A Democracia negociada

Depois de um processo atribulado, vota-se hoje a presidência da Comissão Europeia. Se queremos promessas cumpridas e mudança política, estes acontecimentos deviam-nos instruir sobre a nossa responsabilidade enquanto cidadãos.

Lembra-se do nome dos candidatos ao Parlamento Europeu (PE) nas eleições de maio? Hoje, às 17h os deputados eleitos nessa altura estarão a tomar uma importante decisão no plenário em Estrasburgo. A essa hora o Parlamento vota a presidência da Comissão Europeia, o “Governo” da União Europeia (UE), que define políticas comunitárias de variadíssimos sectores, da energia e da agricultura aos acordos de comércio. Talvez isto não diga muito aos cidadãos portugueses que pensam que Bruxelas e Estrasburgo são uma realidade distante. No entanto, enquanto em Portugal os cartazes das eleições europeias vão sendo substituídos por uma espécie de pré-campanha para as legislativas, algo extraordinário está a acontecer à democracia europeia.

O afastamento dos principais candidatos das grandes famílias políticas europeias à presidência da Comissão parecia ser um retrocesso. Mas esse afastamento converteu-se num processo negociado que obrigou a candidata imprevista, Ursula von der Leyen, a fazer uma série de promessas. Refiro-me às promessas que a candidata fez ontem aos Socialistas e aos Liberais de maneira a conquistar uma maioria parlamentar.

O presidente da Comissão sempre foi nomeado de maneira soberana pelo Conselho Europeu, ou seja, o conjunto dos chefes de governo dos Estados-Membros da UE. Os cidadãos, que elegem os seus chefes de governo, estavam “dois pontos” afastados do Presidente da Comissão. Foi assim que Barroso foi nomeado. Porém, em 2014 o PE propôs e conseguiu que avançasse uma convenção sem base legal nos tratados da UE: o sistema dos Spitzenkandidaten (candidatos principais). Este nome vulgarizou-se em alemão devido à língua dos últimos candidatos: o alemão Schulz e luxemburguês Juncker. Como funciona este sistema? Antes das eleições para o Parlamento Europeu os diferentes grupos partidários europeus escolhem um candidato principal à presidência da Comissão. Tendo em conta os resultados, depois das eleições, o Conselho nomeia o candidato do grupo partidário com o apoio da maior representação parlamentar. O Partido Popular Europeu (PPE), que é ainda o maior grupo partidário do PE, acabou por beneficiar, em 2014, deste sistema, através do apoio de Shulz e do seu grupo, que continua a ser a segunda maior representação parlamentar: os Socialistas e Democratas (S&D). Algo mais directo seria, por exemplo, a proposta das Listas Transnacionais, de Macron e dos Liberais, na qual o cidadão elegeria uma lista composta por candidatos dos diferentes Estados-Membros, e o cabeça de lista  da lista mais votada viria a ser presidente da Comissão. Rejeitada esta proposta pela maioria do PPE, optou-se, por manter os Spitzenkandidaten nas eleições de maio. O PPE é a família política de Von der Leyen e em que se integram o PSD e CDS.

O Parlamento Europeu diverso ou fragmentado a que chegámos, bem como as cedências de Von der Leyen, são o reflexo de uma sociedade civil inquieta nas mais diversas frentes e que se manifesta não só pelo voto,

Este ano, o principal candidato escolhido pelo PPE antes das eleições foi Manfred Weber. Weber, sem qualquer tipo de experiência governativa, teve inúmeros problemas a reunir apoiantes: desde o próprio partido, aos chefes de governo do Visegrado (Hungria e Polónia). O político alemão nem sequer chegou a ser considerado pelos socialistas. Por seu lado, o Partido Socialista Europeu tentou encetar uma “geringonça” com os Liberais, a Esquerda Unida (onde se insere o PCP e o BE) e os Verdes para eleger o seu principal candidato, o holandês Frans Timmermans. Timmermans chegou a ser considerado por Merkel mas a oposição veemente do chefe de governo Húngaro e de outros líderes europeus impediu a sua eleição. Assim, acabámos com uma espécie de pacto franco-alemão a nomear não só Von der Leyen, actual Ministra da Defesa alemã, mas também todos os outros cargos cimeiros (top jobs), incluindo a directora do FMI, Christine Lagarde, dificilmente dissociável das políticas de austeridade, para Presidente do Banco Central Europeu.

Não demoraram as críticas sobre a falta de representatividade democrática na UE. Nada de novo debaixo do sol. No entanto, a aniquilação do sistema dos Spiztenkandidaten, veio-nos trazer auspícios não só de maior democracia, mas também de algumas medidas mais progressistas. A maior diversidade (e fragmentação) do PE “obrigou” Von der Leyen a algumas promessas inesperadas : neutralidade carbónica em 2050 e corte de 55% de Gases de Efeito de Estufa até 2030; um novo pacto para um Sistema Comum de Asilo; uma conferência de dois anos sobre “O futuro da UE”, entre instituições e sociedade civil, e, numa tentativa de agradar ao Parlamento como um todo, afirmou apoiar o direito de iniciativa legislativa para o PE. Esta última promessa implica uma alteração no Tratado do Funcionamento da União Europeia. O que Von der Leyen pode fazer é ir além do Tratado  (Art.º 225) e comprometer-se a submeter ao Conselho qualquer requisito legislativo do Parlamento, desde que reúna maioria.

Nada garante que Von der Leyen cumpra as suas promessas.Todavia, se queremos promessas cumpridas e mudança política, estes acontecimentos deviam-nos instruir sobre a nossa responsabilidade enquanto cidadãos. O PE diverso ou fragmentado a que chegámos, bem como as cedências de Von der Leyen, são o reflexo de uma sociedade civil inquieta nas mais diversas frentes e que se manifesta não só pelo voto, mas pelas mais diversas formas: da Greve Climática Global aos comentários anti-imigração, o equilíbrio de forças entre agendas políticas também se molda pelas tendências dos cidadãos. Resta saber se as promessas serão cumpridas e se os cidadãos estarão à altura para o exigir. A democracia certamente não acontece por acaso. A democracia negoceia-se.

Nota  de edição: Alterado a 24 de julho no que respeita à primeira referência ao PPE

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.