A fotografia ou a vida

Se a fotografia é o bezerro de ouro desta nossa sociedade da imagem, será que podemos investigar, questionar, denunciar, reimaginar essa mesma sociedade usando o meio da arte “fotográfica”?

Fotografia de noivos à saída da igreja. Fotografia de beijo romântico numa rua de Paris. Fotografia de bebé a rir. Fotografia de aviões a largar bombas. Fotografia “photomatom” de amigas a fazer caretas. Fotografia de rua com letreiros, algures nos Estados Unidos da América. Fotografia de rapazes a mergulhar para uma piscina. Fotografia de candeeiro de rua caído na neve. Fotografia “instagram” de um prato de sardinhas. Fotografia a preto e branco de um par de óculos sobre o tampo de uma mesa. Fotografia “selfie” de amigos no final de um almoço de verão. Fotografia de um tanque a atropelar um homem em Pequim. Fotografia “polaroid” dos convidados de uma festa de aniversário…

A fotografia está por todo o lado, e é tanta coisa diferente, que nos podemos perguntar: ainda é possível uma arte da fotografia? Se a fotografia — ou “foto”, como agora se diz, compreensivelmente; a velocidade a que aparecem as ditas cujas é de tal modo avassaladora que o melhor é mesmo simplificar o raio da palavra — se a fotografia, dizia, é o bezerro de ouro desta nossa sociedade da imagem, será que podemos investigar, questionar, denunciar, reimaginar essa mesma sociedade usando o meio da arte “fotográfica”?

A fotografia, diz John Berger, é um instante retirado do contínuo do tempo; é uma interrupção, uma amputação do tempo. Num ensaio escrito em 1971, o escritor-artista fala disso e da necessidade de voltar a pôr cada fotografia “no contexto da experiência, da experiência social, da memória social”. Mas, hoje, em 2019, vivemos numa “sociedade selfie”, onde, graças aos sistemas de videovigilância, aos “smartphones”, às redes sociais, ao baú sem fundo de imagens da internet, estamos sempre a fotografar, a ser fotografados, a pensarmo-nos como fotografáveis ou, no mínimo, a pensarmos fotograficamente. E, neste novo contexto — onde o “contínuo do tempo” se confunde, de facto, com um “contínuo de imagens” —, é legítimo questionarmo-nos: será ainda possível redimir cada fotografia do seu vazio?

A fotografia está por todo o lado, e é tanta coisa diferente, que nos podemos perguntar: ainda é possível uma arte da fotografia?

Susan Sontag escreveu que a fotografia implica uma aceitação. E que isso “é o contrário de uma compreensão, que parte de não se aceitar o mundo tal como ele nos surge”. “Toda a possibilidade de compreensão”, diz a pensadora norte-americana, “assenta na capacidade de dizer não”. Temo que o contínuo de imagens em que se tornou a nossa época tenha alguma coisa a ver com isto. Dizemos “sim, aceito” a todo o momento — seja ele feliz ou triste, especial ou prosaico, indiferente ou exótico, justo ou injusto, verdadeiro ou falso — porque não estamos para o aprofundar, isto é, para o viver por inteiro. E, mesmo quando há vozes que se levantam contra algumas imagens “transparentemente” cruéis, obscenas na sua crueza — penso na fotografia recente que mostrava dois corpos de migrantes mortos num rio, algures na fronteira entre o México e os EUA, e na outra, de há uns anos, onde se via o corpo de um menino que dera à costa numa praia europeia do Mediterrâneo —, essa não-aceitação tende a ser silenciada pela velha lógica do facto consumado: afinal de contas, aquelas são “só mais umas imagens” na torrente ininterrupta de imagens em que se tornou o mundo…

A questão, claro, não tem a ver apenas com fotografia, nem afeta apenas quem se interessa pela arte fotográfica. É sinal de uma doença maior. Parece que a vida deixou de valer por si; vale apenas se for enquadrada, fixada, recortada, comunicada, congelada. Já não nos basta estar aqui, temos de anunciar que é aqui que estamos. Presos numa cadeia de montagem de acontecimentos (o tempo é agora menos um “contínuo” do que uma sucessão de eventos), tiramos fotografias como quem se belisca para ter a certeza que “está lá”. Só somos se aparecermos; a fronteira entre “parecer” e “ser” esbate-se não apenas na nossa relação com os outros, mas também connosco próprios. Vivemos no espelho — mas com Dorian Gray, não com Alice.

Estou a escrever este texto quando recebo a notícia da morte de Robert Frank. Paro e  olho para algumas das suas fotografias mais célebres, do livro Os Americanos. São todas únicas, mas há uma que me faz demorar mais: num café, cinco mulheres sentadas a um balcão virado para a rua. Uma imagem retangular, deitada, a preto e branco: em baixo, uma tira de claridade (o balcão); no meio, as cinco mulheres sentadas (todas de casaco); em cima, cartazes e letreiros (“pie”, “hot chocolate”, “beans”, “soup”). Uma fotografia que é como uma bandeira: tira horizontal de luz, tira horizontal de rostos, tira horizontal de letras. Primeiro que tudo, o que me puxa o olhar é a mulher do meio. Está no centro, no ponto zero, no lugar neutro, onde, segundo a teoria, “não acontece nada” — e talvez seja mesmo isso que a destaca aos meus olhos: aquele rosto tem a força de quem não faz nada. As duas mulheres à esquerda fumam e olham na direção do espetador futuro, sabendo-se fotografadas; já as duas mulheres à direita desviam o olhar do fotógrafo, mas fazem-no ostensivamente, como quem também se sabe fotografado. Ela não. Ela limita-se a estar. Não faz nada, e que força há nesse “nada”. Num segundo momento, reparo noutras coisas. Por exemplo que, à direita dessa tão clara e tão misteriosa mulher do meio — como se chamará ela? ainda estará viva? que profissão teria? —, à direita e bastante atrás, num outro plano, há um cozinheiro de costas para nós e com o braço erguido, a mexer a sopa numa panela. Está precisamente debaixo da palavra “soup” e, para este espetador, passa a representar a comédia. Já à esquerda e atrás da mulher, mas num plano mais aproximado, há um homem de costas todo feito de escuridão (casaco, cabelo, chapéu); é, ao mesmo tempo, uma figura concreta e uma sombra e, para este espetador, representa a morte. E penso no que Roland Barthes escreveu, no seu belo tratado A Câmara Clara, sobre a dualidade como “regra estrutural” de algumas fotografias, e também sobre a fotografia se aproximar do teatro pelo “circuito singular” da morte.

Não sei, talvez seja preciso reaprendermos aquele silêncio, aquela solidão, que a mulher na fotografia de Robert Frank tão bem conhece. Talvez seja preciso que a fotografia morra, sim, para que possa ressuscitar.

Nota: Para conhecer a fotografia  de Robert Frank mencionada no artigo visite este site. 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.