A propósito de um trabalho para a faculdade, tenho-me ocupado bastante a pensar como manter a frescura da fé na hora menos aparente – a morte.
A verdade é que cada vez tenho menos coisas a dizer. Mas vou guardando bastante para mim. Sobretudo uma espécie de ideias vagabundas, como uma cidade desorganizada de ruas estreitas e becos e labirintos e casas encavalitadas.
Um desses espaços criei-o vendo o “Filho de Saul”. Um filme que conta a história inverosímil de um homem, membro do Sonderkommando, um grupo de prisioneiros que trabalha nas câmaras de gás e nos crematórios de Auschwitz, e que, um dia, no meio dos corpos amontoados, encontra o cadáver do seu filho. O resto do filme acompanha a obsessão de Saul em encontrar um rabino que realize o funeral do rapaz.
É interessante pensar no contraste entre a fé de Saul e a morte que o rodeia. O seu desejo de encontrar um rabino transforma-o uma espécie de bolha, rolando confusa, entre os olhares pálidos e os movimentos automáticos de sobrevivência dos restantes prisioneiros. É estranho pensar que a fé tenha essa resiliência diante de uma morte, diante desse grande talvez que se nos impõe, diante de um amor que nos é roubado.
A fé é a resposta a um Deus que se auto-revela. E essa resposta define a nossa vida e define a nossa morte.
A fé é a resposta a um Deus que se auto-revela. E essa resposta define a nossa vida e define a nossa morte. A diferença entre Saul e os outros é uma questão de camadas. Para muitos a fé encontra-se numa camada intermédia, de desejo e significação, entre a fé-à-flor-da-pele do missionário e o entrar más adentro en la espesura do místico. Para Saul, contudo, a fé é de um outro tipo. É uma fé que lhe envolve o esqueleto, e que clarifica a sua relação com Deus e o mundo. E por isso sabe que realizar um funeral religioso ao seu filho, em pleno Auschwitz, é o certo. E que isso é tudo o que lhe resta.
Assim viviam também os primeiros cristãos. E por isso ficamos tão impressionados pelos relatos dos martírios e com as histórias heróicas gravadas nas areias dos coliseus romanos. Mas, menos conhecidas e igualmente impressionantes, são as histórias de fé marcadas nos epitáfios das pedras tumulares cristãs dos primeiros séculos. A derradeira mensagem individual para este mundo. Marcada na pedra, para que deles nada mais permaneça. Recordo aqui uma delas, chamada inscrição de Abercius, que poderia bem ser o epitáfio de Saul, gravado com o cinzel de seu amor de pai.
O meu nome é Abercius;
sou discípulo de um pastor santo,
que pastoreia os seus rebanhos nas montanhas e nas planícies,
que tem grandes olhos e cujo olhar chega a todo o lado ….
A fé levou-me a todo o lado,
a todos os lugares onde me serviu de alimento um peixe de uma fonte,
muito grande, puro,
apanhado por uma virgem santa: deu-o constantemente aos seus amigos para comer;
[e] tem um vinho delicioso que dá com o pão.
Quando gravarmos o nosso epitáfio, talvez possamos dizer que encontrámos esse pastor de grandes olhos, escondido entre as malhas que tecem a vida. E que por Ele a nossa esperança estava cheia de eternidade.
Fotografia – Wendy Scofield – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.