Sempre que vem à baila um caso de potencial escândalo social ou político, aparece alguém, seja o envolvido ou um seu aliado, a alegar a legalidade do sucedido. A lei serve para isso mesmo: proteger o cidadão de eventuais acusações injustas. Numa sociedade que se afirma reger pelo “império da lei” (“rule of law”), a lei é fundamental e por isso deve ser referida e respeitada. É esse respeito inamovível que nos distingue da barbárie.
No entanto, vejo um problema significativo na ideia de que o critério da legalidade seja o fim de qualquer conversa, e de que o seu império se torne tirânico, dizimando quaisquer juízos éticos adicionais. Ao ceder o nosso debate aos códigos legislativos, viramos costas à nossa capacidade inata e fundacional de discutir, pensar e articular em termos éticos. E isso traz problemas.
Não concebo que tenhamos sido capazes de construir um sistema tão moralmente elevado e justo como o “estado de direito”, com direitos fundamentais e a auto-limitativa separação de poderes, para acabarmos por prescindir da nossa capacidade de discutir em termos éticos. E por isso fico sempre impressionado quando, em debates públicos ou privados, após alguém mencionar o respeito pela legalidade (ou o princípio da “presunção de inocência”, um dos seus corolários-mor,), os interlocutores abdicam amavelmente de prosseguir a discussão.
Ao ceder o nosso debate aos códigos legislativos, viramos costas à nossa capacidade inata e fundacional de discutir, pensar e articular em termos éticos. E isso traz problemas.
É verdade que, muitas vezes, a lei reflete o nosso sentimento ético diante de uma determinada realidade, e por isso a legalidade pode servir como fim de conversa. Porém, tantas outras vezes não existe lei para refletir o que sentimos eticamente ou, igualmente possível, a lei é contrária aos nossos juízos morais. Veja-se por exemplo o caso das regras processuais de admissibilidade da prova, que definem quando é que uma prova pode ou não ser utilizada em tribunal. Caso uma prova seja inadmissível segundo os critérios da lei, tudo altera do ponto de vista legal, mas nada muda do ponto de vista ético.
Compreendo o apego ao argumento da legalidade. É fundamental que a lei proteja os cidadãos de todo o tipo de abusos de poder e que sirva como dique aos instintos revanchistas e irrefletidos de justiça que todos temos. Não prescindo nem um milímetro do estado de direito. Mas vejo um outro motivo, menos nobre e enganador, para nos apegarmos tanto à bitola da legalidade: é que ela transmite um certo conforto psicológico. Externaliza o nosso juízo ético, dispensando-nos de grandes reflexões intelectuais sobre o que está certo ou errado. É à lei que passa a caber tudo isso. Se é censurado pela lei, é censurado por nós; se a lei nada diz, nós também não. Não há ninguém melhor a quem fazer “outsourcing” dos nossos juízos.
Externalizar todo o nosso juízo moral coletivo tem dois riscos: confere demasiados poderes ao legislador e deixa-nos privados de um dos exercícios que nos torna mais humanos, o de refletir sobre o bem e mal. Foi precisamente esse exercício, à margem da legalidade, que nos permitiu atingir conceitos como o próprio “estado de direito”; é esse o exercício que permite melhorar o próprio sistema legal. O preço de abdicar de discutir e refletir para além da legalidade representa uma ameaça ao próprio sistema que a criou.
Dispormos da nossa participação nesse debate, supostamente por respeito à lei, equivale a entregarmos, paulatinamente, a nossa consciência nas mãos do legislador. Passamos do império da lei à tirania do legislador.
Existe um “senão” ao fortalecimento do debate extra-legal: o crescimento de movimentos moralistas, que se impõem pela força e à margem da legalidade, propondo consequências desproporcionais e lançando campanhas de ataque com base em sistemas de pensamento que não encontram qualquer reflexo na legislação em vigor. É verdade, existe esse perigo. Mas é ilusório considerar que esses movimentos são fruto do crescimento do debate “extra-legal” ou moral. Pelo contrário, crescem quando o campo do debate público se torna seco e deserto, exclusivamente dominado por considerações legais.
Um debate público que seja meramente reduzido à lei conduz a uma sociedade onde o legislador é líder totalitário. Onde uma qualquer pressão em massa, por mais desprovida de senso e racionalidade, cavalga com muito maior liberdade, até se tornar lei. Enquanto nós, psicologicamente desconfortados, mas intelectualmente amputados, observamos sem capacidade de reação, porque fomos, ao longo do tempo, confortavelmente prescindindo da nossa capacidade de reflexão ética, em troca do mantra da legalidade.
Os únicos com capacidade de resposta aos movimentos moralistas, serão (e são já hoje) movimentos moralistas de sentido inverso, que lhes correspondem em tudo, sobretudo na ausência do uso da razão. Dispormos da nossa participação nesse debate, supostamente por respeito à lei, equivale a entregarmos, paulatinamente, a nossa consciência nas mãos do legislador. Passamos do império da lei à tirania do legislador.
Fotografia de Jan Mellström – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.