Os economistas sabem pouco sobre pandemias, e ainda bem – é sinal que têm sido raras. Por isso, muito do que se tem dito sobre impactos e terapias económicas da pandemia do covid19 baseia-se na analogia com a economia das guerras – infelizmente bem menos raras. Essa analogia é razoável, mas na minha opinião tem limites. Esta opinião fornece, em alguma medida, o pano de fundo para as seguintes notas (telegráficas) sobre três aspetos importantes do debate económico sobre a pandemia covid19.
1. “Paralisar a sociedade e a economia salva vidas no imediato, mas intensifica a crise económica, o que custará vidas futuras.”
Este dilema ocupou muitos economistas no início da crise, e penso que ainda ocupa alguns. Eu não o percebo, e, felizmente, acho que cada vez menos gente o percebe.
Se numa guerra faríamos tudo para salvaguardar a integridade do nosso território e das nossas vidas, como não o fazer numa pandemia? Afinal, qual é o valor maior, mais absoluto, senão o da vida? O da vida hoje, aqui e agora?
É claro que paralisar a sociedade e a economia causará uma profunda recessão. E é claro que se essa recessão não for combatida com instrumentos adequados, custará muitas vidas. Mas que moral poderia justificar deixar morrer hoje para que os sobreviventes vivessem menos mal amanhã?
Mais: os economistas andam há décadas a aprender como combater as recessões. Se conhecemos e aplicamos instrumentos no combate a recessões que na maior parte dos casos são causadas por motivos bem menos incontroláveis do que uma pandemia, como não combater com toda a força esta recessão?
Antes de falar um pouco mais deste combate (ponto 3), uma notícia que poderá descansar as almas mais empedernidas. Investigação recente sobre a resposta nos Estados Unidos à gripe espanhola de há 100 anos, permitiu concluir que as áreas em que as intervenções de saúde pública (isolamento e desinfeção) foram mais precoces e fortes, experimentaram não apenas menos mortalidade mas também uma mais rápida recuperação económica nos anos seguintes. Afinal, parece que pode não haver dilema de todo.
Se conhecemos e aplicamos instrumentos no combate a recessões que na maior parte dos casos são causadas por motivos bem menos incontroláveis do que uma pandemia, como não combater com toda a força esta recessão?
2. “Exige-se criar uma entidade planificadora que oriente e monitorize a produção e distribuição dos bens essenciais, sob pena duma interrupção das cadeias de abastecimento levar à escassez desses bens e a descontrolo social e económico.”
Esta preocupação levou mesmo um grupo de colegas economistas – muito bem-intencionados e competentes – a apresentar um manifesto pedindo a criação de um gabinete para garantir o acesso aos bens essenciais. Esse gabinete identificaria os bens e serviços prioritários, processaria informações detalhadas em tempo real ao nível da empresa e do indivíduo para estimar a procura por região e por tipo de bem, e identificaria os recursos que poderiam ser afetados às indústrias situadas nas cadeias de produção e distribuição de bens essenciais. Tal como outros, contudo, eu duvido da necessidade, da implementabilidade e da eficácia de tal iniciativa.
Se a pandemia viesse a durar o mesmo que uma Grande Guerra, a planificação central do abastecimento – e do racionamento – dos bens essenciais seria uma inevitabilidade. Contudo, a informação disponível leva-me a crer que a pandemia será menos prolongada, não implicará o desvio integral de recursos para qualquer produção (no caso da guerra, armas e suplementos para as tropas, neste caso, medicamentos e equipamentos médicos) e não impedirá algum funcionamento das atividades económicas associadas à oferta dos bens de consumo mais essenciais.
Por outro lado, é muito difícil conseguir planear a atividade económica global. Não há entidade que consiga centralizar e utilizar cabalmente toda a informação necessária para tal. Acredito que, sob os pressupostos de duração e âmbito relativamente limitado da crise, as empresas privadas e os mercados conseguirão resolver de forma satisfatória o problema da coordenação económica.
Reforço este argumento chamando a atenção para a incompetência que a maioria dos Estados tem revelado na compilação de informação económica e na gestão de recursos escassos. O estado português parece-me ser, aliás, dos exemplos mais paradigmáticos: infelizmente, tem-se revelado pouco competente mesmo na gestão da informação e dos recursos estritamente médicos; nem quero imaginar a sua competência para a tarefa bem mais alargada e difícil de gerir a produção e distribuição dos bens essenciais.
Concordo, isso sim, com a criação de uma entidade ou, pelo menos, de mecanismos de articulação entre entidades, visando a coordenação da oferta dos recursos médicos necessários para lidar com a crise. Isso já me parece necessário, dada a necessidade duma resposta atempada e eficaz, e tendo em conta a escassez desses recursos e a ineficiência da resposta dada por autoridades sanitárias que me parecem desnorteadas.
3. “O financiamento do combate à pandemia e à recessão deve ser prioritário e convocar toda a solidariedade internacional (especialmente na União Europeia), nacional (do estado central) e local (das administrações regionais e locais).”
Concordo em absoluto que esta não é altura para recear recorrer a medidas extraordinárias de intervenção económica: aumentar o défice e a dívida do Estado (central, regional e local) e mesmo emitir moeda em quantidades substanciais.
Por isso, vejo com tristeza a aparente falta de solidariedade entre nações da União Europeia e, ainda mais em especial (apesar de menos enfatizada internamente), a falta de iniciativa quer do banco Central Europeu quer do Conselho Europeu.
Há três situações clássicas em que aumentos do défice público e da dívida pública são considerados eficientes – ou seja, permitem que a sociedade como um todo melhore o bem-estar: guerras, catástrofes e recessões. Não há, portanto, desculpa científica para inventar preocupações com o nível de défices e dívidas públicas.
Pode haver, sim, falta de procura nos mercados financeiros para a dívida publica adicional. Nas catástrofes e guerras, o usual é emitir-se títulos de dívida consignada ao combate em causa, de maturidades anormalmente longas (muitas décadas, tendencialmente um século) e taxas de juro muito baixas. Se os mercados financeiros não tiverem capacidade para absorver tais títulos – o que pode acontecer, dada a natureza global da pandemia – há alternativa: emitir moeda.
Num mundo em que a inflação é insuficiente e em que as taxas de juro são praticamente nulas, não há desculpa para evitar emitir mais moeda. Numa palavra, monetarizar os défices e as dívidas publicas resultantes do combate à pandemia.
A questão é que nenhum país da União pode decidir nada disto sozinho – daí a necessidade da coordenação solidária e da iniciativa das instâncias supranacionais.
Ao estado nacional, cumpre criar mecanismos ágeis e eficazes de mitigação da crise económica resultante da pandemia. Portugal foi capaz de criar em relativamente pouco tempo – apesar de inúmeras hesitações, que levam a incertezas várias ainda no momento em que se escreve esta crómica – um sistema de compensação das empresas e dos seus trabalhadores, conhecido por lay-off. O sistema parece atempado e levar a uma partilha de custos razoável entre estado e empresas.
A questão é que nenhum país da União pode decidir nada disto sozinho – daí a necessidade da coordenação solidária e da iniciativa das instâncias supranacionais.
Contudo, o Estado português ainda nada fez quanto às pequenas e microempresas cujos trabalhadores são praticamente apenas os seus proprietários. Ainda nada fez quanto aos milhares de trabalhadores precários. Ainda nada fez pelos milhares de trabalhadores cuja remuneração dependia da prestação efetiva de bens ou serviços, à peça ou à hora de trabalho, e que neste momento e nos próximos tempos terão de ficar em casa e sem qualquer rendimento.
É preciso fazer mais. E, ao contrário do que me parece ir ouvindo, não se pode apostar demasiado em moratórias dos pagamentos à banca. De que adianta adiar um pagamento se não haverá possibilidade de criar o rendimento que o permitiria pagar, após várias semanas (meses?) de inatividade? Os apoios têm de ser “a fundo perdido”. Insisto: é (também) para estas circunstâncias que servem os impostos futuros.
Para além das intervenções globais e nacionais, exige-se intervenções de âmbito regional e local. Por um lado, podem ser particularmente eficazes e eficientes, pela maior proximidade destas instâncias de poder à realidade dos problemas e das soluções potenciais. Por outro lado, podem ir tanto mais longe quanto mais equilibrada for a situação económica e financeira de partida destas instâncias de poder, e quanto maior for a sua capacidade de mobilizar recursos privados. Um exemplo de assinalar é a câmara municipal do Porto, cuja intervenção tem sido notável não apenas porque tem fundos disponíveis mas porque tem tido a capacidade de se coordenar com entidades privadas. Este é o melhor dos mundos neste tipo de “guerra”: entidades públicas com contas equilibradas e reduzida dívida, e com grande capacidade de coordenação com a iniciativa privada.
Mas sejamos claros: não estamos em tempos de sonhar com o ótimo, mesmo que seja o que mais nos agrada ideologicamente; estamos em tempos de emergência, em que cada dia conta para o que realmente interessa – salvar o máximo de vidas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.