A sobranceria de ser pai

Absorvidos pelo quase desespero de não ser humanamente possível educar os filhos da maneira como gostaríamos enquanto trabalhamos somos dominamos pela sobranceria de considerar que eles deviam obedecer, compreender e concentrar-se mais.

Chegou 2021 um ano novo, mas com um cheiro a usado que mais parece 2020. Mais um confinamento, mais um malabarismo entre crianças, aulas, trabalho, enquanto a vida parece escapar pelo meio dos dedos e os níveis de frustração de pais e filhos persistem em alto nível.

Passaram já um incontável número de dias nas mesmas quatro paredes numa espécie de Big Brother familiar, via Zoom. Nesta espécie de “direto da casa” não é incomum haver um lapso e um microfone ficar ligado para logo se ouvir uma chamada de atenção mais intensa de um pai ou mãe que já há muito ultrapassou o limite da paciência. Por vezes a frustração é tal que quase se ouve na entoação da sua voz a famosa frase: “A nossa juventude adora o luxo (…), despreza a autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Os nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. (…)”.

Isto não deixa de ser irónico dado a frase ser atribuída a Sócrates (470-399 a.C.) e ainda por vezes ecoar nos comentários de pais.

O “cocktail” domiciliário ao qual não se vislumbra fim veio trazer um pouco do pior de cada um de nós à tona. Absorvidos pelo quase desespero de não ser humanamente possível educar os nossos filhos da maneira como gostaríamos, enquanto trabalhamos, somos dominamos pela sobranceria de considerar que eles deviam obedecer mais, compreender mais, concentrar-se mais, no fundo, serem tão ou mais adultos do que nós que lidamos com esta situação sempre na ponta da navalha.

Num pequeno momento de lucidez perguntei aos meus filhos: “Na última semana o que é que o pai fez que gostaram mais? E que gostaram menos?” A resposta instantânea e certeira deles: “Pai, podias ser um bocadinho menos rabugento quando estás cansado ou com sono… mas gosto muito quando brincas connosco e fazes cócegas e moche…” Sorri. Tinham razão. Naquele momento fui eu a ser educado por eles. Fiquei a pensar quantas vezes pedia aquele feedback. Ultimamente era raro.

Mais do que isso, é por vezes difícil, no meio do cansaço e birras, perceber que está ali um adulto em formação. Que as suas atitudes podem ser mais ou menos válidas, mas são motivadas por sentimentos ou decisões e não são aleatórias

Mais do que isso, é por vezes difícil, no meio do cansaço e birras, perceber que está ali um adulto em formação. Que as suas atitudes podem ser mais ou menos válidas, mas são motivadas por sentimentos ou decisões e não são aleatórias. Na enfatuação de sermos pais, mesmo com todo o tempo e cuidado que dedicávamos a pensar e executar o que julgamos ser o melhor para eles, por vezes não saíamos do pedestal do educador, no qual também erramos, pois estamos cansados e fazemos birra… mas à moda dos adultos e sem o perceber, muitas vezes.

Ao habituá-los a dar-nos feedback, consegui duas coisas que considero essenciais na vida em sociedade. A primeira, é que é preciso melhorar. Consegui que os pequenos pormenores que criavam atrito no dia a dia se reduzissem e passei a perceber melhor porque aconteciam e como os podia evitar. A segunda, que é tão ou mais importante, é que lhes demonstrei ser possível conversar sobre visões e atitudes das pessoas de uma forma construtiva e honesta sem ser rude ou ofensivo. Que isso implica indicar não só as coisas que podiam melhorar, mas também as que estão ótimas e que isso deve acontecer com regularidade.

Ao tornar uma conversa deste género regular começa a ser possível também explicar que todo o feedback é útil para conhecermos a perceção da outra pessoa, mas que nem tudo o que daí decorre irá ser aplicado. “Pai acho que me porto bem o suficiente para merecer jogar telemóvel todos os dias”

Antes de mais este é um feedback válido. Reflete o que ele sente, embora não seja viável. Explicar os motivos e a minha visão, para que ele tente ser um pouco mais empático com a de outros, é também um momento educativo importantíssimo. É passar para uma situação em que além do respeito por uma regra – do obedecer apenas- , se tenta perceber a regra. Até que, pouco a pouco, ele perceberá, por muito que lhe custe, que se fosse ele o Pai talvez a regra fosse a mesma…

Hoje em dia, infelizmente isto é um super poder. Quem é que não sente um frio na barriga quando lhe dizem “Posso dar-te feedback? / Podemos conversar?”. A conotação negativa impera, dado que raramente o fazemos para elogiar.

Perguntei-me se faltaria algo mais para os ajudar a tornar este super poder mais eficaz? Percebi que a empatia entre pessoas com opiniões diferentes é algo muito pouco tocado. Aliás, no processo educativo, por vezes evita-se até a exposição a ideias diametralmente opostas, que de base parecem erradas e muitas vezes são vão até contra valores base. No entanto, tal como no feedback, isto é também algo que me esforço sistematicamente por fazer.

Não falo da exposição por texto, vídeo ou redes sociais, dado que isso é geralmente um contacto supérfluo, que muitas vezes cai na conversa entrincheirada, agressiva e que nada tem de troca de ideias. Falo mesmo de um grupo de pessoas que se reúnem intencionalmente para discutir temas –  uma tertúlia –  e têm opiniões e visões do mundo diametralmente opostas.

Qual a diferença? A diferença é enorme e, ao mesmo tempo, simples: trata-se de conhecer as pessoas, saber à partida que desejam o bem e seguir os seus raciocínios que, por sua vez, levam a que possamos empatizar mais facilmente.

Quero – no tempo certo e na medida certa – expô-los mais a discussões adultas, civilizadas e de pessoas com visões opostas do mundo para que percebam que, ao contrário do que a televisão e meio mundo pretendem mostrar, ainda é bem possível, e desejável, saber conversar, discutir e argumentar de uma forma adulta, civilizada e aberta sobre todos os temas.

Afinal porque é que isto é relevante? Simplesmente porque é um dos temas que considero mais críticos da atualidade: a polarização da sociedade. Não pretendo educar os meus filhos como membros de uma determinada tribo que considera possuir a “A verdade”. Quero – no tempo certo e na medida certa – expô-los mais a discussões adultas, civilizadas e de pessoas com visões opostas do mundo para que percebam que, ao contrário do que a televisão e meio mundo pretendem mostrar, ainda é bem possível, e desejável, saber conversar, discutir e argumentar de uma forma adulta, civilizada e aberta sobre todos os temas.

Realço a questão de ser de uma forma aberta, ou seja, em que quando me predisponho a debater um tema estou aberto a mudar de opinião. Afinal, se os meus argumentos ruírem e os de outro vencerem será que eram mesmo válidos? Ao mesmo tempo, quando sobrevivem, fortalecem-se, e eu sei que sou limitado e que a minha perceção do mundo também o é.

Lentamente, espero estar a criar este espírito de liberdade e normalização do feedback que peço aos meus filhos e do confronto com mundos radicalmente diferentes que vão tendo. Tenho esperança de que, se cada um de nós tiver capacidade de educar neste sentido, as clivagens dramáticas do nosso tempo podem começar lentamente a reduzir-se, antes que estejamos ao nível crítico de uma sociedade como a dos Estados Unidos, ou se lá chegarmos, que seja assim que consigamos recuperar.

Ps: Segundo o novo feedback deles estou a conseguir ser menos rabugento.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.