Tenho simpatia pelo verbo aguentar. A vida, a nossa vida e a vida de cada um de nós, é feita, não só mas também, de muitos “aguentamentos”. Aguentar é permanecer, é ficar quando o vento sopra. É tolerar a tempestade e, por ligação à rocha, manter-se em pé. Jesus de Nazaré, aguentou, e aguentou até à cruz.
MAS (trata-se de um grande mas…) estamos sujeitos a abusar deste verbo. Quando olho a Igreja que somos, neste tempo e neste espaço, pergunto-me se não estamos excessivamente focados (ou tapados?) no verbo aguentar. Este aguentar (para não perder, para não mexer, para deixar estar… a ver se aguenta…), pode implicar derrocadas, entre hoje e, sobretudo, amanhã. Perdas não só de abrigo, como de fundação. Existe uma expressão popular que aqui e ali assenta como uma luva nas atitudes que tendemos a ter face a certos desafios eclesiais: “atirar com a barriga para a frente”, esse deixar correr que adia a decisão corajosa.
A Igreja encontra-se numa encruzilhada muito original, que a crise pandémica agudizou ou exibiu em maior extensão e profundidade. Há neblina sobre o próprio devir eclesial. Apesar dos esforços evidentes e fecundos do Papa Francisco, colocando em andamento as inspirações do concilio Vaticano II, há resistências, principalmente internas, que minam a ação. Mesmo as pessoas que entendem estarmos num tempo novo e face a novos desafios, carregam a pressão dessa reatividade resistente, e impera o receio de arriscar e a falta de coragem, preferindo-se…aguentar. Há dois vírus que a Igreja carrega ao longo do tempo, que serviram para aguentar, mas que, tão feliz quando dramaticamente, se estão a tornar insuportáveis: o medo e o controlo.
Mesmo as pessoas que entendem estarmos num tempo novo e face a novos desafios, carregam a pressão dessa reatividade resistente, e impera o receio de arriscar e a falta de coragem, preferindo-se…aguentar.
Alinho abaixo alguns (apenas alguns) aspetos da nossa Igreja que, em muitos cenários e horizontes, me parecem estar a ser encarados com demasiado ‘aguentamento’. O elenco poderia ser mais vasto e é aqui apresentado telegraficamente, sendo que seria merecido, em momento ulterior, aprofundar cada um dos itens:
1.Uma catequese com modelos pedagógicos falidos
Os modelos catequéticos “curriculares”, mimetizando a escolaridade, com a tríade batismo/primeira(ou última?) comunhão/crisma terão mesmo de ser questionados. A aproximação mecânica das famílias a este modelo tem gerado infecundidades gritantes. Fazer o mesmo porque sempre se fez assim é radicalmente insuficiente.
2. Uma “concorrência” feroz para proporcionar encontros com odor de Evangelho, principalmente aos mais novos
Como uma quase fatalidade, é hoje dramaticamente desafiante oferecer alternativas a tantas possibilidades de encontros que se geram fora do espaço tradicional da Igreja. É certo que o lugar da Igreja é o mundo, mas as ofertas que este tempo coloca no horizonte, incluindo nas redes sociais, torna tudo muito mais complexo.
3. Um dinamismo celebrativo à espera de mais rasgo, beleza, silêncio e simplicidade
Há um espaço tensional nas celebrações católicas romanas. Uma rica tradição, que não se pode perder, é muitas vezes, vivida com defensividade, como se manter tudo na mesma fosse sinal de conservar. Há que reconciliar esse embalo milenar positivo com a renovação necessária, também na festa da missa. A simplificação litúrgica, em particular, potenciada com dinamismos mais horizontais e momentos de silêncio, menos centrados em quem preside, são caminhos menos percorridos.
4. Um clericalismo teimoso, de muitos clérigos e leigos
São muito persistentes os sinais de clericalismo, na consciência interna e na ação eclesial de muitos de nós. Um dos aspetos gritantes é a forma típica como se responde à falta de padres ou à situação (frequente, como sabemos) de padres desajustados a certa realidade paroquial/pastoral. O ‘tique’ mais típico é “partir padres ao meio”. Muitas vezes, nas (não) decisões, pondera-se mais o padre em si (onde vamos colocar este sacerdote?) do que a comunidade no seu todo. São radicalmente tímidas as iniciativas de promover a liderança laical de comunidades, com novos enquadramentos de garantia de unidade aos Bispos e ao Papa.
São radicalmente tímidas as iniciativas de promover a liderança laical de comunidades, com novos enquadramentos de garantia de unidade aos Bispos e ao Papa.
5. Uma sinodalidade duvidosa, onde a escuta se arrisca a ser um procedimento estéril
Não há forma de se ser Igreja, hoje, senão em chave sinodal. Promover uma escuta efetiva de todos e para todos, que tenha depois contra-feedback, reflexão desapegada, “amassamento” dos contributos no Espírito, caminhos e ação. De Roma, nos nossos tempos, aparecem, felizmente, gritos fortes de desejo sinodal. Alguns, mais longe dali, resistem a dar valor a este (único) estilo de ser Igreja.
6. Falta de iniciativas e experiências originais
Seria bom que os bispos usassem da liberdade de ensaiar e as comunidades, por sua vez, tivessem liberdade para essas mesmas iniciativas. Seriam processos, janelas, pequenas respostas, insights vertidos no tempo e no espaço… que depois, claro está, teriam a respetiva avaliação e eventual reformulação/replicação.
Disse no início desta reflexão que Jesus de Nazaré, aguentou, e aguentou até à cruz. No alinhamento do que as palavras foram tecendo, prefiro terminar assim: Jesus de Nazaré, que foi até à cruz, amou e ama, abriu e abre janelas de luz e de esperança. Mas encarnou para amar, não para aguentar. Aguentar é um meio (não o fim) do sonho de Deus maior: a liberdade do próprio amor. Para isto existimos. A Igreja existe para proporcionar este encontro de todos com a livre liberdade do amor. Para construir essa Igreja não podemos deixar de olhar com esperança a abundância que semeia em todo o lugar. Mas cabe-nos um trabalho e fazer render talentos de mudança criativa. Aguentar, definitivamente, é excessivamente defensivo e insuficiente!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.