Ali estava eu, na Via della Conciliazone, atrás de uma grande cruz, no meio da minha comunidade cristã. Temos muitas comunidades, umas fixas, que nos compõem, e outras que variam todos os dias, as que Deus nos vai colocando no caminho. Uma comunidade em viagem, melhor, em peregrinação, é muito forte. Estamos juntos a passar etapas, a cumprir objetivos, a viver experiências, a rezar, a partilhar refeições, conversas, desabafos e abraços e, por fim, a avaliar tudo isso em comunidade. A alegria é profunda, o olhar brilha, o sorriso anima, o abraço aquece. Ali, somos a melhor versão de nós próprios, e isso é como ir aos treinos, trabalhar em esforço para ficarmos com outra figura.
E ali estava eu, na Rua da Conciliação, à espera que chegasse a nossa vez de avançar até à porta. Eu sou o caminho, disse Jesus, e ali estávamos nós no inicio do caminho, a aguardar pela nossa vez. Eu sou a porta, disse Jesus, e lá muito ao fundo, no cimo da escadaria da basílica de São Pedro, eu sabia que ela estava lá. Não era uma porta de uma basílica. Era Jesus, que me ia fazer passar do que eu sou para aquilo que Ele quer que eu seja. A porta é santa porque trata da minha santidade, da de cada um de nós.
Ali estava eu, na via della Conciliazone, prestes a começar o meu caminho, que sabia onde começava e onde ia acabar. Com Deus é assim, nunca andamos à deriva, sabemos de onde vimos e para onde vamos. Aquele caminho, que eu olhava, era ali a minha vida.
Aquele horizonte, que eu vislumbrava, era onde eu ia chegar, em comunidade, atrás de uma cruz que foi passando de mão em mão. Todos temos a nossa, aquela era a de todos, levada por todos, como sempre devia ser. Aqueles dias, vividos assim, eram também, como sempre deviam ser, os dias.
Ali estava eu, na Via della Conciliazone, a ganhar balanço para o caminho. Estava aquele silêncio das multidões em Deus. E o silêncio deixa ouvir a voz suave que fala dentro de nós. A minha falava -me das minhas atitudes torcidas, que costumam colocar pedras no meu caminho, por vezes pedregulhos a impedir-me de avançar. Na véspera tinha tido um desses, nem era muito grande, mas caiu-me do bolso e acertou-me num pé. Assim não dava para avançar e então avancei noutra direção, na Via della Conciliazone. Estava ali o sacerdote que nos guiava, a confessar pessoas que se queriam preparar para a Porta Santa, para a passagem que um dia iremos ter. Levantei a mão e o seu olhar cruzou o meu. Confessada aquela pessoa, ali na rua, a passos de todos os outros, avancei eu, e as lágrimas corriam debaixo dos óculos escuros, por uma coisa (insignificante, disseram-me os olhos bondosos dele) – não, não, insisti eu, nada insignificante, porque estruturante. Ali, naquela ação que eu tinha tido, estava a minha linha de pecado, semente má de quase todas as outras. E então, o olhar de Deus desceu sobre mim no olhar daquele sacerdote, e eu chorei mais, atrás dos óculos escuros, e ali mesmo, na via certa, eu reconciliei-me com o mundo, o que me rodeia e eu tantas vezes magoo, e o meu interior, que chora as minhas tantas imperfeições. E, naquele momento, percebi na pele a indulgência plenária que ia receber ao atravessar a Porta Santa da Basílica de São Pedro, o primeiro da Igreja, antes deste último, que acabara de partir. Foi um branqueamento que ali me aconteceu e me preparou para, por um milésimo de segundo, experimentar a brancura imaculada do nosso Deus e pedir, com a ajuda daquela comunidade de 60 pessoas que peregrinava comigo, simbolizando todas as outras minhas comunidades, pedir pela comunhão final. Ali, no lugar do primeiro Papa, e no dia seguinte, em Santa Maria Maior, junto ao túmulo do último, e através daquele bom pastor que, com o olhar de Deus, me ajudou a conciliar com o meu caminho, eu, por instantes imaculada, pedi pela minha igreja e pelo novo papa que estava a chegar.
Nota: A Porta Santa é um dos símbolos mais marcantes do catolicismo, carregando um profundo significado espiritual e litúrgico. Mais do que uma simples entrada física, ela representa a passagem para um novo caminho de fé, perdão e renovação interior. Durante o Ano Santo, atravessar a Porta Santa — com oração, confissão, comunhão e obras de caridade — permite ao fiel receber a indulgência plenária, ou seja, a remissão total das penas temporais dos pecados já perdoados.
A abertura da Porta Santa é feita com uma cerimónia solene, repleta de simbolismo. O Papa bate três vezes na porta com um martelo ritual, evocando o gesto de Cristo que bate à porta do coração humano.
Nos últimos séculos, os anos jubilares em que a Porta Santa foi aberta incluem: Jubileu de 1950 ( proclamado por Pio XI)I, Jubileu de 1975 ( por Paulo VI), Jubileu do Ano 2000 (por João Paulo II) e o Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2015-2016) – por Francisco.
Durante o Jubileu da Misericórdia, o Papa Francisco autorizou a abertura de Portas Santas em dioceses de todo o mundo, permitindo que mais fiéis experimentassem o rito sem precisar ir até Roma. Foi um gesto inédito e profundamente pastoral.
A Porta Santa não é apenas um elemento arquitetónico. É um chamamento à transformação. Lembra que a fé cristã é feita de caminhos, escolhas e conversões contínuas. Ao atravessar essa porta, o fiel é convidado a deixar para trás o peso do pecado, abrir-se à misericórdia de Deus e recomeçar.
Mais do que um ritual, atravessar a Porta Santa é um gesto de fé, humildade e esperança. Em tempos marcados por incertezas e feridas sociais, esse gesto continua a ser um poderoso sinal de que a graça está sempre acessível a quem deseja voltar para Deus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.