A educação da tristeza - Ponto SJ

A educação da tristeza

Lidar com a nossa tristeza e a dos outros é uma aprendizagem. Não podemos escolher não sentir tristeza diante das perdas, mas podemos impedir que as perdas signifiquem tristeza.

O Handbook of Emotions [nota 1] define “tristeza” como a emoção que tipicamente experimentamos quando lidamos com a perda ou com a desilusão. Segundo alguns especialistas, é uma das quatro emoções básicas do ser humano, o que nos diz muito sobre a frequência com que a podemos encontrar ao longo da vida. E, dado que todas as emoções que podemos vivenciar resultarão do cruzamento das quatro emoções básicas entre si (tristeza, alegria, medo e raiva) [nota 2], também nos diz muito sobre a sua importância para a compreensão dos nossos diferentes estados emocionais. Quanto à palavra “educação”, os dicionários apresentam vários significados, entre os quais «adestramento de animais». Não é com esse significado que a palavra é comummente usada, mas é nesse sentido que uso a palavra no título deste texto, roubando a metáfora a António Lobo Antunes, que, na belíssima crónica “Uma Carta para Sherlock Holmes”, escreve que a depressão (que não coincide com a tristeza, mas que partilha traços com ela) é um «cão negro». A expressão “educação da tristeza” significará, portanto, o conjunto de práticas conducentes à domesticação da tristeza – que podem ser trabalhadas em contexto escolar, mas não só –, com o objetivo de evitar que essa emoção se agigante em nós e que, como se fosse um animal selvagem, nos faça dano.

Educação da Tristeza é precisamente o título do mais recente livro de Valter Hugo Mãe. Livreiros distraídos poderão com facilidade arrumá-lo na secção da saúde mental, como se de um livro de autoajuda se tratasse, de tão habituados que estão a um tempo em que o tema tem sido – e bem – motivo de tanta preocupação e de tantas publicações. É verdade que entendê-lo desse modo implica, entre outros atropelos, reduzir a sua literariedade ao utilitarismo de um manual, mas admito que a leitura que fiz dele validaria catalogações de livreiros distraídos. Depois de o ler uma primeira vez, li-o novamente, mas procurando deter-me especificamente nas passagens que pudessem definir uma didática para adestrar a tristeza. Teria sido mais fácil – e até mais adequado – ter partido de um livro que fosse efetivamente de autoajuda, mas a literatura, esse grande dicionário da humanidade, tem a vantagem sobre a linguagem técnica de exigir do leitor não apenas uma cabeça fria para pensar, mas também um coração quente para sentir. Assim, por efeito da dimensão estética da linguagem, cava mais fundo dentro de cada um.

Antes de avançar, deixo três avisos. Primeiro, quem esperar deste texto uma recensão crítica ou uma análise da riqueza literária do livro de Valter Hugo Mãe pode ficar por aqui. Educação da Tristeza é lido neste texto “apenas” como um relato de uma perda radical que pode inspirar a escola – e não só – a definir e a ensinar caminhos que ajudem a gerir a tristeza resultante de outras perdas menores. Segundo, quem esperar encontrar aqui soluções fáceis e rápidas para gerir emoções também pode ficar por aqui, pois tenho a certeza de que acabará a leitura com o comentário «isto é tudo muito bonito, mas a realidade é outra coisa». Terceiro, este texto não é escrito para um contexto de um acompanhamento profissional da tristeza. David Burns inicia o seu livro Sinta-se Bem – A Terapia Revolucionária Contra a Depressão e a Ansiedade com um teste ao estado emocional do leitor e avisa que, se a pontuação obtida for superior a 10 (em 100 possíveis), poderá ser aconselhável consultar um profissional. As quatro propostas que se apresentam aqui são destinadas àquela faixa de tristeza de 10% que pode ser enfrentada de forma autónoma e sem acompanhamento profissional. Por esse motivo, poderá parecer que se
simplificam excessivamente problemas que são mais complexos.

Aceitar e reconfigurar a perda

A tristeza que Valter Hugo Mãe educa é fruto da perda mais radical de todas: a morte. Ao longo do livro, o autor evoca várias perdas, mas é a morte do seu sobrinho, com apenas 16 anos, que dá origem aos capítulos mais tocantes e, talvez por isso, mais significativos quanto ao modo como o autor se ensinou a lidar com a tristeza para que ela se tornasse na alegria possível. Nas palavras do autor, as «nossas pessoas eternas têm de significar alegria porque jamais aceitarei que o meu pai ou o meu sobrinho, a Isabel ou o meu irmão signifiquem tristeza. A morte não lhes pode fazer tamanha injustiça».

A perda é uma das constantes da vida. É um cão fiel à humanidade e vem de mão dada com a tristeza. Mais cedo ou mais tarde, batem-nos à porta. À nossa e à de muitas outras pessoas em todo o mundo a cada momento. A consciência disto deverá ser suficiente para afastar distorções cognitivas como a personalização, que nos leva a fazer perguntas do género: «Que mal fiz eu para merecer isto?». Pode ser que efetivamente tenhamos culpa das perdas ou desilusões, como acontece, para dar um exemplo mais leve, quando não nos preparamos suficientemente bem e a apresentação importante que tínhamos para fazer sai um desastre. Nesse caso, o que há a fazer é compreender e reconhecer a culpa (aceitá-la), reconciliarmo-nos com a falha e perdoarmo-nos. Contudo, na maior parte das vezes, a perda e a desilusão acontecem a pessoas sem culpa. Quando fala nas suas «pessoas eternas», o narrador de Educação da Tristeza não assume o lugar da vitimização, o lugar da culpabilização ou o lugar da desgraça personalizada. E é daqui que podemos extrair a primeira lição: aceitar. Ou seja, não olhar para o que nos acontece como se fosse uma anormalidade que apenas a nós foi destinada.

Não podemos escolher não sentir tristeza diante das perdas, mas podemos impedir que as perdas signifiquem tristeza, como escreve Valter Hugo Mãe. Parece um jogo de palavras, mas não é. David Burns explica de uma maneira simples esta opção que temos de reconfigurar a perceção da perda, contrastando dois pensamentos que podemos ter acerca da morte de um ente querido. Podemos pensar «perdi-o e vou sentir falta do seu amor» ou «perdi-o e nunca mais vou ser feliz». Os sentimentos que o primeiro pensamento cria são «ternos, realistas e desejáveis. As emoções irão aumentar a nossa humanidade e acrescentarão profundidade ao sentido da vida. Desta forma, ganhamos com a perda». O segundo pensamento baseia-se numa distorção cognitiva e apenas provocará desânimo. Reconfigurar o que provoca a tristeza é a segunda lição: não podemos evitar a tristeza por que passamos num momento de perda, mas podemos agir sobre o modo como vemos a perda e amansar a tristeza. Esta lição baseia-se num dos princípios da terapia cognitiva: os estados de espírito são criados sobretudo pelos nossos pensamentos, pelo modo como olhamos para as coisas. A tristeza estará sempre presente porque a experiência da perda não muda, mas podemos educá-la e torná-la mais civilizada. Julgo que é isso que António Lobo Antunes aconselha quando, depois de considerar a depressão um «cão preto», acrescenta que, «no caso de não termos medo dele, vai-se embora». É outra forma de dizer que não devemos aceitar que as coisas boas signifiquem tristeza.

Apesar da radicalidade da perda que é a morte, as duas lições são extensíveis a tantos outros motivos de tristeza passíveis de serem erradamente perspetivados com os filtros das distorções cognitivas: uma amiga que nos desilude; o namorado que nos abandona; a nota de Matemática que não coincide com o estudo que lhe dedicamos… Podemos ter feito tudo o que está ao nosso alcance para evitar que estas coisas nos aconteçam e elas acontecerem igualmente. Não significa necessariamente, nem que tenhamos culpa, nem que só nos aconteça a nós, nem que nunca mais conseguiremos ser felizes. Aceitar e reconfigurar não se trata de criar ficções a propósito das perdas e das desilusões, trata-se de não acrescentar um problema ao problema.

Lidar com a tristeza dos outros: aguardar e ouvir

Não é necessário conhecer os títulos dos restantes capítulos do livro para antever que o capítulo “Mães e pais dos mortos” será o mais pungente.

Acompanhar pais que perderam filhos é caminhar sobre terreno sagrado. Entendo o modo como Valter Hugo Mãe perspetiva esse acompanhamento como sendo inspirador porque é inequivocamente centrado no outro e não no eu. Quando somos crianças, a ideia de os nossos pais morrerem deixa-nos em pânico. É inevitável pensar nos nossos pais quando acontece a infelicidade de um amigo perder o pai ou a mãe. Mas esse instinto afasta-nos em certa medida do outro e da sua dor. Do mesmo modo, quando morre um filho jovem de alguém, pensamos nos nossos próprios filhos. Uma amiga, ao ver a infame imagem do menino Alan Kurdi jazendo na areia de uma praia turca a que não chegou vivo, disse: «deu-me um aperto no coração, pensei logo nos meus filhos». É o instinto natural de filho ou de mãe a gritarem e a sobreporem-se a tudo o resto. Mas não é o nosso filho que jaz na areia: é o de outra pessoa. Parece-me que é a partir do lugar desta sabedoria que o autor ajuda a educar uma tristeza que, sendo também sua, é na sua essência alheia. Perder um filho é um lugar tão sombrio que nem tem nome. A melhor definição que conheço é de Matsu Bashô, que, num haiku, lhe chama «o mundo ao contrário». Desse instinto de pensarmos nos nossos, poderá fazer parte uma intuição de que, por pensarmos em nós e nos nossos, nos estamos a pôr no lugar do outro. Não estamos. O mundo ao contrário é inabitável para nós, porque, como escreve Valter Hugo Mãe, as «mães e os pais dos mortos começam por viver num país só deles». A lição que extraímos desta experiência devastadora é a de que, em vez de dar voz às nossas próprias perdas, de falarmos sobre uma dor que não conhecemos, mesmo que por ela também tenhamos passado, o que devemos
fazer é esperar até que os outros possam ser minimamente acompanhados: «esse é o superior ofício que nos compete […], aguardar até que sirvamos de companhia». Não esqueçamos que somos «testemunhas de quem foi ao inferno e voltou». Se é que realmente volta, acrescento. Perante o horror de «uma experiência indizível que os livros imitarão sem sucesso algum», espera-se de nós uma certa reverência, feita de espera e de disponibilidade.

Uma vez mais, esta lição aplica-se a esta experiência radical, mas também a tantas outras menos graves, em que pensamos que falar por comparação do que nos acontece a nós é uma maneira de acompanhar a tristeza das pessoas porque faz com que não se sintam sós na sua dor. Mas não é assim. Ou não é assim na maior parte das vezes. Isso é apenas um lampejo de uma certa inabilidade altruísta, que tende a ser frequente numa sociedade que deixou de saber escutar. Lidar com a tristeza dos outros implica uma verdadeira empatia, que não é «pôr-me no lugar do outro», mas sim «pôr-me no lugar do outro sendo o outro», esse tal lugar inacessível à entrada do qual devemos aguardar e estarmos disponíveis para escutar. Essa é a lição: aguardar em silêncio pelo outro e escutá-lo. Ter compaixão. Se os outros quiserem saber como foi connosco, perguntam. Não sendo o caso, cabe-nos a tarefa de calar a nossa dor e entregar-nos completamente ao acompanhamento do outro na educação da sua tristeza.

Lidar com a tristeza dos outros implica uma verdadeira empatia, que não é «pôr-me no lugar do outro», mas sim «pôr-me no lugar do outro sendo o outro», esse tal lugar inacessível à entrada do qual devemos aguardar e estarmos disponíveis para escutar. Essa é a lição: aguardar em silêncio pelo outro e escutá-lo.

Agradecer

O primeiro capítulo do livro de Valter Hugo Mãe tem como título “Fazer alegria” e começa deste modo: «Impressionam-me as pessoas que fazem alegria a partir de quase nada. Gente cuja vida parece não ter generosidade alguma, mas que, ainda assim, manifesta uma gratidão sincera pela oportunidade de existir. Sempre me penitencio por ser rabugento, indisposto, carente ou sonhador, porque muito disso é só falta de noção do privilégio que tenho, da sorte grande que me sai pela coisa simples de poder o que posso. E tanta gente não pode nada». O sentimento de gratidão educa a tristeza porque é fonte de alegria, não uma alegria que se alimente do mal dos outros, mas uma
alegria que se alimenta do bem recebido quotidianamente e que não se confunde com uma atitude conformista. Quando deixamos de exigir à vida que pague tudo o que entendemos que nos é devido, quando deixamos de cobrar a beleza perfeita, a saúde invejável, a felicidade dos filmes românticos, a riqueza dos famosos, educamos a tristeza que necessariamente resulta de uma vida que, vivida desse modo, é apenas decetiva, pois é irrealista e inútil esperar que todos esses nossos desejos autocentrados se concretizem. E perigoso, também. A protagonista de Above Suspicion tem uma reflexão iluminadora, significativamente diante de um espelho, sobre o perigo de viver uma vida sem liberdade, uma vida presa à constante e infindável (porque se autoalimenta) expectativa de ver todos os nossos desejos sucessivamente cumpridos:

«That’s the way the devil comes. He doesn’t come to you as evil. He doesn´t come to you on fire. He comes as everything you ever wanted. He comes to you as you». Viver a partir desse exercício de descentramento que é a gratidão impede que isto aconteça. Escreve Valter Hugo Mãe que as «nossas vidas ganham razão também pelos instantes em que só nos ocupamos de pensar nos outros», que é o que o próprio autor faz no comovente capítulo em que recorda com gratidão a vida do sobrinho, impedindo assim que a sua morte «signifique tristeza».

A lição que podemos tirar daqui é a do exercício regular da gratidão. Quando a tristeza nos bater à porta empurrada pela desilusão de um desencontro da vida com um objetivo – e pode ser tão superficial quanto o nosso clube perder a taça de forma injusta –, saibamos ainda, precisamente nesse momento, encontrar motivos para agradecer. Para quem faz o exame inaciano ao final do dia, mesmo que não tenha tempo de o fazer todo, passar pelo momento da gratidão é fundamental. Muitas vezes, diz-se aos casais para não se deitarem zangados um com o outro (há um vídeo do Papa Francisco a dizê-lo a um jovem casal). Esta lição diz-nos o mesmo: agradeçamos alguma coisa ao final do dia, para não nos deitarmos zangados com o mundo.

Rezar

Anne Lamott escreveu um dia que as duas melhores orações que conhece, como se fossem as formas essenciais de rezar, são «thank you, thank you, thank you» e «help me, help me, help me». Da primeira, falei no parágrafo anterior. No capítulo “Educação do milagre”, Valter Hugo Mãe começa por explicar que pediu a São Bento que lhe desse a morte na vez da sentença do sobrinho: «se Deus me desse a morte para salvar nossa criança, minha morte seria um milagre, essa dádiva sem tamanho». Este pode ser um exemplo da segunda forma essencial de oração: o pedido de ajuda. Neste caso, o autor pede o «milagre» de se dar uma troca. Mas a nossa relação com Deus não se
tece nessa linearidade sem mistério. Se assim fosse, bastaria rezar, não precisaríamos de educar a tristeza. Como escreve o Padre Johnny Go, sj, uma tal imagem de Deus aproxima-se da superstição, como se pudéssemos comprar milagres («como se Deus fosse uma máquina de venda automática»): «promete que a prescrição de certas ações [entre elas, a oração] podem conduzir à consequência desejada. Mas a nossa experiência diz-nos que o mundo não funciona assim» [nota 3] . A consciência disto faz parte da educação da tristeza, porque, se for a tristeza a bater-nos à porta, e não o milagre por que rezámos, em vez de acrescentarmos desilusão à desilusão, sentiremos a alegria de saber que a tristeza não é tão profunda, não é maior do que tudo o que vamos ganhando com o encontro com Aquele que, com a Sua presença, nos envolve e nos orienta ao longo do nosso caminho.

O que a oração nos ensina é: «Mas que descanso é viver a morrer todos os dias/ Por ir contra o próprio querer e esquecer o que se queria/ E querer o que Deus quer/ Queira eu o que Deus quer». A lição que retiramos daqui é a de que a oração nos aproxima de Deus e de que isso apenas pode significar alegria. A vida espiritual é dinâmica: ou cresce ou diminui. Com a oração agradecida, a vida espiritual cresce e traz com ela a alegria que educa a tristeza. Ou a alegria é já uma oração agradecida, como escreve Valter Hugo Mãe: «As minhas tias sempre me diziam para rezar. Reza ao teu irmão, ao teu pai, aos teus avós. Eu complicava tudo a pensar em como vale ou não vale a
pena rezar aos que partiram. Mas hoje sei que a alegria é a coisa que mais reza. Se Deus existir, nossa alegria haverá de ser aquilo que mais lhe reza. Por ser sinal de gratidão».

Como escrevi no início, nenhum destes caminhos para educar a tristeza é fácil. E menos ainda imediato. Mas nisso, a ter tempo, a saber esperar, somos nós que temos de ser educados pela tristeza.

 

Nota 1 – Lisa Feldman Barrett, Michael Lewis e Jeannette M. Haviland-Jones (ed.), Handbook of
Emotions, Guilford Press, 2018.

Nota 2 – Esta lista não é consensual. Daniel Goleman, por exemplo, acrescenta a estas quatro
emoções outras quatro: amor, surpresa, aversão e vergonha.

Nota 3 – Johnny C. Go, sj e Assunta C. Cuyegkeng, Leading with Depth, Ateneo de Manila University,
2024.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.