Quando falamos em escuteiros sabemos imediatamente quais são as primeiras imagens que vêm à cabeça de quem nunca pertenceu ao movimento: jarreteiras (aqueles berloques coloridos que combinam com o lenço e que cada escuteiro tem preso às meias da farda)! A esta ideia junta-se, não raras vezes, a das rifas – é mesmo verdade e eu falei com várias pessoas que mo confirmaram – que são vendidas por miúdos fardados de lenço colorido ao pescoço. O que me levou, naturalmente, a fazer uma pergunta: é só isto que o escutismo deixa na sociedade portuguesa? Rifas e jarreteiras?
Primeiro, vamos aos números: há, atualmente, mais de 40 milhões de escuteiros em todo o mundo. Em Portugal, há cerca de 73 mil pessoas inscritas no Corpo Nacional de Escutas (CNE), o que faz dele o maior movimento juvenil do País. Isto significa, em números redondos, que o Estádio da Luz não seria suficiente para receber todas as pessoas que “estão no ativo”, atualmente. E uso a expressão entre aspas porque se há coisa que se torna evidente quando se passa pelo escutismo é que é impossível deixar de o ser (não se espantem, por isso, se ouvirem pessoas a dizer “escuteiro uma vez, escuteiro para sempre”. É algo que se aprende desde que se entra e que nos acompanha pela vida fora).
Mas se os números atingem esta dimensão, volto a fazer a pergunta: pode o escutismo ser reduzido a jarreteiras e rifas? É claro que poderia dizer-vos já que não, fazendo toda uma exposição sobre os meus anos de escuteira, e sobre como acredito que eles moldaram a pessoa que sou hoje, a forma como encaro a vida, esta necessidade de deixar o mundo melhor do que o encontrei. Depois achei que o melhor seria ir perguntar a outros escuteiros. Depois, melhor ainda, achei que era bom perguntar também a quem nunca o foi.
E apesar de não ter sido uma surpresa, acabei por ser surpreendida. Primeiro porque constatei que jarreteiras e rifas não são as únicas coisas de que as pessoas se lembram – apesar de serem, realmente, as principais. Perguntei a um conjunto de amigos não-escuteiros qual a primeira ideia que lhes vinha à cabeça quando ouvia a palavra escutismo e as respostas multiplicaram-se: União. Natureza. Crianças. Convívio. Crescimento. Acampamentos. Disciplina.
Depois decidi subir a parada e perguntar-lhes se reconheciam algumas características comuns nas pessoas que conheciam e que sabiam ser escuteiras. E aqui a minha sensação de há anos ganhou confirmações – totalmente empíricas, naturalmente. A que foi comum a todas as respostas foi o altruísmo ou consciência social. “Preocupam-se com o outro, tentam perceber de que forma o conseguem ajudar, e desse modo contribuir – mesmo que a uma pequena escala – para o bem maior”, resumia o António.
Depois a preocupação com a natureza, a disciplina, o elevado sentido prático e talvez as que me tenham surpreendido mais – por serem notadas por terceiros – ética e valores morais. E note-se que estamos a falar de características comuns e não exclusivas. Isto significa que é óbvio que não é preciso ser-se escuteiro para as ter, mas quem é, raramente as não tem.
Decidi, então, falar com escuteiros. E perguntar-lhes se acreditam ser pessoas diferentes devido ao CNE. Só obtive respostas afirmativas. “Sou o que sou por ser escuteira quase desde que nasci. A frase de BP “Deixar o mundo um pouco melhor que o encontrámos” norteia sempre o meu dia-a-dia”, respondeu-me a Dóris sem hesitar. A Luísa, por seu lado, atirou um “sem dúvida. Ganhei consciência ambiental e social. Além disso, o facto de trabalhar em equipa por um objetivo comum, por vezes em condições adversas, privação de sono, cansaço, frio, etc ensinou-me a ser mais paciente e tolerante com os outros e as suas necessidades”.
O Tiago afirmou perentoriamente que seria uma pessoa “muito diferente” porque se tornou “mais seguro, independente e respeitador”.
Quis saber, então, que características acreditam ter sido mais impactadas pela experiência escutista. E as respostas foram claras: quase todos referiram o respeito pelas instituições ou hierarquias, o respeito pela natureza e pelo próximo, o espírito de equipa e a capacidade de lidar com adversidades.
Chegados aqui, podemos fazer um primeiro balanço positivo: aquilo que o escutismo ensina, aquilo que os escuteiros acreditam que lhes foi moldado dentro do movimento, são características claramente visíveis para quem com eles se cruza.
Impacto social e económico
Pedi então aos amigos escuteiros que partilhassem comigo as memórias que guardam com mais carinho desta sua caminhada escutista. João V. por exemplo, recorda “a forma como os mais velhos nos estimulavam na Fé (lembro-me de uma Missa celebrada para lá das 2h da manhã em Cós – Alcobaça quando era lobito em que o extremo cansaço e o sono não impediram que até hoje me recorde com muitas saudades dessa noite de Oração)”. Se tivermos em conta que João foi lobito há qualquer coisa como 20 anos, a memória ganha mais importância.
Posso, com alguma segurança, resumir as restantes memórias que foram partilhadas em três grandes grupos: as amizades para a vida, o contacto com a Natureza e o aprofundamento da fé. Que é como quem diz, todos os escuteiros com quem falei conseguiram trabalhar um conjunto de características importantes que se mantêm ao longo da sua vida pessoal e profissional, que são reconhecidas por quem com eles (connosco) se cruza e que as considera positivas, e tudo isto através de um caminho recheado de memórias de… aventuras, acampamentos e amigos. Não me parece mal. Decidi, então, dirigir uma mesma pergunta a escuteiros e não escuteiros: acham que o escutismo tem impacto na sociedade?
A esmagadora maioria [que é como quem diz, todas as pessoas menos uma] respondeu-me que sim – ainda que haja quem defenda que podia ter mais, ativamente – mas a resposta do João M. resumiu aquilo que me levou a pensar escrever este texto, em primeiro lugar. “O escutismo tem que ter impacto na sociedade já que é tão fácil encontrar alguém que já foi escuteiro. Isso quer dizer que o movimento ajudou no crescimento e desenvolvimento de milhares de adultos da sociedade portuguesa, para a qual contribuem todos os dias. É impossível a sociedade não ser, de alguma forma e ainda que intangível, impactada por isso”.
Há cerca de seis anos, um estudo indicava que o trabalho desenvolvido por cada adulto pertencente ao CNE – os dirigentes – valeria 3 500 euros/ano, o que representava um impacto de 48 milhões de euros na economia nacional. Na altura havia mais de 14 mil dirigentes inscritos no CNE, sendo que esse número desceu para os 13 mil atualmente, segundo a página do Corpo Nacional de Escutas. As contas foram feitas tendo por base o número de horas que em média cada um dedica ao movimento (10 horas semanais) e os mapas do valor/hora do Ministério do Trabalho, explicava na altura o Jornal de Notícias [1]. Um impacto económico, tangível que se junta aos mais intangíveis.
Mas por que razão estou eu a falar disto?
Porque, no outro dia, vi duas pequenas exploradoras (com idades entre os 11 e os 14 anos) a perguntar a uma senhora que passava na rua se ela queria comprar uma rifa. Rapidamente, a senhora afastou-se com a filha (com idade para ser exploradora) pela mão, atirando um seco não como resposta. Quando a filha lhe pergunta por que não quer comprar as rifas, a mãe respondeu prontamente: “porque eu não tenho que lhes dar dinheiro para ir passear”. E de repente, tornou-se claro para mim que era importante mostrar que o escutismo é muito mais do “ir passear”:
Que é durante esses passeios e esses acampamentos que se aprende a trabalhar em equipa, aprendendo desde crianças a importância de cumprir as responsabilidades que nos são atribuídas, e sabendo que toda a equipa (bando, patrulha, clã) sofrerá se o não fizermos. Que é durante esses passeios que nos apercebemos dos nossos limites, e de que eles não são, a maior parte das vezes, iguais aos dos outros.
Que é durante esses passeios que aprendemos a gerir os nossos medos, as nossas inseguranças, as nossas faltas de generosidade. Que é durante esses passeios que nos tornamos independentes, rápidos a pensar e a agir, sabendo que temos como missão “proteger o mais fraco” e deixar o mundo melhor do que o encontrámos.
Que é durante esses passeios que aprofundamos a nossa fé, sozinhos e em grupo. Que é durante esses passeios que crescemos na vida espiritual, porque acompanhados por pares que vivem as mesmas dúvidas e inquietações, que buscam as mesmas perguntas e que estão dispostos a acompanhar-nos no caminho.
É também durante esses passeios que fazemos voluntariado, que conhecemos pessoas que nos ensinam o mundo, que aprendemos “a amar o mundo”, diz o João V., que aprendemos a tolerância, a alegria de ser diferente.
Por isso, no fundo, este texto é um pedido disfarçado: da próxima vez que disserem não a um escuteiro que está a vender uma rifa [e naturalmente estão no direito de o fazer], lembrem-se, por favor, de que há milhões de pessoas no mundo cuja vida mudou porque tiveram oportunidade de passear, de acampar, de fazer jangadas, de se perder durante raids de 24 horas, de testar limites, de crescer em grupo, de chorar e de rir. Lembrem-se de que, em Portugal, há todos os anos milhares de adultos que dão do seu tempo, com toda a generosidade, para fazer a diferença na vida de tantos jovens que são, sim, pessoas melhores por terem ido passear, física e espiritualmente.
E se ainda restasse algumas dúvidas sobre todos estes aspetos positivos que consigo encontrar no escutismo, elas dissiparam-se quando atirei a última pergunta ao meu grupo de amigos escuteiros e não-escuteiros: o que diriam aos vossos filhos, sobrinhos, afilhados se eles quisessem ir para os escuteiros? A resposta foi, finalmente, unânime: vai!
É que talvez as jarreteiras mudem mesmo o mundo…
Nota: aos escuteiros do CNE, uma associação católica fundada em 1923, acrescem ainda os membros da Associação de Escoteiros de Portugal (fundada em 1913), que não tem ligações religiosas e que conta, atualmente, com cerca de 13 mil elementos. Ambos se regem pelos princípios traçado por Robert Baden-Powell, e pertencem à Organização Mundial do Movimento Escutista, que entre 2014 e 2017 foi liderada pelo chefe português João Armando Gonçalves.
Foto de capa: Ricardo Perna
[1] https://www.jn.pt/economia/dossiers/economia-social/interior/quase-73-mil-formam-a-familia-escutista-3689045.html
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.