Há por aí um texto bíblico que me tem dado que pensar. Atrevo-me a tecer alguns comentários. O texto é bastante conhecido: Génesis 22, 1-19. Nesta passagem, Deus põe Abraão à prova, pedindo-lhe que entregue, em holocausto, o seu filho, o seu único filho – o filho da promessa (promessa essa que, note-se, Deus tanto tinha tardado em cumprir).
Antes de começar a descrever o que me trouxe aqui, começo por dizer o que não me trouxe, na esperança de poupar algum tempo a quem não se sinta interessado. Dado não perceber nada de culturas antigas, não comentarei que talvez o Senhor quisesse apenas mostrar a Abraão (através de um valente trauma…) que não se devem sacrificar humanos. Como também não sou existencialista, não direi que Abraão, pela Fé, ultrapassou o estado moral e chegou ao estado religioso. Prescindirei ainda de fazer notar que, embora o Pai Celeste possa ter parecido um pouco sanguinário, hipócrita é que não foi, já que ofereceu o Seu Próprio Filho em sacrifício.
Afinal, «porque é que o Senhor permitiu, fez ou pediu isto e aquilo?» é uma interrogação que todos já ouvimos e nos pusemos várias vezes.
O que me traz a este texto bíblico é, ainda assim, a mesma pergunta. Afinal, «porque é que o Senhor permitiu, fez ou pediu isto e aquilo?» é uma interrogação que todos já ouvimos e nos pusemos várias vezes. Porque é que o Senhor pôs Abraão à prova? Porquê? Se é verdade que, afinal, Deus é omnipotente e pode muito bem fazer o que «Lhe der na real gana», a pergunta não desaparece… «Porquê»? Bem, venho propor três hipóteses.
A primeira, facilmente descartada, é que o Senhor queria saber se Abraão Lhe seria fiel a esse ponto. Ora, o Senhor Deus dos Exércitos, Rei do Universo, é omnipotente. E, se é omnipotente, também é omnisciente. Mas, se é omnisciente, sabe tudo… e escusado será dizer que “tudo” inclui também se Abraão Lhe é ou não fiel. Podemos, portanto, rejeitar esta hipótese.
A segunda hipótese (e ouve-se tantas vezes por aí) é que «o Senhor já sabia, mas Abraão precisava de saber». Se a alguns esta pode parecer uma resposta simples, a mim parece-me simplista. Não é simplista porque não seja verdade: é verdade! É simplista porque não responde à pergunta. Se Abraão só precisava de saber, Deus poderia simplesmente ter-lhe dito… não era preciso todo aquele aparato. Mas, afinal, o que é que havia a saber?
É esta pergunta que abre a porta à terceira hipótese. A terceira hipótese é que, não só Abraão não sabia que podia ser assim tão fiel a Deus, como, de facto, não podia. Isto porque, até ser testado – até ter que ser fiel –, Abraão não o poderia ter sido. Sim, é verdade que Deus já sabia que Abraão Lhe seria fiel; mas parece que achou que valia a pena fazer do Seu conhecimento um facto real. A terceira hipótese, indo direto ao assunto, diz-nos que só quando Deus chamou Abraão a uma confiança total é que Abraão pôde confiar totalmente; e diz-nos mais: diz-nos que Deus chamou Abraão a uma confiança total para que Abraão pudesse confiar totalmente. E esta hipótese é coerente com a máxima de que a Palavra de Deus é viva e eficaz.
Resumindo: o ponto não era que Deus precisasse de saber, porque Ele já sabia; o ponto não era que Abraão precisasse de saber, porque não havia nada que ele pudesse saber; o ponto era, isso sim, que Abraão fosse realmente fiel.
Mudando (mais ou menos) de assunto: falemos de provações, ou (o que é o mesmo) de vocação. O paralelo é mais ou menos direto. É certo («bastante provável», diria eu) que nunca nos sentimos movidos na oração a assassinar os nossos filhos no alto de um monte; mas teremos tido outros encontros igualmente dolorosos com o Senhor. A todos, com maior ou menor intensidade, o Senhor já pediu que fizéssemos algo que, muito sinceramente, preferiríamos não ter de fazer. Não é preciso imaginar vocações heroicas ou as chamadas “loucuras por Cristo” – basta ver como o Deus de Abraão, Isaque e Jacob nos chama a perseverar por tantos períodos difíceis: a morte de um avô, a doença de um tio, o fim de um namoro, a solidão, uma família instável… uma pandemia.
O ponto não era que Deus precisasse de saber, porque Ele já sabia; o ponto não era que Abraão precisasse de saber, porque não havia nada que ele pudesse saber; o ponto era, isso sim, que Abraão fosse realmente fiel.
Como no caso de Abraão, serve-nos o mesmo raciocínio. O Senhor não nos pede que «deixemos tudo e o sigamos» para saber se somos capazes ou não; nem nos incentiva a segurar um namoro ou um casamento em decadência para saber se conseguimos. Nós seremos, ou não, capazes, mas – sem uma ponta de determinismo – Deus já o sabe. Quando nos pede que sorriamos no meio das lágrimas, ou que perdoemos aquele que nos ofendeu, Cristo não está a “ver se conseguimos”.
E, mais uma vez, também não está a tentar fazer-nos perceber que somos capazes (até porque, possivelmente, não o somos). «Então, não sabes que és capaz de aguentar mais uma quarentena, mais um drama amoroso ou mais uma morte na família? Toma lá, que agora vais descobrir». É verdade que dantes não sabíamos e agora sabemos, mas esta não é a verdade toda – nem sequer a mais importante.
Que passemos por mais uma quarentena, soframos mais um drama amoroso ou nos morra mais alguém na família é um facto da vida; um facto muito importante e doloroso, sem dúvida, mas um facto. A verdade mais importante é que o Senhor o vive connosco, nos olha e nos chama a permanecermos fiéis.
Resumindo: o ponto não é que Deus precise de saber, porque Ele já sabe; o ponto não é que nós precisemos de saber, porque ainda não há nada que possamos saber; o ponto é, isso sim, que sejamos realmente fiéis.
Como diz C. S. Lewis em O Problema da Dor, dizer que, porque Deus já sabia que Abraão seria fiel, não precisava de o chamar àquele monte, é dizer que, porque Deus sabe uma coisa, essa coisa não precisa de existir. Termino sugerindo a todos que retiremos, daqui, um axioma para a nossa vida espiritual. O axioma que proponho pede-nos uma mudança de perspetiva, creio, sobre as dores (e, embora não se fale aqui delas, também sobre as alegrias!) que somos chamados a viver. O axioma é este: aquilo que Deus já sabe é algo que vale a pena existir; e não só «vale a pena», como merece que lhe dediquemos todas as nossas energias.
Voltemos ao início. «Porque é que o Senhor permitiu, fez ou pediu isto e aquilo»? Olhando a coisa com este novo axioma, a pergunta deixa de fazer sentido. A lógica já não é de causa-efeito, acontecimento-sofrimento, e por isso já não nos é pedido um porquê? desesperado de sentido. A lógica passou a ser de oportunidade-proveito, sofrimento-santificação: em vez de olhar ao passado, passou a olhar ao futuro. «O que vou fazer disto?» seria uma pergunta muito mais interessante, muito mais importante e muito mais útil.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.