Muito se tem falado da mais recente decisão dos “trumpistas” infiltrados no já não tão democrático e imparcial Supremo Tribunal dos Estados Unidos e que vieram impor uma decisão radical, retrógrada e discriminatória aos diferentes Estados daquele país. Falo, obviamente, da decisão Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization de 24 de junho de 2022. Por estarmos perante uma decisão cujo conteúdo tem sido manipulado achei por bem concentrar este texto no que resulta efetivamente dessa decisão – e não no que dizem da decisão em causa.
Começando pelo princípio, e até à decisão de 1973 tomada pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos em Roe v. Wade, cada Estado dos Estados Unidos podia decidir sobre o direito ao aborto. O mesmo é dizer que os representantes democraticamente eleitos pelo povo tinham esse poder. Prerrogativa essa que acabou em 1973 quando, em Roe v. Wade, o Supremo Tribunal veio prever uma série de regras que tornaram lícito o recurso ao aborto que, convém notar, era, à data, proibido pela maioria dos Estados.
Apesar de não ser suposto os tribunais legislarem, em Roe v. Wade o Supremo Tribunal estabeleceu regras assentes num critério trimestral. Resumindo, o ponto crítico estava no final do segundo trimestre, que, em 1973, era o momento em que o feto se tornava viável (isto é, o momento em que o feto conseguia sobreviver fora da barriga da mãe). A partir de Roe v. Wade os Estados não poderiam interferir no direito ao aborto até ao final do segundo semestre de gravidez. Qual o fundamento? Ao que parece, a tal “viabilidade”. Pergunto: será que chega? Parece que não. E digo-o seguindo os argumentos adiantados pelo Supremo Tribunal na mais recente decisão de 24 de junho de 2022.
Aqui chegados, porque é que só a partir do momento em que um feto é “viável” é que o Estado pode limitar o direito ao aborto? O que é que muda? Roe v. Wade não o explica e não há nenhuma explicação evidente. Na verdade, esta separação arbitrária nem sequer recolheu apoiantes junto de quem é a favor do direito ao aborto. Alguns argumentam que o feto não merece proteção legal enquanto não adquirir aquelas características que permitem qualificar o que seja “ser pessoa”, onde se incluem, entre outras, a capacidade de sentir, a autoconsciência e a capacidade de raciocinar. Contudo, e levando esta lógica até ao fim, teríamos muitos sujeitos que não poderiam ser considerados pessoas – como crianças pequenas e pessoas com determinados problemas cognitivos. Em qualquer caso, mesmo que se entenda que só se é pessoa a partir do momento em que se reúnem certas características, fica por saber porque é que é a viabilidade do feto que estabelece essa fronteira.
Em qualquer caso, mesmo que se entenda que só se é pessoa a partir do momento em que se reúnem certas características, fica por saber porque é que é a viabilidade do feto que estabelece essa fronteira.
Outro grande problema com este critério é que depende de fatores que nada têm que ver com as características do feto. A título de exemplo temos as condições de saúde num determinado momento bem como a qualidade das infraestruturas hospitalares. Como é fácil de ver, e tendo em conta o constante desenvolvimento da medicina, o momento a partir do qual um feto é viável mudou consideravelmente ao longo do tempo. Será que os fetos que não eram viáveis no século XIX e que já o são agora não eram pessoas e passaram a ser? A isto acrescenta-se o facto de um feto com 24 semanas poder ser viável numa cidade que tem hospitais mais capacitados e não o ser noutras zonas. Com que base é que a Constituição só protegeria os fetos que se enquadrassem no primeiro grupo de casos? Se a viabilidade é o critério que deve ter um significado moral universal, será razoável que um feto que nasce numa cidade dos Estados Unidos tenha um estatuto moral privilegiado em comparação com um feto localizado numa área remota de um país pobre?
A viabilidade de um feto depende ainda de critérios como o peso do feto e a saúde da mulher, sendo, ademais, bastante difícil dizer quando é que um preciso feto se torna viável. E mesmo que se conclua que o feto é viável, qual é a probabilidade de sobrevivência necessária para o podermos considerar viável? Será que um feto é viável se tiver 10% de probabilidade de sobreviver? E 30%? E 60%? Porquê?
A decisão tomada em Roe v. Wade foi considerada tão sólida que em Planned Parenthood of Southeastern Pa. v. Casey, em 1992, o Supremo Tribunal limitou-se a aderir ao essencial daquela decisão de 1973. Ou seja, que um Estado não pode proteger a vida de um feto antes de este ser viável. Na verdade, e paradoxalmente, Casey também revogou Roe v. Wade em parte. O critério deixou de ser a viabilidade do feto e passou a ser uma regra igualmente errada e incerta: os Estados não podiam adotar regras que impusessem um “ónus excessivo” no direito que as mulheres têm ao aborto. Pergunta: o que distingue um ónus excessivo de um ónus razoável? Ao que parece nem o Tribunal esclareceu devidamente.
Agora, e para o que interessa, onde é que a Constituição dá guarida ao tão propalado direito ao aborto? Segundo os seus defensores, e qual lista indiscriminada que só não é infinita porque também não o é a Constituição, o direito ao aborto resulta da 1.ª, 4.ª, 5.ª, 9.ª e 14.ª emendas constitucionais. Não sendo este o espaço para analisar em pormenor cada uma destas emendas, o argumento central acaba por assentar na 14.ª emenda de onde resulta que nenhum Estado deve privar qualquer pessoa da sua vida, liberdade, ou propriedade “without due process of law”.
O tema é, portanto, o de saber se ao abrigo desta 14.ª emenda se pode dizer que ao permitir que os diferentes Estados dos Estados Unidos proíbam o aborto se está a limitar a liberdade (é melhor saltar a parte da vida) de abortar, sem um “due process of law”.
Sobre isto, e entrando agora na decisão Supremo Tribunal que, bastante moderadamente, veio revogar o decidido em Roe v. Wade e em Casey, o Tribunal entendeu que por mais amplo que seja o conceito de “liberdade” este não pode incluir tudo. Se assim não fosse as palavras deixariam de ter significado. Em resumo, e atalhando caminho, o Tribunal entendeu que o direito ao aborto não entra no conceito de liberdade referido na 14.ª emenda e que o mesmo não está enraizado na história e tradição do país. Salienta, ainda, que a 14.ª emenda não pode ser transformada nas preferências políticas do Supremo Tribunal, acabando a remeter a decisão para cada Estado.
Como bem se nota, e ao contrário do que vem sendo veiculado nos nossos meios de comunicação social (quais fake news que só são falsas quando não exprimem a opinião pretendida), o Supremo Tribunal dos Estados Unidos não veio proibir o aborto e nem sequer o veio limitar. Com efeito, relegou a decisão para os Estados que são quem deve legislar. É, portanto, uma decisão moderada e que fica a meio caminho entre os que defendem o direito ao aborto e os que o rejeitam. Pena é, na minha opinião, que não se tenha ponderado se as mesmas razões que rejeitam um suporte constitucional para o direito ao aborto não justificam a existência de um direito à vida do feto – esse sim, abrangido pelo direito à vida e fundado na história e tradição dos Estados Unidos.
Pena é, na minha opinião, que não se tenha ponderado se as mesmas razões que rejeitam um suporte constitucional para o direito ao aborto não justificam a existência de um direito à vida do feto – esse sim, abrangido pelo direito à vida e fundado na história e tradição dos Estados Unidos.
Em qualquer caso, e como bem nota o Supremo Tribunal, as decisões que retiram da Constituição princípios que não podem, com razoabilidade, ser lidos no seu texto, usurpam a autoridade do povo. E isto porque essas são decisões que o povo nunca tomou e sobre as quais nunca se pronunciou. Donde, apesar de em Roe v. Wade se ter concluído que a Constituição conferia, implicitamente, um direito ao aborto, esta conclusão não tem qualquer fundamento no seu texto, história ou precedente.
Seguindo sempre o Supremo Tribunal, Roe v. Wade assentou numa narrativa histórica errada, desconsiderou a diferença fundamental entre os precedentes invocados e a questão a decidir e inventou um conjunto de regras com diferentes restrições para cada trimestre de gravidez. Não explicou, obviamente, como é que estas se retiravam da Constituição. Apesar de, obviamente, nunca o dizerem, isto foi silenciosamente reconhecido em Casey, onde o Supremo Tribunal acabou por abandonar muitos dos argumentos de 1973, socorrendo-se, ao invés, do igualmente vago “ónus excessivo”.
Em termos históricos, Roe v. Wade destacou, por exemplo, o facto de, em civilizações antigas, o infanticídio ser largamente aceite. Contudo, e quando chegou à altura de saber como é que os Estados regulavam o aborto à data da 14.ª emenda, o Tribunal não disse quase nada. Disse, apenas, que os Estados eram mais restritivos na sua regulação do aborto, mas intuíam que estas não tinham como objetivo proteger a vida dos fetos. Para além disso, e com boas provas agora dadas pelo Supremo Tribunal, em Roe v. Wade defendeu-se, erradamente, que a common law nunca tratou o aborto de fetos que já se mexiam (o designado “post-quickening abortion”) como um crime.
No que respeita aos precedentes, Roe v. Wade cita uma série de decisões anteriores, mas que pouco têm a ver com o caso em discussão. A propósito do direito à privacidade, onde se pretendia enquadrar o direito ao aborto, refere-se o direito de impedir a divulgação de informações e o direito de tomar decisões pessoais sem a intervenção do Estado. Centrando-nos neste segundo grupo as decisões tomadas estão longe do que se pretende com o direito ao aborto. Sobraram decisões relacionadas com casamento entre pessoas de diferentes etnias, procriação (em especial, o direito de não esterilizado) e contraceção. Contudo, e como não seria necessário explicar, nenhum destes casos envolve o que é distinto no aborto: o seu efeito naquilo que Roe v. Wade chama de “vida potencial”.
Em suma, enquanto em Roe v. Wade se formulam regras que seria possível extrair do direito à liberdade especificamente consagrado na Constituição, na decisão que agora o revoga, remete-se essa decisão para os Estados, cujos representantes democraticamente eleitos teriam legitimidade para legislar.
De tudo o exposto, resulta que, afinal, a decisão do Supremo Tribunal não é assim tão desrazoável e arbitrária como se quer fazer parecer. Na verdade, e lendo a decisão, parece que arbitrariedade estava mais em Roe v. Wade do que na mais recente decisão que a revogou. Com efeito, não basta invocar uma aparente discriminação das mulheres como contra-argumento absoluto à proibição do aborto – como se a discriminação numa matéria em que apenas as mulheres são capazes (por enquanto) fosse algo de evidente.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.