A democracia liberal, representativa e defensora dos direitos humanos, passa por crises sérias em vários países. Não é uma novidade. Há um século, a modernidade parecia ter abandonado os regimes democráticos; a democracia surgia então como uma relíquia do séc. XIX, enquanto o futuro aparentava encontrar-se nos regimes totalitários – nazismo, fascismo e comunismo. Mas depois do fim da II Guerra Mundial a democracia liberal regressou em força.
Hoje, porém, a democracia atravessa dificuldades graves, a começar pela maior democracia do mundo – a Índia. Neste país as regras democráticas têm desde há muito convivido com o sistema de castas, o que na prática limita aquelas regras. O sistema de castas, apesar de legalmente proibido, continua a ter peso na sociedade hindu. Mas há algo mais preocupante: a tendência do poder político para privilegiar a religião hindu, tratando mal outras confissões religiosas e étnicas, sobretudo as muçulmanas. Em numerosos Estados indianos surgiram recentemente leis proibindo conversões do hinduísmo a outras religiões.
Como o Ponto SJ informou, em Janeiro deste ano o Provincial dos jesuítas em Portugal enviou uma carta aberta ao Embaixador da Índia em Lisboa, alertando para a situação de injustiça em que se encontrava o P. Stan Swamy, de 84 anos e gravemente doente, preso pelas autoridades indianas. O “crime” deste jesuíta, que viria a falecer em Julho, era lutar contra discriminações sofridas por comunidades étnicas e religiosas marginalizadas naquele país.
Na União Europeia alguns Estados membros parecem não aceitar a democracia liberal. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, gaba-se mesmo de ter construído no seu país uma “democracia iliberal”. A Polónia e a Eslovénia seguem por esse caminho, nomeadamente limitando a liberdade de expressão e não separando o poder judicial do poder político.
O partido Janata está no poder federal na Índia desde há mais de uma década. O histórico partido do Congresso, fiel às tradições democráticas herdadas do colonizador britânico, encontra-se enfraquecido. E o líder Narendra Modi, primeiro ministro da Índia, tem vindo a assumir crescentes posições de agressivo nacionalismo hindu. A liberdade religiosa e étnica sofre na Índia e com ela sofre a democracia.
Por outro lado, na União Europeia alguns Estados membros parecem não aceitar a democracia liberal. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, gaba-se mesmo de ter construído no seu país uma “democracia iliberal”. A Polónia e a Eslovénia seguem por esse caminho, nomeadamente limitando a liberdade de expressão e não separando o poder judicial do poder político. O primeiro-ministro esloveno, reagindo a críticas de Bruxelas, afirmou não existirem diferentes espécies de democracia – “democracia é democracia”.
Ora o prestígio ligado à ideia de um governo pelo povo, que a palavra democracia significa, levou regimes bem pouco democráticos a reclamarem-se da democracia. Xi Xinping, o líder do partido comunista chinês, argumenta que este partido vai ao encontro das necessidades do povo chinês – logo é democrático. Uma falácia dramática, pois vigora na China um regime que vigia e reprime toda e qualquer crítica; os chineses enriquecem com o crescimento económico fulgurante do seu país, mas não gozam de liberdades cívicas e muito menos de direitos de participação democrática na vida política. Xi Jinping considera o conceito de direitos humanos uma invenção ocidental visando prejudicar a China.
Outro exemplo de pseudo democracia foi o regime do Estado Novo, em Portugal. Esse regime auto intitulava-se de “democracia orgânica e corporativa”, quando governava com censura, polícia política, etc. Obviamente, não era um regime democrático.
As tendências autocráticas de V. Orbán manifestam-se, também, em atitudes de anti-semitismo, como o ódio a George Soros, o milionário judeu que financiou uma universidade na Hungria, a qual teve que transferir para a Áustria. E, ainda, em gestos homofóbicos, atingindo os homossexuais. Este ponto carece de um breve aprofundamento.
Numa sociedade pluralista as pessoas não perfilham todas as mesmas conceções sobre o que é o bem. Mas toleram-se umas às outras.
Numa sociedade pluralista as pessoas não perfilham todas as mesmas conceções sobre o que é o bem. Mas toleram-se umas às outras. O aborto, por exemplo, na minha visão das coisas, implica a morte de uma vida humana; mas esse não é o entendimento de muitos portugueses e portuguesas, que consideram o feto uma parte do corpo da mãe e nada mais. Por isso com pena aceitei, embora a critique, a lei que liberalizou o aborto; mas considero absolutamente intolerável um recente relatório do Parlamento Europeu propondo que seja eliminada a objeção de consciência de médicos e demais pessoal de saúde quanto a concretizar uma intervenção abortiva.
Também discordo do casamento homossexual, pois, na minha perspetiva, verdadeiro casamento é entre um homem e uma mulher, convicção pela qual, como na questão do aborto, continuarei a lutar. No entanto, tolero que a lei do país vá por outro caminho. Nada disto envolve uma violação de princípios éticos, apenas é uma consequência de vivermos numa sociedade pluralista, onde os valores morais não são uniformes e termos de conviver com a diferença.
Ser contra o aborto e o casamento homossexual não me elimina a obrigação de respeitar os homossexuais, cuja tendência sexual não é, em muitos casos, resultado de uma escolha pessoal, mas uma imposição física. Uma ideologia homofóbica é contrária aos valores da Europa comunitária e dos direitos humanos. Não são valores imaginários, como pretende o primeiro-ministro da Eslovénia, Janez Jansa, um admirador de Orbán e de Trump. Vamos, então, ao mais preocupante, que tem a ver com Trump, personagem que está na raiz da presente tendência autocrática no mundo.
Metade dos adeptos do partido republicano julgam que o resultado eleitoral de Novembro de 2020 foi uma fraude – para eles, o verdadeiro vencedor teria sido Trump; e dois terços dos republicanos consideram que Joe Biden não ganhou a última eleição presidencial.
Trump ganhou as eleições presidenciais de 2016, mas perdeu a reeleição em 2020. Só que não aceitou a derrota e continua a proclamar que essa eleição lhe foi “roubada”, apesar de inúmeras decisões judiciais apontarem inequivocamente o contrário. O drama tem a ver com o facto de os seguidores de Trump acreditarem nessa falsidade. Metade dos adeptos do partido republicano julgam que o resultado eleitoral de Novembro de 2020 foi uma fraude – para eles, o verdadeiro vencedor teria sido Trump; e dois terços dos republicanos consideram que Joe Biden não ganhou a última eleição presidencial. Um exemplo de desvalorização da verdade (a “pós-verdade”) para impor uma pretensão política.
Claro que Trump não acredita naquilo que proclama – mas mantém a mentira porque ela é mobilizadora e ele quer voltar a candidatar-se em 2024. Entrou-se, assim, no campo das falsas notícias, em que o ex-presidente é exímio. Logo no início do mandato a porta-voz do novo presidente afirmou que a cerimónia de posse de Trump em Janeiro de 2017 tinha reunido uma multidão como nunca antes se vira; logo os vários canais de televisão mostraram que a tal multidão era das menos numerosas em cerimónias de posse presidencial; mas jamais a Casa Branca de Trump reconheceu a verdade.
No campo das “fake news” destacam-se as mais mirabolantes teorias da conspiração que os fanáticos seguidores de Trump alimentam. Por exemplo, a chamada “QAnon” assevera que Hillary Clinton, George Soros e outras figuras montaram uma rede mundial de pedófilos que bebem o sangue de jovens cristãos… Parece ridículo, mas é de arrepiar.
Acontece que Trump nunca aceitou a derrota eleitoral, a qual não merece a menor dúvida a qualquer observador honesto. No limite – e os EUA não andam longe dele – os resultados eleitorais apenas serão aceites pelo vencedor, o que elimina o carácter democrático das eleições, que assim deixariam de ter sentido.
Por outro lado, Trump pôs na sua “lista negra” os poucos republicanos que ousaram desafiar a falsidade da “fraude eleitoral”. Esses políticos são considerados traidores e, por indicação de Trump, são sistematicamente impedidos de concorrerem às eleições parciais do Congresso previstas para 2022, promovendo a sua derrota em eleições primárias do partido ou levando-os a abandonarem a política. O mesmo se diga das inúmeras eleições estaduais do próximo ano. É Trump quem manda no partido republicano.
Mas não há políticos sérios e corajosos no partido republicano dos EUA? Com certeza que há, mas são poucos. A maioria deles receia Trump e cala-se.
Mas não há políticos sérios e corajosos no partido republicano dos EUA? Com certeza que há, mas são poucos. A maioria deles receia Trump e cala-se. Compreende-se: aqueles que se atrevem a desmentir a “fraude eleitoral” não apenas vêm as suas carreiras políticas cortadas como recebem ameaças de morte.
O líder republicano no Senado, Mitch McConnell, denunciou em Janeiro a jogada de Trump. Se uma eleição pode ser posta em causa por alegações falsas dos que perdem, “a democracia americana entrará numa espiral de morte”, afirmou ele. Só que, depois de tão acertadas e corajosas declarações, o partido republicano continuou a deixar Trump fazer o que quer.
Ao criticar Trump não devem ser esquecidos alguns antecedentes que lhe prepararam o terreno. Refiro-me aos neo-conservadores, que se afirmaram em torno do presidente Bush (filho). Na euforia da vitória americana na guerra fria, com o colapso do comunismo soviético, esses intelectuais defenderam que o seu país devia deixar de respeitar as suas alianças, avançando com ou sem aliados.
Assim aconteceu com a fatal invasão do Iraque, justificada com uma mentira – a de que Saddam Hussein estaria na posse de armas de destruição maciça. E o governo americano de então, em resposta aos terríveis atentados de 11 de Setembro de 2001, legalizou a tortura (embora com outro nome, claro) nos interrogatórios a suspeitos de terrorismo. A força do direito foi substituída pelo direito da força.
No campo económico, os “neo-cons” (como às vezes eram designados) consideravam ser esmagadora prioridade empresarial ganhar dinheiro, o máximo possível. As escandalosas falências que então ocorreram, como a da Enron, evidenciaram quanto a ética dos negócios tinha descido para níveis muito baixos.
No campo económico, os “neo-cons” (como às vezes eram designados) consideravam ser esmagadora prioridade empresarial ganhar dinheiro, o máximo possível. As escandalosas falências que então ocorreram, como a da Enron, evidenciaram quanto a ética dos negócios tinha descido para níveis muito baixos.
Trump nada tem de intelectual nem é um “self made man”, sendo filho de pai rico. É um negociante conhecido por não ter escrúpulos, por perder dinheiro dos outros e nunca ter reconhecido os seus fracassos empresariais. Leva a extremos de quase loucura muito daquilo que os neo-conservadores haviam semeado. Por isso vemos a democracia dos EUA à beira do abismo. E, repito, Trump está na raiz da presente tendência autocrática no mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.