Atendendo ao canal através do qual partilho esta reflexão, sei bem que me aventuro por um tema delicado… Ainda assim, penso que vale a pena partilhar esta reflexão.
Já passou o Natal de 2022 e o meu sentimento neste momento é de alívio, de expectativa de regresso a alguma ‘normalidade’, a alguma calma que penso que, ao contrário do que seria expectável nesta quadra, naquilo que seria a sua essência, sinto que se vive cada vez menos.
Comecemos pelo fim… numa caminhada curta pelas ruas da cidade do Porto no dia 26 de dezembro de 2022, não me foi possível deixar de reparar nos contentores cheios de lixo, manifestos espojos das celebrações natalícias. Embora não se deva generalizar como reflexo do espírito natalício que tem dominado a forma como a sociedade tem vivido esta quadra, também não creio que se deva deixar de analisar a relação que aqui existirá inevitavelmente: contentores a abarrotar, com todo o tipo de lixo à volta, com muita comida espalhada pelo chão (porque entre outras situações, cães, gatos e aves que andam pela cidade abrem os sacos); ecopontos azuis completamente cheios e já com muito papel e cartão, provavelmente resultantes dos presentes da época, fora do contentor (uma vez que estamos num período de chuva, aquele papel em poucas horas se transformará numa papa difícil de recolher e de reciclar). O lixo é imenso, a falta de cuidado com os espaços comuns e com a via pública, também.
Às tantas nem sei se estas campanhas de solidariedade não perdem sentido e significado, tal é o exercício de se chamar ‘solidariedade’ àquilo que são, maioritariamente, campanhas de angariação de fundos.
Antes de tudo isto tivemos as imensas luzes (como se não estivéssemos a viver um período desafiante do ponto de vista energético), o barulho incessante e permanente das músicas “natalícias” em todo o lado, os pais natais em todas as esquinas, os sons estridentes na rádio, na televisão e em todo o lugar, os milhares de campanhas de solidariedade que brotam como cogumelos. Às tantas nem sei se estas campanhas de solidariedade não perdem sentido e significado, tal é o exercício de se chamar ‘solidariedade’ àquilo que são, maioritariamente, campanhas de angariação de fundos. Tem-se vindo a deixar de falar em angariação de fundos, porque parece que não se pode falar de dinheiro quando de facto o que falta muitas vezes é mesmo dinheiro – bem investido, organizado em programas estruturais e estruturados de combate à pobreza e de apoio a pessoas e famílias em situação de maior vulnerabilidade. Esta abordagem seria decerto preferível a medidas remediativas e pontuais nesta quadra, que até podem ajudar algumas famílias a ter mais algumas coisas nesta altura – e não estou, de modo nenhum, a reduzir a importância, pelo menos simbólica, disto. No entanto, parecem-me um objetivo pouco interessante se efetivamente se pretende uma solidariedade mais próxima da essencialidade do Natal.
Em mim, todo este frenesim, toda esta intensidade desmesurada de sentimentos que se compram já embrulhados, todas estas conversas que vou ouvindo das prendas por comprar (nos transportes públicos, nas lojas, na rua, nos contextos de trabalho, nos telejornais, em quase todo o lado), geram tal anestesia que em alguns momentos acho que paro de pensar, tal é o meu desejo de deixar de sentir aquela pressão auditiva, visual e emocional permanente.
Ouvi a mensagem do Papa Francisco no dia de Natal e, como de costume, muito me revi nas suas palavras. O modo como na atualidade se vive intensa e ruidosamente esta quadra conduzem-me a um imaginário absolutamente contrário ao desejado “Natal de paz”, de serenidade, de celebração do nascimento de uma esperança renovada, tal é o foco na ornamentação da festa e no seu consumo subjacente, como sublinhou o Papa Francisco. O permanente foco nas prendas, na festa, na felicidade que até parece que se pode vender, comprar e oferecer, gera um perturbador cansaço, um desejo urgente que chegue a janeiro.
Não sei se é possível, num tempo como o que agora vivemos, as pessoas ficarem completamente imunes a este apelo ao consumo, a uma imagem estereotipada do que significa ‘estar em família’ e do que se institucionalizou – muito à conta do mercado – como sendo a Ceia e o Almoço de Natal e do que deve conter.
Não sei se é possível, num tempo como o que agora vivemos, as pessoas ficarem completamente imunes a este apelo ao consumo, a uma imagem estereotipada do que significa ‘estar em família’ e do que se institucionalizou – muito à conta do mercado – como sendo a Ceia e o Almoço de Natal e do que deve conter. Esse imaginário gera pressão e stress em boa parte das famílias, destacando-se as mulheres, que continuam a assumir desproporcionalmente as tarefas logísticas que garantem que a supostamente ‘tradicional’ festividade do Natal continue a existir, aumentando ainda mais a sua sobrecarga de trabalho nestes dias. Contudo, além da ansiedade e frenesim que algumas pessoas poderão normalizar e entender que não são um problema, toda esta pressão para se ser feliz e para corresponder a um determinado modo de ser, agir e consumir nesta quadra, acentua e evidencia sentimentos de solidão e de tristeza para muitas pessoas. Estas, por motivos diversos, poderão estar bem longe deste imaginário e precisariam nesta altura de tudo, menos desta pressão desmedida para a vivência daquela que é, a meu ver, a mais contraditória, incoerente e emocionalmente insustentável época do ano. Dito isto, partilho com quem me lê a minha esperança e desejo de uma vivência de paz, solidariedade e amor durante todo o ano de 2023, usufruindo e exercitando a possibilidade de sermos mais pessoas outra vez e menos consumidores natalícios.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.