Cronometrias
Nos dias de Heródoto usavam-se
modos mais exactos de medir o tempo
o gotejar da água para a ânfora
o escorrer da areia, grão a grão
a viagem da sombra, como se não fosse
(José Tolentino Mendonça)
Talvez nos faça bem reconhecer que a nossa relação com o tempo é difícil. E talvez seja oportuno fazê-lo, agora que nos preparamos para começar um novo ciclo anual de trabalho. Dependendo do momento da vida em que nos encontremos, pode parecer-nos que o tempo nos escorre por entre os dedos, sem que o possamos deter; outras vezes, sobretudo nos momentos de provação, o tempo pode arrastar-se, transformando-se numa insuportável experiência de estagnação. Viver a experiência da temporalidade pode ser muito exigente, mas não é, certamente, uma maldição. Importa, por isso, reconciliarmo-nos com a nossa temporalidade, para chegar a reconhecer que o tempo é, afinal, uma bênção.
Creio que no caminho de reconciliação a experiência da temporalidade deve começar pelo reconhecimento de que a nossa identidade é intratemporal, ou seja, vivemos imersos no tempo e somos inevitavelmente arrastados (ou talvez conduzidos) pelo seu incessante fluir. O tempo é expressão da dimensão histórica da nossa existência. Habitamos um mundo finito e em mudança. «O homem é tempo», recordam-nos os autores na nota Do tempo livre à libertação do tempo, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
Dizia que o tempo pode ser encarado como uma espécie de maldição: o tempo impõe limites à nossa vida, engole incessantemente as nossas memórias, arrasta-nos em direção a um futuro que nunca controlamos completamente. Na mitologia Grega, esta forma de encarar o tempo é condensada na figura de Chronos, um deus que devora os seus próprios filhos. É impossível fugir ao tempo, que no final sempre vence. Mas o tempo não precisa ser inevitavelmente encarado como uma maldição. A temporalidade poder ser, também, uma experiência de bênção. O tempo traz consigo a frescura das coisas novas e recorda-nos incessantemente que cada um de nós é projeto a realizar. É o tempo quem nos obriga a decidir. «Tempo e liberdade implicam-se» (Do tempo livre à libertação do tempo).
Na língua grega existem duas palavras que podem ser traduzidas por «tempo»: chronos e kairos. O termo chronos, que é também o nome do deus que devora os seus filhos, é utilizado para designar o tempo físico. Kairos, por outro lado, significa tempo oportuno, tempo favorável. O tempo oferece a oportunidade de nos realizarmos como seres humanos. O tempo é lugar de encontro. Os primeiros capítulos do Evangelho de S. João registam a memória do encontro de vários personagens com a pessoa de Jesus de Nazaré. Não deixa de ser significativo que a passagem do tempo seja assinalada com expressões como «no dia seguinte», «ao terceiro dia», «eram as quatro horas da tarde». O tempo pode ser lugar de encontro, o lugar onde o próprio Deus se manifesta e nos encontra. Nas palavras de Tolentino Mendonça, o tempo é «disposição para um encontro verdadeiro, que não seja um mero esbarrar-se no outro».
Importa reconhecer que a nossa relação com o tempo pode ser desordenada. A desordem acontece quando não aceitamos a nossa condição de criaturas. O tempo é o ritmo da história e a história tem um alcance muito maior do que as nossas forças e do que a duração das nossas vidas. Quem quiser lutar contra o tempo, acabará por ser arrastado por ele. A finitude é própria da nossa condição de criaturas. Somos projeto inacabado, que se vai completando à medida que a nossa história se desenrola, conduzida pelo tempo. Ordenar o tempo significa aprender ao ritmo da graça, como quem acerta o passo ao entrar numa dança. E para isso é fundamental encontra a cadência certa. Não vale a pena tentarmos forçar o tempo, como se o pudéssemos obrigar a oferecer-nos a duração mais conveniente. Mas também não podemos deixar escorrer o tempo, como quem já não acredita que o tempo tem algo para nos dar.
Importa reconhecer que a nossa relação com o tempo pode ser desordenada. A desordem acontece quando não aceitamos a nossa condição de criaturas. O tempo é o ritmo da história e a história tem um alcance muito maior que as nossas forças e que a duração das nossas vidas.
Claro que habitar a temporalidade exige um certo grau de disciplina. E cada um precisa de encontrar ritmos e rotinas saudáveis, que nos permitam crescer e ser bons artesãos da filigrana que o tempo tece no desenrolar da história. Por outro lado, se a nossa relação com o tempo for demasiado rígida, deixa de haver lugar para a novidade e para contemplação. É isto mesmo que nos lembra Tolentino Mendonça:
«A rotina começa por ser um esforço de regularidade nos vários planos da existência, esforço que, temos de dizer, é em si positivo. A vida seria impossível se o eliminássemos de todo. As rotinas têm um efeito saudável: tornando o quotidiano um encadeado de situações expectáveis, permitem-nos habitar com confiança o tempo. Mas o que começa por ser bom esconde também um perigo. De repente, a rotina substitui-se à própria vida. Quando tudo se torna óbvio e regulado, deixa de haver lugar para a surpresa. […] A rotina não basta ao coração do homem. O grande desafio é, em cada dia, voltar a olhar tudo pela primeira vez, deslumbrando-se com a surpresa dos dias. É reconhecer que este instante que passa é a porta por onde entra a alegria. Mas para isso teremos de recuperar a sensibilidade à vida, à sua desconcertante simplicidade, ao seu canto frágil, às suas travessias. (José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante).
Para muitos de nós, a vida que levamos, com as suas responsabilidades e compromissos, exige que sejamos eficientes, disciplinados e rápidos. No entanto, se não nos acautelarmos, a aceleração da vida pode turvar o nosso olhar e então tornar-nos incapazes de acolher o que o tempo tem para nos oferecer. É crucial encontrarmos, na nossa vida, momentos de tempo lento, em que voltamos a olhar as coisas simples como se as víssemos pela primeira vez. Como nos lembra, mais uma vez, Tolentino Mendonça, precisamos de resgatar a nossa relação com o tempo:
«Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque temos de nos desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno. Mesmo tendo perdido o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, a lentidão continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora» (José Tolentino Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas).
Para nos reconciliarmos com o tempo, e para o reconhecermos como dom, precisamos de reaprender a cadência dos gestos simples e banais, deixando que a terapia do tempo lento abrande em nós o frenesim que a vida tantas vezes nos impõe. A prática dos tempos lentos há de também ensinar-nos a difícil arte da espera, que é afinal a cura para tantas das nossas ansiedades e a porta de saída para os labirintos em que às vezes nos metemos. Estamos a começar um novo ciclo de estudo e de trabalho. A aceleração dos dias vai regressar. Que bom que seria se a pudéssemos temperar com a lentidão de quem deseja, ainda, contemplar.
Fotografia de Murray Campbell – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.