Este fim de semana, cedi ao desafio de muitos amigos para ver uma série nova, “imperdível”, especialmente recomendada a quem trabalha com jovens, como é o meu caso. Abri o computador para ir acabando os pendentes da semana, enquanto espreitava mais uma série das muitas para as quais, infelizmente, não tenho tempo. Erro meu, estava desprevenida e levei um murro no estômago. Há acontecimentos que nos atingem assim e nos deixam meios zonzos. Temos depois que perceber de onde veio toda essa força, porque nos atingiu em cheio, e tentar dissecar a realidade.
1. “É preciso uma aldeia para educar uma criança” (Provérbio africano)
Aos sete anos, fui levada pelo meu pai e apresentada com pompa e circunstância a uma biblioteca, à respetiva diretora e à responsável pela secção infantil. Há algumas pessoas, como estas duas senhoras, com quem nos vamos cruzando na vida e a que chamo os “fazedores”: pessoas que gostam do que fazem e fazem a diferença pela forma como o fazem. E assim, durante muito tempo, aquela passou a ser uma segunda casa e eu a ser frequentadora assídua de uma salinha onde, em grupo, líamos e debatíamos temas.
Aos dez anos, mais uma fazedora surgiu na minha vida, a Irmã Rosa, uma jovem visionária com mais de oitenta anos, com quem eu passava muitos intervalos a conversar. Foi a primeira pessoa, de várias que tive o privilégio de conhecer, a mostrar-me que a facilidade de comunicar com pessoas de todas as idades não tem prazo de validade. Levou-me a participar num grupo de reflexão criado por ela, a que chamava “Encontro”, e onde debatíamos temas.
Aos 13 anos, a Guida Pipa, nossa chefe dos escuteiros e proprietária de uma pequena livraria, deixava-nos por ali ficar horas a fio, a folhear livros e revistas e a debater temas.
Aos 17 anos, em resposta a uma qualquer moção interior ainda hoje inexplicável, comecei a trabalhar com crianças e jovens (o que me continua a ocupar a maioria das noites). Porque, das poucas coisas de que já então tinha certezas, e continuo a ter, é de que, para crescermos bem, temos de ter um tempo, um espaço e um grupo de confiança para falarmos, sobre nós e temas.
2. “A psicóloga clínica Briony Ariston é a única pessoa que fala com Jamie corretamente. O episódio 3 dá uma ideia adequada de quem Jamie é. Ele só quer ser amado e reconhecido.” (Owen Cooper, que representa o papel de Jamie Miller, um adolescente de 13 anos acusado do assassinato de uma colega de escola.)
Esta madrugada fiquei então a ver a série “Adolescência” da Netflix, quatro episódios de seguida, quatro horas filmadas em plano-sequência, sem cortes nem efeitos especiais. Só uma espécie de peça de teatro com um argumento brilhantemente escrito, atores desconhecidos que vão ficar para a história da representação e uma realização que soube respeitar e potenciar o material superior que tinha em mãos. Muitas questões me foram surgindo: O que é ser criança hoje? Como estão a educar as escolas? Qual é o estímulo da maioria dos professores para enfrentarem tanta violência e frustração? Como acreditar num filho que nos olha nos olhos e nega o que as imagens comprovam? Onde estão as nossas crianças seguras, se dentro de casa todos os perigos podem espreitar? O que leva uma criança de treze anos a matar outra à facada e nem ter verdadeira consciência dos seus atos? E, por fim, a frase final que marca toda a história: “Não devíamos ter feito mais?”.
A minha intuição é que sim: podemos fazer mais. Podemos abrir mais as portas dos quartos das nossas casas, podemos sentarmo-nos mais à mesa e conversar, podemos tirar um tempo que seja só para nós e o nosso filho, podemos colaborar em grupos das nossas escolas, paróquias, associações, centro universitários, escuteiros e guias e campos de férias…
A minha intuição é que sim: podemos fazer mais. Podemos abrir mais as portas dos quartos das nossas casas, podemos sentarmo-nos mais à mesa e conversar, podemos tirar um tempo que seja só para nós e o nosso filho, podemos colaborar em grupos das nossas escolas, paróquias, associações, centro universitários, escuteiros e guias e campos de férias…todos os que trabalham com crianças e jovens podem criar condições para grupos de debate, de partilha de vida e de pensar os tais temas que são transversais aos jovens de todos os tempos: Quem sou, de onde venho, para onde quero ir, o que são a bondade, o respeito, a verdade, a amizade e o amor, como lidar com a violência que existe em nós e nos outros, com a ansiedade e a frustração, com as expetativas que colocam tanta pressão sobre nós, com a humanidade e a eternidade de cada um. Temas, a vida está sempre a colocar-nos temas, e só em conjunto, uns com os outros, com a arte e a literatura e, para quem acredita, com Deus, podemos desatar tantos nós.
3. A rede comunitária e as redes sociais
Fomos, somos, criados para a Pangeia e estamos a fechar-nos em ilhas. Temos de trabalhar a deriva dos continentes ao contrário, numa logica de aproximação, de comunhão, de partilha. O segredo para um crescimento saudável é garantirmos aos nossos jovens a Rede, esse conjunto de pessoas na família, na escola, nas comunidades, que temos de procurar e/ou criar, que suportem os malabarismos nos trapézios da vida. Acredito profundamente, atrevo-me a dizer que com provas quase científicas, que, perante a Rede e as redes, cada um destes meninos mais ou menos crescidos vai escolher colos e abraços de verdade. Se lhes dermos atenção (e nós próprios resolvermos as nossas dependências), eles escolhem-nos a nós.
Sei do que falo. Faço-o há anos, em GVX (Grupos de Vida Cristã). Guiar crianças de escolas e colégios, de Lisboa e da província, das paróquias e de bairros como o Pragal. Pode parecer que são realidades diferentes, mas por dentro somos realmente todos iguais e todas estas jovens pessoas reagem com a mesma alegria a ter quem as ouça, responda às suas perguntas e lhes dê tempo, atenção e amor. Só isso. Ah! E se o mais importante é serem Grupos de Vida, o segredo que transforma tudo é serem de vida cristã.
Sobre a série:
(Netflix/ Março 13, 2025 (UK)/4 episódios/ argumento Jack Thorne e Stephen Graham/Direção de Philip Barantini. O elenco principal inclui Owen Cooper como Jamie Miller, Stephen Graham como Eddie Miller (pai de Jamie), Christine Tremarco como Manda Miller (mãe de Jamie), Ashley Walters como D.I. Luke Bascombe e Erin Doherty como Briony Ariston.)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.