A Igreja, a política e os populismos “católicos”

O aparecimento nos últimos anos de forças políticas populistas, que usam símbolos religiosos católicos, tornou-se um desafio maior às consciências católicas, pelo que o nosso crivo precisa de ser ainda mais refinado quando toca a discernir.

Há quem afirme, em nome de um determinado entendimento da laicidade do Estado de Direito, que as Igrejas – e particularmente a Igreja Católica – não se deveriam imiscuir nos assuntos políticos. Pelo contrário, há quem considere que as Igrejas – e particularmente a Igreja Católica – deveriam ter um pensamento único em termos políticos, ou que estas devem estar vinculadas a um determinado quadrante político ou mesmo um determinado partido. Confrontando-nos com a Doutrina Social da Igreja Católica, nem uma, nem outra posição parecem ter grande sentido.

Como muito bem afirmou o Concílio Vaticano II na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, não há nenhuma realidade humana que seja alheia à Igreja Católica e, portanto, a Igreja tem uma visão sobre organização política da sociedade, enquanto dimensão fundamental para a promoção do bem comum e da dignidade da pessoa humana e da justiça. Ao mesmo tempo, no seu n.º 76, esta Constituição Pastoral afirma que a Igreja “não está ligada a qualquer sistema político determinado” e que, portanto, a consciência bem formada dos cristãos poderá levar a opções políticas diversas no concreto. Este documento afirma ainda que “a ninguém é permitido (…) invocar exclusivamente a favor da própria opinião a autoridade da Igreja”.

Reafirmando tal ensinamento, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), liderada pelo então Cardeal Ratzinger, defendeu em 2002 que a ideia de liberdade política não significa que “todas as conceções do bem do homem têm a mesma verdade e o mesmo valor” (Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, 4). O mesmo documento declara que “não cabe à Igreja formular soluções concretas – e muito menos soluções únicas – para questões temporais, que Deus deixou ao juízo livre e responsável de cada um”. Ao mesmo tempo, a CDF relembrava que, segundo uma consciência bem formada, um cristão não deveria votar a favor de um programa político ou de uma lei que contradissessem conteúdos fundamentais da fé e da moral.

Como critérios orientadores para a boa formação das consciências em termos políticos, aquele documento apresentava alguns temas que, tendo em conta o contexto histórico e político de então, apareciam “fundamentais e irrenunciáveis” em termos de fé e moral: as questões do aborto e da eutanásia, a proteção da família e do embrião humano, a garantia da liberdade de educação e liberdade religiosa, a tutela dos menores e a libertação das vítimas de formas modernas de escravidão, a promoção de uma economia ao serviço da pessoa e do bem comum e a promoção da paz.

Falando concretamente ao Congresso Norte-Americano sobre os migrantes, o Papa convidava os membros daquele órgão de soberania a não se assustarem com números mas antes a “olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor possível às suas situações”, de forma “humana, justa e fraternal”

A estes critérios que continuam certamente atuais, o Papa Francisco, durante o seu Pontificado, tem acrescentado outros temas fundamentais e irrenunciáveis que devem iluminar a formação de uma boa consciência política cristã. Em fidelidade à ação de Jesus Cristo tal como nos é descrita nos Evangelhos, na programática Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG) ou na Encíclica Laudato Si’, nas visitas feitas as países e lugares periféricos ou através do Sínodo da Amazónia, o Papa argentino tem exortado os cristãos para que, na formação da sua consciência política, tenham como critérios fundamentais e irrenunciáveis – a par dos já mencionados – a inclusão social dos pobres e marginalizados e a questão da paz e do diálogo social (cf. EG, 185). Neste sentido, o Papa tem posto a tónica na promoção de políticas que favoreçam uma ecologia integral e a atenção e inclusão das diversas periferias existenciais, entre as quais inclui os pobres, os migrantes, os povos indígenas, os idosos, os que procuram nos países mais ricos uma oportunidade para escapar à miséria, as vítimas de qualquer tipo de tráfico ou violência, entre outros.

A proposta política de Francisco pode resumir-se na expressão cultura do encontro. Por diversas vezes e em diferentes documentos ou discursos, o Papa tem-nos proposto “superar o medo para nos abrirmos ao encontro”, porque “o encontro com o outro é também encontro com Cristo”. Tal como continua Francisco, é Jesus “quem bate à nossa porta faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, prisioneiro, pedindo para ser encontrado e assistido”.

Falando concretamente ao Congresso Norte-Americano sobre os migrantes, o Papa convidava os membros daquele órgão de soberania a não se assustarem com números mas antes a “olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor possível às suas situações”, de forma “humana, justa e fraternal”. Com a cultura do encontro, no fundo, o Papa quer contrariar uma tendência presente nas sociedades do nosso tempo: a de “descartar quem quer que se demonstre problemático”.

Com efeito, o ensinamento emanado pelo Magistério ao longo das últimas décadas coloca os cidadãos católicos num papel de grande responsabilidade nos tempos atuais. Em primeiro lugar, embora sabendo que possa haver diversas propostas bem intencionadas, um católico necessita ter claro que nem todas as conceções de bem e verdade sobre o ser humano têm o mesmo valor à luz do Evangelho. Portanto, será importante não cair na ingenuidade de achar que é tudo bom e tudo igual. Em segundo lugar, se nas décadas finais do século passado e nos inícios deste século a ênfase pastoral era posta sobretudo nas questões supra mencionadas – e portanto a distinção entre aceitável ou não aceitável parecia mais clara – nesta última década o magistério tem sublinhado outras questões que, embora presentes desde sempre, parecem ter menos força na formação da mentalidade da comunidade cristã. Por conseguinte, na formação da sua consciência, um católico precisa de ter em conta uma maior diversidade de critérios de discernimento daquelas que são, de entre as possíveis, as propostas políticas aceitáveis à luz do Evangelho e do ensinamento magisterial.

Hoje, porém, a perceção dos problemas e prioridades em termos políticos tem matizes diferentes e, por outro lado, as propostas políticas tornaram-se, como vemos, cada vez mais ambíguas.

O aparecimento nos últimos anos de forças políticas de carácter populista, que algumas vezes usam símbolos religiosos católicos, tornou-se um desafio maior às consciências católicas, pelo que o nosso crivo precisa de ser ainda mais refinado quando toca a discernir. Vamos a exemplos. Há dias, na Convenção do Partido Republicano dos Estados Unidos, uma irmã religiosa daquele país afirmou que Trump é o “Presidente mais pro-life que alguma vez os Estados Unidos da América tiveram, defendendo a vida em todas as suas fases”. À luz do ensinamento atual do Magistério da Igreja Católica e do que significa promover a vida humana em todas as suas fases, e olhando à ação política de Donald Trump, será justa tal afirmação por parte desta irmã?

Em maio de 2019, em Itália, Matteo Salvini, beijando um terço durante um comício, confiava Itália e a Europa ao Coração Imaculado de Maria, que o levaria “à vitória”. Tal como na altura comentava o P. António Ary, “é significativo que Salvini se refira tão facilmente ao ‘Imaculado Coração de Maria’, mas nunca fale do Evangelho. No fundo a fé parece estar ao serviço da sua agenda política, quando o testemunho cristão de um político (como de qualquer cristão) deveria ser o de pôr a sua vida, o seu trabalho, os seus esforços ao serviço do Reino”.

Mas vamos ao nosso país. Por cá também parecem surgir apropriações do discurso religioso como forma de legitimação política. No dia 13 de maio de 2020, na sua conta do Twitter, André Ventura afirmava que a sua missão política “está profundamente ligada a Fátima”. Será que a ação política de Ventura é promotora da mensagem de Fátima – que não é outra que a mensagem do Evangelho – e, portanto, fomentadora da cultura do encontro com aquele que é diferente, como por exemplo os imigrantes ilegais, ou as pessoas de etnia cigana?

Vivemos tempos cada vez mais complexos em termos políticos. Embora a Igreja Católica nunca se tenha identificado com nenhuma força política, até há uns anos atrás a fronteira entre o aceitável e o irrenunciável em termos de fé e moral parecia mais clara. Hoje, porém, a perceção dos problemas e prioridades em termos políticos tem matizes diferentes e, por outro lado, as propostas políticas tornaram-se, como vemos, cada vez mais ambíguas. A própria Igreja Católica, no seu intuito de crescente purificação à luz do Evangelho e fidelidade à Tradição, tem vindo a concretizar de formas novas a sua (constante) opção preferencial pelos pobres e pelos descartados da sociedade que, não poucas vezes, na prática pastoral tinham ficado para segundo plano, em detrimento de outras questões. No fundo, ao afirmar que tal como é sagrada a vida do nascituro, “igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte” (Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, 101), Francisco veio complexificar o nosso entendimento de dignidade de vida humana, alargando a sua definição. Por este motivo, a atenção, informação e formação de consciências livres, capazes de um discernimento sério – sobretudo quando se trata de coisas que aparecem como boas à partida, mas cujos frutos contradizem o Evangelho e a Doutrina – são mais necessárias que nunca para quem quer ser sal da terra e luz do mundo nos dias de hoje.

 

Fotografia de: Samantha Sophia – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.