Quatro semanas volvidas, a nossa Quaresma avança a galope. A cor roxa impõe-se nas Igrejas e o apelo à prática da oração, do jejum e da esmola faz-se ouvir em meditações e homilias. Tudo por um motivo: centrar o nosso coração no essencial da fé: a irradiação viva e nova do rosto de Cristo em nós. Estes 40 dias despertam-nos para preparar dignamente os dias da sua Paixão, Morte e Ressurreição, como quem prepara uma morada onde Ele possa ressuscitar.
Figura ímpar nesta preparação é o misterioso José de Arimateia de quem nos falam os Evangelistas, quando narram os eventos de Sexta-Feira Santa:
«Ao cair da tarde, veio um homem rico de Arimateia de nome José, que se tinha tornado também ele discípulo de Jesus. Este, indo ter com Pilatos, pediu-lhe o corpo de Jesus. Tomando o corpo, José envolveu-o num lençol puro e pô-lo num sepulcro novo, escavado na rocha.» (Mt 27, 57-61)
José de Arimateia é um personagem enigmático. Durante a vida pública de Jesus, nada ouvimos dizer sobre ele. Está, todavia, presente nos seus mistérios dolorosos: desce Jesus da cruz após a sua crucifixão, juntamente com Nicodemos, e traz consigo um pano de linho puro para usar na sua sepultura. A audácia da sua fé ficou assim marcada para a História como aquele que não teve medo de se aproximar do condenado porque ousou ver mais longe.
Encontramos em José de Arimateia a revelação da nossa missão e identidade, nesta Quaresma. Vivemos o tempo favorável para “tecer” o pano de linho puro, que será oferecido ao Senhor. Ele é feito com as agulhas da esmola, da oração e do jejum; com as linhas da fé, da esperança e da caridade.
A candura deste lençol recorda-nos a veste branca que nos revestiu no dia do nosso batismo, sinal da vida nova que nos foi oferecida. As manchas do pecado que se vão acumulando, por mais entranhadas que pareçam, desaparecem, estes dias, na confissão que fazemos. É a ação branqueadora de Deus nas nossas vidas que nos prepara para viver os mistérios pascais.
Estes 40 dias despertam-nos para preparar dignamente os dias da sua Paixão, Morte e Ressurreição, como quem prepara uma morada onde Ele possa ressuscitar.
O pano branco que envolveu Cristo é o mesmo que foi encontrado no Domingo de Páscoa pelos discípulos, quando correram ao sepulcro. É o Santo Sudário que está presente, segundo a tradição, na Basílica de Turim, em Itália.
Dizem os entendidos na matéria que algumas das marcas presentes nesta relíquia são, como seria de esperar, de sangue. Mas outras não. Após longos estudos, chegou-se à conclusão de que são consequência de uma forte e inexplicável irradiação que deixou impresso o rosto e o corpo do Senhor no pano de linho. Afinal, o pano de José deixou de lhe pertencer para passar a ser um “retrato” de Jesus.
Esta é uma das marcas decisivas da nossa fé: tudo aquilo que oferecemos a Deus é-nos restituído de um modo completamente novo e transfigurado. Damos segundo a nossa medida e recebemos de acordo com a medida de Deus. José ofereceu um lençol branco, e o Pai encarregou-se de gravar com luz a verdadeira imagem do seu Filho.
É verdade que somos nós quem traz o pano. Pomos todo o nosso esforço em entrelaçar os fios da fé, da esperança e da caridade no concreto da nossa vida. No entanto, é Deus quem marca a fogo o seu rosto em nós. E isso acontece sempre no segredo do nosso íntimo.
Poderíamos, com razão, dirigir-nos a este pano branco alterando as palavras do Precónio (que se reza na Vigília Pascal): «Ó Sudário bendito, o único a ter conhecimento o tempo e a hora em que o Cristo ressuscitou do sepulcro». E poderíamos perguntar-lhe: como é ser trespassado pela luz do ressuscitado? Como é ter gravado em si o rosto de Cristo? Como dizia São João Paulo II em verso: «Oeu nome nasceu no próprio instante // em que o teu coração se fez imagem, semelhança da verdade. // Teu nome nasceu ao invadir-te a Beleza».
Fotografia de Jeremy Bezanger – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.