A política, hoje

O desinteresse e até o mal-estar com a política não saíram do nosso quotidiano. Do revolucionário “tudo é político” parece ter-se passado para um “nada pode ser político”. Mas a política deixou de nos interessar? O político saiu das nossas vidas?

Tem mesmo a certeza de que quer ler este texto? Segundo os dados de diversas vagas do Inquérito Social Europeu, Portugal tem sido, ao longo das últimas duas décadas, dos países da União Europeia em que os cidadãos revelam menor interesse pela política. É certo que, conjunturalmente, algo parece ter mudado desde o pico da crise financeira e económica. Desde 2013 que os resultados do Eurobarómetro no indicador que avalia a satisfação com a democracia e a percentagem de inquiridos que expressam a sua confiança nas diversas instituições políticas têm registado um crescimento (ou recuperação) que deve ser assinalado, quer em termos absolutos, quer, sobretudo, na comparação com outros países.

Mas, em termos mais impressivos, o desinteresse e até o mal-estar com a política não saíram do nosso quotidiano. Do revolucionário “tudo é político” parece ter-se passado para um “nada pode ser político”. Mas a política deixou de nos interessar? O político saiu das nossas vidas? Se calhar nunca sairá e talvez por isso, apesar do que se diz e paradoxalmente, esteja mais presente do que alguma vez tenha estado. O incómodo não deixa de ser uma atitude política e o desinteresse quanto mais declarado, mais político se revela – “A minha política é o trabalho.” Sim, mas a esta afirmação segue-se, em regra, uma contundente opinião sobre o sistema fiscal e o nível de impostos que o Estado deve adotar.

A história política dos últimos dois séculos é também a história da democratização e do alargamento do interesse e da participação política a todos os estratos da sociedade. É certo que desde o último quarto do século XX que abundam os estudos sobre a desafetação de formas de participação política como a militância partidária e de comportamentos como a volatilidade e a abstenção eleitoral. Historicamente, por motivos de exclusão dos direitos políticos e, mais tarde, por motivos sociais prevalecentes e observados desde os primeiros estudos empíricos do comportamento eleitoral, aqueles que tinham maior capacidade económica e um nível de instrução mais elevado eram aqueles que mais votavam e mais apetência revelavam para os diversos graus de participação política. Hoje, apesar de não ser correto afirmar que essa relação tenha desaparecido, algumas atitudes de apatia política podem também ser relacionadas com um determinado nível de prosperidade e de educação formal de sociedades e de indivíduos, quer por uma certa normalização da vida das democracias, quer por desconfiança ou descrença motivadas não pelo desconhecimento, mas por uma atitude crítica sustentada numa opinião mais informada.

Na sociedade portuguesa do século XX, as regras não escritas da etiqueta familiar da alta burguesia sempre recomendaram que de dinheiro e de política não se falava à mesa. O “povo” foi alternadamente mesclando o respeitinho, com a tradicional desconfiança em relação ao poder e às elites retratada nas caricaturas de Bordalo Pinheiro. Com a revolução democrática os filhos da burguesia e do povo convergiram numa participação política sem precedentes na história portuguesa. Ao entusiasmo democrático inicial, seguiu-se a normalização e o desencanto, consubstanciado no desinteresse e na expressão de alguma acrimónia em relação à política.

Curiosamente, a mesma época que assiste à queda ininterrupta da circulação de jornais em papel (outrora uma medida de aferição das sociedades livres, informadas e politizadas) é com toda a certeza a que tem o maior número de cidadãos, em todo o mundo e a toda a hora, a emitir opiniões sobre todo o tipo de temas e problemáticas que são comuns à sociedade, e, como tal, políticas. Das alterações climáticas, aos casos de corrupção, as redes sociais são o novo espaço público de expressão de opiniões e, em certa medida, de participação política.

Contudo, esse tipo de participação toma sobretudo a forma de “indignação” em relação à própria política e não de meio para agir em relação ao que nos é comum, de procura do bem comum. Aliás, a própria noção de bem comum parece ter sido afastada da política. É frequente que hoje a vida política seja associada mais ao vício do que à virtude. Numa dissertação recentemente publicada (Virtude e Política, Almedina, 2017), Pedro Rosa Ferro assinala com pertinência o paradoxo de no espaço público se lançar permanentemente a suspeição de os políticos não praticarem a virtude, ao mesmo tempo que a teoria política contemporânea se dedica pouco à virtude em política e que o conceito de virtude é pouco valorizado no quotidiano.

 

Neste contexto, como poderá alguém que procure na sua vida o bem comum sentir, hoje, atração pela política? Danniel Innerarity, num livro que merece leitura atenta (A Política em Tempos de Indignação, D. Quixote, 2016), refere-se à “democracia sem política” e à “cidadania intermitente” para descrever estas sociedades em que muitos têm os meios e a oportunidade para expressar as suas opiniões, mais ou menos fluídas, e as suas críticas e oposição em relação aos poderes instituídos, mas poucos parecem dispostos ou capazes de converter essa amálgama numa participação ou projeto político consequente.

Porém, uma “cidadania inteira” (por oposição à “cidadania intermitente”) não deve, ou talvez não possa mesmo, excluir o interesse e a participação política. Não que haja nestas linhas qualquer romantismo por uma participação de pendor revolucionário permanente ou ilusão em relação a novas formas de democracia direta. As democracias representativas, com os seus limites e as suas virtuosas imperfeições, são o melhor que podemos ter. A política, ao contrário da religião, é o lugar das dúvidas, não das certezas. Mas também é o lugar onde, de diferentes formas e em diversos graus, nos podemos encontrar para conversar, para debater, para agir sobre o que nos é comum.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.