse número, que seria o verdadeiramente relevante, como é óbvio. Pode ser que não saiba, mas também pode ser que não interesse reconhecer que a maioria das denúncias não tem fundamento, nem resultam em condenações.

Entende Bárbara Reis que, em Portugal, tem de haver, por força, muitos casos de abusos de menores por padres, mas que são os bispos que não querem que se abra o baú, porque “sabem que está cheio de esqueletos”. Faz então uma digressão pelo antiquíssimo e tristíssimo caso do Padre Frederico Cunha. Bárbara Reis tem toda a razão quando se insurge contra o modo como foi conduzido este caso: este padre brasileiro nunca devia ter sido admitido na diocese do Funchal e, depois de comprovada a sua tendência para a pedofilia com reiterado abuso de menores, deveria ter sido de imediato afastado do ministério sacerdotal e proposta a sua demissão do estado sacerdotal. Não foi isso que aconteceu e o desfecho do caso foi de todos conhecido: condenado a 13 anos de prisão efectiva, aproveitou uma saída precária para regressar ao Brasil, onde vive desde então, encontrando-se portanto fora da jurisdição dos sucessivos bispos da Madeira, bem como do núncio apostólico em Portugal. Sem querer branquear o caso, importa contudo esclarecer que, se o mesmo acontecesse na actualidade, não teria sido tratado com a ligeireza verificada, pois teria motivado a denúncia, pelas autoridades eclesiásticas competentes, de Frederico Cunha às autoridades civis e a sua demissão do estado clerical.

A ex-directora do Público surpreende-se com o facto de não ser conhecida nenhuma denúncia de abuso de menores em relação a nenhum dos 400 padres do patriarcado de Lisboa, nem da Companhia de Jesus em Portugal. Seria de esperar que a ausência de denúncias de casos desta natureza entre o clero do patriarcado de Lisboa e os religiosos da Companhia de Jesus fosse um motivo de regozijo e não de crítica.

O facto desta jornalista se insurgir contra os sucessivos bispos do Funchal, desde D. Teodoro Faria, até ao actual, D. Nuno Brás, sem esquecer o seu antecessor na sede episcopal madeirense, D. António Carrilho, agora emérito, levanta uma questão pertinente: a da responsabilidade dos pastores em relação aos crimes de abusos de menores praticados por sacerdotes seus subordinados. A recente condenação do Cardeal Barbarin, por não ter denunciado às autoridades civis a prática de actos de natureza pedófila cometidos por sacerdotes ao seu serviço na diocese francesa de Lyon, dá ainda mais pertinência ao tema. Parece agora evidente que, se um bispo ou superior religioso, sabe com suficiente certeza que um padre ou religioso pratica actos desta natureza infame, não só o deve afastar de qualquer contacto com possíveis vítimas, como também está obrigado a denunciá-lo às competentes autoridades policiais e judiciais. Mas, esta obrigação é extensiva a todos os superiores hierárquicos em relação a todos os seus funcionários?!

Um exemplo por demais conhecido: um muito popular locutor televisivo foi condenado por abuso de menores da Casa Pia. Se era jornalista de uma televisão, porque razão o presidente dessa instituição o não denunciou? Ou o director de programas? Por o não terem feito, foram coniventes com os crimes do locutor? Era ele o único pedófilo nos meios de comunicação social em Portugal? Nas outras televisões, rádios e jornais não há mais pessoas que tenham abusado de menores? Por que razão nunca nenhum director de um meio de comunicação social portuguesa, que se saiba, nunca denunciou nenhum jornalista por abuso de menores? Será que, não obstante esse caso, há que registar o milagre de Portugal sem jornalistas pedófilos?

Sejamos claros: com certeza que, se um bispo, ou superior religioso, sabe que um padre, ou frade, sob a sua jurisdição, tem comportamentos pedófilos, tem de o denunciar de imediato às competentes autoridades civis, instruir o correspondente processo canónico e impedir qualquer hipótese de reincidência no crime. Mas não se pode pretender que todos os bispos, directores dos jornais, ou empresários, se transformem numa espécie de detectives dos padres, jornalistas ou funcionários, sob pena de serem encobridores.

Haja bom-senso. Não se inventem esqueletos onde os não há. Os que há chegam e sobram, infelizmente, pois não devia ter havido nem um caso sequer e houve muitos, infelizmente. A Igreja já fez o que tinha a fazer: reconheceu humildemente a sua culpa; reparou, na medida em que era possível, os danos causados às vítimas e às suas famílias; e puniu os culpados.  Agora, mais do que olhar para trás e atirar pedras contra a Igreja por coisas que, graças a Deus, são já do passado, construa-se com essas pedras uma muralha que proteja os menores, para que a tolerância zero, que já se pratica na Igreja católica, seja também uma realidade nas outras igrejas e na sociedade civil.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.