No dia 13 de março de 2020, a Conferência Episcopal Portuguesa tomou a corajosa e responsável decisão de suspender a celebração comunitária da Eucaristia, resolução que vimos replicada por todo o mundo católico. Evitou-se, deste modo, que aquela se tornasse num preocupante foco de propagação do novo coronavírus e, com isso, muitas vidas foram salvas. Dois meses e meio depois, as igrejas foram reabertas e todos os fiéis puderam aproximar-se novamente da mesa da comunhão.
Nesse tempo entre suspensão e reabertura, muito se disse e escreveu sobre o encerramento das igrejas, sendo um dos mais badalados episódios o vídeo dirigido aos “queridos bispos” reclamando “a devolução da santa missa”. Apesar de inusitado, este teve o condão de expor como, no que respeita à Eucaristia, a Igreja não esteve toda no mesmo barco. De fato, a celebração da Eucaristia nunca foi suspensa, mas apenas a sua celebração em comunidade. Que é o mesmo que dizer, os leigos deixaram de ter acesso à Eucaristia, mesmo sendo esta a “fonte e cume de toda a vida cristã.” (CIC 1324)
Como fez notar o teólogo Bernardo Pérez Andreo, o confinamento devido ao coronavírus tornou evidente a desigualdade existente dentro do catolicismo, “que deixa os padres e bispos com a possibilidade de celebrar e comungar, discriminando os outros fiéis, que ficarão à míngua.” Para alguns membros do clero esta situação não foi verdadeiramente preocupante. Isso mesmo revelou o texto publicado a 31 de março pela Conferência Episcopal da Úmbria, que secundarizou a participação dos leigos na Eucaristia, levando a respostas duras, mas necessárias por parte do teólogo Andrea Grillo e do jornalista e chefe de redação da La Croix International Robert Mickens.
Tornou-se assim ainda mais expressiva a separação entre sacerdotes e leigos, estando estes remetidos para uma distância da Eucaristia ali ainda maior, numa evidente oposição à participação ativa desejada pelo Concílio Vaticano II.
A maior parte do clero, no entanto, não se esqueceu das suas comunidades. Nesse sentido, proliferaram rapidamente as missas transmitidas em diversas plataformas tecnológicas, com o apoio dos bispos. D. Jorge Ortiga, por exemplo, referiu na “Nota Pastoral para organizar a pastoral após o estado de emergência nacional” divulgada a 3 de maio, que “Ainda não é oportuno celebrar missas com o povo, (…) [pelo que] o sacerdote deverá celebrar sozinho, todos os dias, e, se for o caso, transmitindo a Eucaristia pela internet.” Estas missas, apesar de bem-intencionadas, não alteraram a dualidade eclesial: os sacerdotes celebravam e comungavam sozinhos, enquanto os leigos não podiam mais que assistir, em direto ou em diferido até, se assim quisessem. Tornou-se assim ainda mais expressiva a separação entre sacerdotes e leigos, estando estes remetidos para uma distância da Eucaristia ali ainda maior, numa evidente oposição à participação ativa desejada pelo Concílio Vaticano II. Ou seja, em vez de se terem procurado novas possibilidades de celebração pelas comunidades, houve apenas “vinho velho em odres novos”, ou como referiu Andrea Grillo, “formas velhas, espalmadas em todos os suportes: televisão, computador, smartphone, tablet, plasmas.”
Para Robert Mickens, esta “participação virtual” dos leigos na Eucaristia não só foi um absurdo, mas também uma crueldade. E criou uma parábola a partir da refeição de Ação de Graças – encontro familiar primordial no seu país de origem, os Estados Unidos da América – para o mostrar: “Não se pode ter uma missa virtual, assim como não se pode ter um jantar de Ação de Graças virtual. Este último seria extremamente estranho e até absurdo, tal como a primeira se está a revelar para muitos católicos, durante estes dias de confinamento litúrgico. Pense nisso. E se seus pais estivessem em casa sozinhos, mas quisessem preparar um imenso banquete de Ação de Graças e compartilhá-lo pela televisão ou transmiti-lo ao vivo para o resto da família? Para fazer a analogia funcionar, digamos que os filhos e os parentes que estão a participar nesse banquete virtual não têm nenhuma possibilidade de preparar a sua própria refeição. Eles só podem assistir enquanto os pais realizam o ritual da festividade. E assim ficam a assistir aos seus pais a comer, enquanto eles não têm nada. (…) Isso não seria apenas absurdo. Seria cruel. Pais verdadeiros e amorosos não colocam os seus filhos nessa situação. (…) Bons pais não privam seus filhos [de alimento].”
Não é preciso ser pai ou mãe para compreender o que aqui se afirma. Se tal história acontecesse, ocuparia certamente as primeiras páginas dos jornais e os pais seriam, no mínimo, acusados de maus-tratos dos filhos.
E a Igreja (ou parte dela, mais concretamente)? Foi mãe amorosa durante o confinamento, ao deixar tantos sem possibilidade de comungar? Numa Praça de S. Pedro vazia, o Papa Francisco afirmou que “estamos todos no mesmo barco.” No entanto, a imagem que a Igreja deu de si mesma foi a de um barco que separou os passageiros entre primeira e segunda classe. Para Pedro Gil, terá sido contra a vontade de todos: “Os fiéis queriam sacramentos, mas não era possível. Os bispos o que mais gostariam era abrir o acesso aos sacramentos, mas não era possível.” Ou seja, todos desejavam que todos tivessem acesso à comunhão, mas nada havia a fazer, nem sequer rezar e refletir sobre essa (im)possibilidade.
Ou seja, todos desejavam que todos tivessem acesso à comunhão, mas nada havia a fazer, nem sequer rezar e refletir sobre essa (im)possibilidade.
Seria mesmo assim? Porque ao Deus em que cremos, nada é impossível. Isso mesmo disse o anjo a Maria e também Jesus várias vezes aos discípulos. Sempre que estes acharam que as portas estavam fechadas, o Espírito Santo mostrou o contrário. Tentámos, sequer, escutar os seus sinais durante o confinamento? Ou as certezas que geram os supostos impossíveis taparam os nossos olhos e ouvidos, não restando aos filhos mais que continuar a assistir “a seus pais comerem, enquanto eles não têm nada”?
Vários recordaram que os leigos não estavam de mãos vazias, pois tinham acesso à “comunhão espiritual”, para uns “uma espécie de «conserto» nesta emergência”, para outros “uma prática muito recomendada quando não é possível receber o Sacramento.” No entanto, como perguntou, e bem, o P. Anselmo Borges, “Para ser real, não tem a comunhão de ser sempre espiritual?” Opinião semelhante apresentou o P. José Frazão Correia, em conversa partilhada no Ponto SJ: “Não gosto de ouvir dizer «comunhão espiritual» para falar da comunhão sem corpo e sem sangue do Senhor. (…) Espiritual é quando eu comungo o corpo e o sangue do Senhor, e, através dessa comunhão corpórea, eu recebo o espírito do ressuscitado, que não recebo de outro modo. Sem esse corpo e esse sangue, não recebo. Precisamente porque é o corpo e é o sangue próprio do Senhor, que não é substituível por nenhum outro modo.”
Sabendo-se que a comunhão não é substituível, duas hipóteses restavam: ou deixava-se a maioria do Povo de Deus sem comunhão, continuando esta reservada aos sacerdotes, ou procurava-se uma maneira daquela chegar aos que dela estavam privados.
Inspirados na prática prevista e recomendada extraordinariamente pelo Ritual Romano de distribuição da comunhão fora da missa a pessoas impossibilitadas de participar na celebração eucarística (Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa, 14), na Alemanha experimentou-se e em Itália debateu-se a disponibilização de pacotes com hóstias consagradas para os leigos recolherem na igreja e comungarem em casa. Apesar da proximidade desta proposta com uma prática regular da Igreja, esta não deixou de escandalizar o Cardeal Robert Sarah, que a considerou “absolutamente impossível, Deus merece respeito. Não se pode colocá-lo em um saquinho.” E acrescentou: “Se é verdade que a privação da Eucaristia é certamente um sofrimento, não se pode negociar sobre o modo de comungar.” Apesar do sofrimento ser de outros e não do próprio.
Em sentido contrário, procurando cuidar dos que estavam privados da comunhão, o P. Anselmo Borges apresentou uma outra possibilidade: “Na situação de confinamento em casa, porque é que as pessoas, isoladas ou em família, ao participar na Eucaristia pela televisão ou outros meios, não hão de concelebrar e comungar realmente? (…) Assim, frente à televisão, coloque-se na mesa pão e vinho, também uma vela, símbolo da luz de Cristo, acompanhe-se a celebração, escutando a Palavra de Deus, oferecendo o pão e o vinho, símbolos da nossa vida, que pedimos seja transformada e vivificada em Cristo ao serviço da Humanidade inteira.”
Também esta proposta foi imediatamente contestada, desta feita pelo P. Gonçalo Portocarrero de Almada que, em artigo publicado no jornal Voz da Verdade, manifestou o seu escândalo com esta forma de comunhão, sem sugerir qualquer alternativa: “Infelizmente, este texto (…) termina com um convite verdadeiramente escandaloso (…). Ao sugerir que qualquer fiel pode validamente celebrar e consagrar a Eucaristia, e depois «comungar realmente» e não apenas espiritualmente, está-se a convidar os fiéis a praticarem um acto que não só seria nulo – a consagração eucarística só pode ser validamente realizada por um sacerdote – como também sacrilégio.”
Não traz cada cristão em si, pelo batismo, o selo de sacerdote?
E Jesus, que diria? Condenaria quem assim comungasse? Deixaria ele a grande maioria do seu Povo privado do seu corpo e do seu sangue? Ou seria o Bom Pastor que providenciaria para que nenhuma das suas ovelhas ficasse sem alimento? A resposta encontramo-la nos Evangelhos: “Ora num dia de sábado, indo Jesus através das searas, os discípulos puseram-se a colher espigas pelo caminho. Os fariseus diziam-lhe: «Repara! Porque fazem eles ao sábado o que não é permitido?» Ele disse: «Nunca lestes o que fez David, quando teve necessidade e sentiu fome, ele e os que estavam com ele? Como entrou na casa de Deus, ao tempo do Sumo Sacerdote Abiatar, e comeu os pães da oferenda, que apenas aos sacerdotes era permitido comer, e também os deu aos que estavam com ele?»” (Mc 2,23-26)
Jesus e os fariseus olharam para a mesma situação, mas viram coisas diferentes. Os fariseus só conseguiram olhar para o que não era permitido segundo a lei, enquanto Jesus viu David e seus companheiros e a sua fome. Jesus colocou as pessoas sempre à frente da lei, surpreendendo frequentemente com soluções novas, impensáveis e tantas vezes escandalosas para tantos, por irem contra hábitos, tradições e muitas certezas tidas como mais absolutas que Deus. Não somos convidados também hoje a abrir-nos à surpresa e a possibilidades nunca antes vistas? Não nos dirá Jesus hoje também: “Vou realizar algo de novo que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um caminho no deserto.” (Is 43,19)
Durante o confinamento, a Igreja doméstica ganhou uma expressão que não conhecia há quase dois mil anos. Com a ajuda de guiões disponibilizados para orientar as celebrações dominicais, muitos leigos fizeram a experiência dos primeiros cristãos, tornando as suas casas em pequenas igrejas. Exceto quando chegavam à “fração do pão”, pois no momento da liturgia eucarística, os guiões remetiam-nos para a “comunhão espiritual”. Porque mais do que isso não era possível. Ou era?
Não traz cada cristão em si, pelo batismo, o selo de sacerdote? Não chamou S. Pedro todos os membros da Igreja – e não apenas alguns – “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido em propriedade, (…) vós que outrora não éreis um povo, mas sois agora povo de Deus” (1Pe 2,9-10)? Povo de Deus que é sinónimo de Povo sacerdotal, como bem referiu D. José Policarpo na Quaresma de 2003, acrescentando que ”a ideia de um Povo sacerdotal e não apenas de um povo onde há sacerdotes é unanimemente afirmada na Sagrada Escritura, pelos Santos Padres e pelo Magistério.” Não teria sido possível, por conseguinte, conceder a todos os batizados uma ordenação temporária e particular que possibilitasse a todos fazer o que neste momento é exclusivo de um sacerdote ordenado e, com isso, aceder também à comunhão?
Diz o Catecismo da Igreja Católica, no nº 1256, que “em caso de necessidade, qualquer pessoa, mesmo não batizada, desde que tenha a intenção requerida, pode batizar utilizando a fórmula batismal trinitária. A intenção requerida é a de querer fazer o que faz a Igreja quando batiza. A Igreja vê a razão desta possibilidade na vontade salvífica universal de Deus e na necessidade do batismo para a salvação.”
Se a Igreja permite tal possibilidade para este sacramento primordial para todos os cristãos, não teria sido possível permitir a comunhão do corpo e sangue de Jesus a todos os batizados com intenção requerida de querer fazer o que faz a Igreja quando celebra e consagra? Será impossível a Igreja ver a razão desta possibilidade na vontade salvífica universal de Deus e na necessidade da comunhão do corpo e sangue de Cristo para a salvação? Quanto bem não teria este gesto gerado? Quanta luz não teria trazido ao mundo? Alguém acredita verdadeiramente no seu coração que o Espírito Santo não o teria apoiado? E Jesus, que diria?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.