Anónimo

Um conto de Natal

Os gémeos tinham sido mortos nessa manhã, fuzilados como poetas pelo esquadrão que os apanhou no quintal dos pais. E o ruivo fora esganado, numa luta corpo a corpo à saída da igreja, por um dos novos polícias de dois metros. Ele era o único agora. Esperou que o sol se pusesse e saiu da cidade pela floresta. Foi por ruas pequenas mas não demasiado escuras, para não levantar suspeitas; num passo decidido mas não muito acelerado. Se alguém lhe perguntasse, diria que ia apanhar cogumelos.

Anda pela floresta cansado de medo e de fome. Não percebe nada de cogumelos, infelizmente. Desconfia que muitas das plantas pelas quais passa são nutritivas, medicinais, alucinógeneas até, mas sabe que basta meter à boca uma mais madrasta para morrer de morte feia. Apesar de tudo, prefere não arriscar. Aquele caminho é um pesadelo. O homem sente-se gelado e sua. Ou não é bem isso: o suor arde-lhe na pele fria. Uma água espessa sai-lhe pelos poros como uma febre. O homem está tropical na noite da floresta europeia. Lembram-lhe certas frases. Como aquela expressão que usavam dantes, esparramados em poltronas de couro e com um copo de uísque na mão, no final de uma semana de trabalho rotineira: tenho a cabeça em água. Lembram-lhe certas frases, automaticamente, sem sentido, como um instinto de sobrevivência. O seu corpo sabe que a única maneira de não cair para o lado é acendendo palavras na cabeça. A cada dois passos, os pés fazem um barulho diferente. Palavras na cabeça. Tudo exala o cheiro dele. E ele não sabe se o que ouve são uivos de vento, animais ou pessoas. Deve ser assim que um homem enlouquece.

Quando cai de joelhos é que a vê. Não é milagre nenhum. É que tinha as copas densas das árvores à frente e, só ao baixar-se, pôde percebê-la entre os troncos. Uma luz sobre a terra. A casa. Não sabe quem a habita, gente boa ou má. Pode até ser uma das “casas perdidas” que se diz que o regime mantém fora das cidades para raptos, torturas, interrogatórios secretos e assassinatos de tipo mais “passional”. Seja como for, é a única hipótese do homem naquele momento. É aquilo ou desaparecer anónimo na floresta.

Arrasta-se até lá não sabe com que forças, como um paralítico ressuscitado. A casa avançando mais rápido do que ele, parece. A certa altura, chega a acreditar tratar-se de uma miragem. Uma luz que paira sobre o monte, uma casinha na clareira; uma imagem demasiado estranha e demasiado óbvia, que podia ser a ilustração de um conto de fadas. Ao chegar ao limite da floresta, o homem pára. Adormece algum tempo de olhos abertos. Durante minutos ou horas, acredita que ver a casa, tê-la ali ao seu alcance, basta. Saber daquela possibilidade de salvação é suficiente, não tem de chegar a acioná-la. Depois começa a sentir uma espécie de tontura espiritual, como se estivesse dentro de um sonho e não pudesse morrer antes de acordar, sob pena de a sua alma cair para o mundo das trevas eternas. Decide que tem de se mexer, de se salvar, de tentar, pelo menos, que há um mínimo que todo o homem exige a si próprio. Mas o corpo não está de acordo. Os seus músculos, o seu pensamento, recusam-se a avançar. O homem fica sem frases, de repente. Esse vazio dura muito, uma eternidade, até que se apaga a luz da casa.

Era o que precisava. Ao ver isso, o instinto faz o esforço por ele, e o homem lá consegue chegar à porta da casinha. Rasteja e rasteja. Antes de se levantar para bater à porta, acende-se a luz da casa. O homem pensa que aquilo foi um erro dos diabos. A porta abre-se, e aparece uma mulher em contraluz a perguntar-lhe quem é. Pela voz, o homem percebe que a mulher já não é nova. Dá-lhe o seu nome e, nesse momento, vê que ela lhe aponta uma espingarda. “É verdade”, diz, pois tem medo que o seu nome não seja suficientemente verosímil. Ela pergunta-lhe se é um dos gémeos. Ele diz que sim, sem pensar. A velha aproxima-se: um rosto terrível. Não que seja feia. Vem ver nos olhos do homem se ele mente, vem para lhe meter uma bala misericordiosa nos cornos. Ele repete que sim, que é o mais novo dos gémeos.

E ela: “Anda, vamos.”

Leva-o para um quarto já pronto. Ele pensa que há qualquer coisa de mórbido nisso mas cala-se bem calado. A velha deixa-lhe um pijama de homem daqueles clássicos, do século passado, com riscas e um bolso no peito. Antes de sair, olha-o com atenção, hesitando talvez sobre se o deve ajudar a despir-se. Tem uns olhos muito escuros e um nadinha juntos demais; o carácter terrível do rosto vem de perceber-se que foi uma beldade na juventude.

A casa é toda de madeira e faz barulhos. O homem adormece com tal rapidez que nunca mais se lembrará de ter caído na cama. Veste o pijama e já está dentro do sonho, a andar por um túnel que começa num armário e acaba sabe-se lá onde. O seu estado de exaustão não lhe permite grandes certezas; ainda assim, manda um recado ao seu eu do dia seguinte para que não se esqueça de perguntar à velha como é que ela sabe dos gémeos.

Acorda com a mão dela na testa. Ela diz-lhe que ele pode tomar o pequeno-almoço de pijama enquanto a roupa seca. Numa salinha ao lado do quarto, a velha dá-lhe um prato de sopa de feijão, umas tostas velhas com compota de frutos silvestres e um copo de leite. O homem tem uma fome louca e come o que lhe aparece à frente com uma falta de educação chocante. Ao mesmo tempo, sente um certo incómodo por estar a comer feijão, de pijama, sob o olhar da senhora. Ela cheira bem, a flores secas, e tem uns dentes pequenos, muito perfeitinhos. Os olhos já não parecem demasiado juntos. Não pensará mais nela como “a velha”.

A mulher faz-lhe algumas perguntas durante o pequeno-almoço e ele responde da melhor maneira possível. Que começaram por ser doze, depois passaram a ser quatro e que agora é só ele. Que sim, havia quem os chamasse subversivos, ou guerrilheiros, ou sabotadores, ou só intelectuais. Que, pois, há outras células, outros bandos, espalhados por outros bairros e cidades. Diz-lhe isso numa voz segura, tentando não desviar o olhar, mas é só uma esperança que ele guarda como uma última bala. “O plano da resistência tem duas leis”, afirma, para acabar a conversa. “Primeira, passarmos despercebidos. Segunda, atacarmos onde dói.” Deixa o leite para o fim. Bebe-o devagar, concentrando-se na consistência do líquido enquanto este lhe escorre pela boca e pela garganta, imaginando que o alimento animal o torna liso e macio por dentro, que o purifica. É isto o prazer! Há quanto tempo não sentia eu prazer? Quando pousa o copo vazio, pergunta à mulher como é que sabia dos gémeos.

“Sou mãe deles”, diz ela. “Sei que mentiste, mas não te preocupes. Vejo que mentiste por bem. Vivemos num tempo em que tal não só é desculpável como pode mesmo ser uma exigência. Ontem ia matar-te à minha porta, até que disseste aquilo de seres o mais novo dos gémeos. Era a piada habitual dos meus meninos. Não era? Os dois brincavam com isso, de serem os mais novos. Estou a falar deles no passado, meu Deus. Morreram, não é verdade? Não digas. Vejo a resposta nos teus olhos, mas não digas as palavras. Aí percebi que eras amigo deles. Podes ficar aqui o tempo que quiseres. O que foi isto?” Ela ouve alguma coisa, e sai. Ele levanta-se. Fica parado à escuta mas não ouve nada. Ou só ouve o coração aos saltos. Até que, dentro disso, começa a perceber os passos da mulher no corredor; a porta abrindo-se hesitantemente. Agora, a voz dela mais longe e mais fresca, como tivesse sido embrulhada por uma fina folha de água, dizendo, “Quem é?”. E os tiros. Metralhadoras oficiais de carbono ultraleve, fabrico cem por cento robotizado, esse som inconfundível.

Numa fracção de segundo, o homem imagina várias coisas. A mãe dos gémeos caída sem vida à porta de casa, sangue no peito, na cabeça, na parte de dentro do braço esquerdo; a figura ridícula que ele terá para quem entrar na salinha: um tipo esquelético, despenteado, ensonado, de pijama às riscas; o esquadrão soberano irrompendo pela casinha de madeira como uma tempestade mortal. Dentro do armário, o homem respira à maneira do ruivo. A mão em concha à frente do nariz e da boca, mas não muito próxima, de modo a não fazer o mínimo barulho, não agitar nenhuma partícula. Sofre um bocado com o seu hálito a feijão. Concentra-se nisso para não começar a tremer.

Os agentes não avançam como imaginou. Demoram-se estranhamente em cada divisão. Ele apanha algumas palavras, “cave”, “vazio”, mas nenhuma frase completa. Não entram como uma tempestade, entram como uma doença. No escuro o homem pensa que o sacana do ruivo também lhe podia ter ensinado uma maneira para não suar. Está outra vez como na floresta. Qualquer agente que entre na salinha há de o topar pelo cheiro. No escuro, o homem respira o mais delicadamente possível.

A mulher abatida à porta, como um bicho, e aqueles cães por ali a farejar. Imagina-a nova, no verão, antes de ter os gémeos, a sorrir debaixo do sol bom do monte. É a homenagem possível. Nem sabe o nome dela. Lembra-lhe uma namorada que teve antes daquilo tudo começar. Na sua vida anterior, como dizia meio a brincar quando começou a preparar a resistência com o seu bando.

Lembra-se dessa namorada. Tinha uma cara simples e clara. Olhos morenos, acinzentados. Lembra-se do pescoço imaculado dela, da garganta impossivelmente ampla que se transformava no peito sem aviso. Lembra-se, quem lhe dera lembrar, do cheiro da pele dela. Rapariga-mulher, vestido vermelho com bolas brancas, decote arredondado, joelhos à mostra. Cara como um círculo desenhado à mão, a sorrir. Olhos verdes, afinal. Inventa um nome para lhe dar, para que nunca ninguém a possa achar, um nome secreto. Lembra-se que os pais dela eram donos de um restaurante que havia na avenida e que ela servia às mesas de vez em quando. Ele estudava composição de dia e tocava piano em bares à noite para ganhar dinheiro, mas gastava tudo o que tinha para comer batatas fritas e beber cerveja se a via através do vidro, atarefada a anotar pedidos, a levar travessas, só para chegar perto. “Podias ser bailarina”, disse-lhe muito mais tarde. Ela achou que era um piropo, mas ele falava a sério. Pela maneira calada, se é essa a palavra, como ela circulava entre as mesas e as pessoas: bailarina. Sabia corar também, coisa tão rara. E não gostava do chapéu de gangster que ele tinha sempre na cabeça, não gostava nada dele, e a intensidade desse seu não-gostar fê-lo ver que, sim, poderia vir a conquistá-la um dia. Foi numa noite, afinal; estavam numa praia junto a uma fábrica iluminada, um lugar de ficção-científica, e ele tirou o chapéu com uma solenidade de palhaço e fez uma vénia e, quando ergueu os olhos, ela estava nua. Nome Secreto. Foram viver juntos, ela afinal era poeta, tiveram dois filhos e duas filhas, ele dava aulas de música e ela escrevia palavras justas, envelheceram com calma, os seus filhos tornaram-se homens e mulheres de corpo inteiro, tiveram netos e riram, riram, e, aí chegado, o homem volta atrás e concentra-se nessa noite de noites em que viu a sua futura mulher pelo vidro do restaurante e pensa que ia a assobiar, num esforço de distração, e tinha acabado de chover há pouco, e inexplicavelmente ele associava essa humidade e limpidez do ar ao assobio, às melodias ingénuas, quase felizes e afinal quase tristes, que o assobiar cria, e ainda acredita nisso, por razão nenhuma, tão estranho, e lembra-se que havia um cheiro a plantas molhadas vindo de algum canteiro da avenida e lembra-se que a mulher, Nome Secreto, era a única coisa focada, e que ele a viu enquanto ajeitava o chapéu na cabeça com uma falta de jeito um tudo-nada autoconsciente e que até tropeçou, quase caiu, porque o seu corpo estava a fazer  demasiadas coisas ao mesmo tempo, andar, compor o chapéu e apaixonar-se, e que bonito teria sido se tivesse mesmo chegado a cair, e pensa em todos os detalhes, no olhar de cada filho, na maneira como as luzes da fábrica se estilhaçavam na superfície negra do mar, na curva tridimensional das ancas da Nome Secreto, no cheiro da nuca dela, quem se dera lembrar, e de como, já velhos, se sentavam num jardim de uma casa esquecida, a ler poemas em voz alta, a discutir tipos de árvores e flores e, aí chegado, o homem volta outra vez atrás, para repassar tudo com cada vez mais detalhe, ou não é bem isso, com cada vez mais desejo, e assim mais três, quatro vezes, e correm todos os sóis, todas as luas, todos os relógios transparentes, e de repente o homem dá-se conta de que o silêncio já se instalou fora do armário e que, na sua cabeça, a memória e a imaginação se sobrepõem uma à outra formando uma única frase acesa, e decide que, pois, seja como for, uma bela vida já cá canta, vou abrir a porta.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.