6 de fevereiro: dia da tolerância zero à mutilação genital feminina

O que é que já fizemos por uma menina ou por uma mulher mutilada? A mutilação genital feminina é um segredo terrível guardado no seio das famílias migrantes residentes em Portugal. Somos um país de risco.

Hoje o mundo assinala o dia da tolerância zero à mutilação genital feminina.

Segundo estimativas da UNICEF, já cerca de 200 milhões e meninas e mulheres terão sido submetidas a esta prática no mundo (UNICEF, 2016). No único estudo de prevalência feito sobre o tema no nosso país (dados de 2015) existirão cerca de 6576 mulheres e meninas sujeitas ao Corte (designação dada a este tipo de mutilação). Falamos em estimativas e prevalência, não falamos em números reais. Serão seguramente mais. O Corte é uma área prioritária da Convenção de Istambul ratificada por Portugal e constitui um crime no nosso país. Um familiar ou alguém que auxilie a prática compactua com um crime.

Podia falar-vos dos vários tipos de mutilação que estas jovens são submetidas e das consequências que dai advêm: dor intensa e crónica, sangramento e choque séptico, dificuldades na eliminação de urina ou fezes, infeções sexualmente transmissíveis, a morte causada por hemorragias graves, as infeções várias (pélvicas recorrentes, no trato urinário e no aparelho reprodutivo que podem causar infertilidade), os partos mais longos e complicados obstruídos por fístulas obstétricas. Mas gostava antes de mais de dizer-vos que isto tudo é um segredo terrível guardado no seio das famílias migrantes residentes em Portugal e sobretudo na vida destas vítimas cuja maior consequência talvez seja a enorme ferida da memória do que passou.

É um ritual que pertence à cultura de vários povos, existe nos cinco continentes. Acontece por tradições ancestrais em virtude de rituais de passagem envoltos muitas vezes no sobrenatural.

É preciso sensibilidade para perceber que, erroneamente, as mães, as tias, as avós que levam estas meninas ao Corte acreditam que fazem o melhor por elas: que serão melhor aceites socialmente, que se tornam parte da comunidade verdadeiramente, que se purificam.

Mais: é preciso sensibilidade para perceber que, erroneamente, as mães, as tias, as avós que levam estas meninas ao Corte acreditam que fazem o melhor por elas: que serão melhor aceites socialmente, que se tornam parte da comunidade verdadeiramente, que se purificam.

Mas atrevo-me a pedir mais ainda, gostava muito que fixássemos todos esta ideia de que precisamos todos de estar mais atentos (professores, médicos, policias, vizinhos, amigos) não só porque esta prática existe no nosso país, mas sobretudo porque queremos e devemos estar na linha da frente da defesa dos direitos das meninas e mulheres da nossa rua e do mundo.

Submeter uma menina ou uma mulher ao Corte é privá-la de viver a plenitude do seu corpo, de ter direito a ele.

O que fazemos nós por estas mulheres e por estas meninas? Que afinal são nossas vizinhas, vão connosco no metro, trabalham nas nossas empresas, passam por nós na rua? Elas, que vivem com este segredo, saberão que atualmente o SNS tem médicos preparados para as receber? Saberão, na prática, pedir ajuda? Estarão suficientemente escolarizadas para compreender que estes rituais são perigosas para as meninas das suas famílias e por isso têm o dever de as proteger?

Não sei.

Daquilo que conheço da realidade da mutilação genital feminina, e ainda que esta luta se integre na Estratégia Nacional para a Igualdade e Não Discriminação 2018-2025 e que se encontre também inserida em alguns Planos Municipais (recordo o trabalho extraordinário das Câmaras Municipais de Amadora e de Sintra) que se preocupam verdadeiramente com a vida das meninas e das mulheres nas suas comunidades migrantes, não sei se fazemos o suficiente.

Não sei se as campanhas que são lançadas, dirigidas maioritariamente em português e maioritariamente para as comunidades da Guiné Bissau, serão verdadeiramente abrangentes para as realidades de mulheres migrantes que ainda vivem em comunidades muito fechadas, francófonas, e aqui recordo mulheres onde a prevalência da MGF é igualmente elevada: Guiné Conacri e Senegal.

Tive o privilégio de conhecer mulheres que vendem nas estações de comboio da linha de Sintra, por exemplo, e se alojam em alguma zonas do Rossio na comercialização de produtos dos seus países.

Confesso-vos que depois de realizar com a minha irmã o documentário “Este é o meu corpo” cujo um teaser foi levado à OMS pelas mãos da ex-secretária de Estado Catarina Marcelino, esta é uma causa que agarrei. Talvez por isso, hoje, gostava de pedir-vos o seguinte: falem deste tema. Falem com os vossos filhos, com a vossa família, com os vossos amigos. Há um conjunto de indicadores que permitem indiciar que a prática da MGF pode acontecer, por isso podemos estar todos mais atentos quando:

a) Exista uma mulher ou uma menina com pertença a uma família/grupo étnico que pratica o Corte e onde a mãe e as irmãs mais velhas foram já mutiladas

b) Exista uma menina ou uma jovem que pertença a um grupo familiar que pratique MGF e esteja em vias de regressar ao seu país de origem (com a criminalização da mutilação genital no nosso país, grande parte das mutilações são feitas em países de origem)

Que se conheça. Que se difunda. Que se fale. E que se limite este Segredo do Corte até ao seu desaparecimento da face da terra.
Mas, e talvez sobretudo, que não deixemos nenhuma mulher para trás.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.