Viver a quaresma – Renascer

A fé que professamos, mesmo feridos, obriga-nos a estar de pé, como Maria. Distantes por contenção mas presentes por compaixão. Não nos vamos render nem dar por vencidos. Mas é preciso renascer.

A fé que professamos, mesmo feridos, obriga-nos a estar de pé, como Maria. Distantes por contenção mas presentes por compaixão. Não nos vamos render nem dar por vencidos. Mas é preciso renascer.

“Maria estava de pé junto à cruz” (Cf. Jo.19, 25). Estar de pé é, provavelmente, o desafio mais “pertinente” da quaresma que estamos a viver. A quaresma que tínhamos previsto, com os nossos planos de conversão, terminou precocemente e já não serve para as circunstâncias que vivemos.

A realidade obrigou-nos a todos a entrar em quarentena. Esta é a nova quaresma. A quaresma que não imaginávamos possível, que nunca tínhamos vivido, a quaresma feita, não de jejuns ou abstinências “normais”, mas a quaresma da sobrevivência da própria condição humana que chegou ao mundo sem aviso de receção. A quaresma de 2020 está a levar-nos para cenários inimagináveis, de duelo entre a vida e a morte, entre a ameaça e a superação, entre o inesperado e a esperança.

É possível estarmos atordoados com a ameaça que estamos a viver. De repente, tudo se precipitou e nada do que podemos e sabemos chega para enfrentar este novo adamastor. Mesmo com esperança, é difícil aceitar os dias duros que estamos a viver. As horas não passam, as notícias desfazem-nos, as orações não chegam. Como continuar de pé, a reerguer a própria vida sem nos podermos consolar uns aos outros, sem nos alimentarmos do pão de Deus? Ainda ontem nos sentávamos todos juntos a rir, a conversar e partilhar sonhos e dificuldades, a inventar projetos de solidariedade ou a programar noites de partilha e oração; ainda ontem preparávamos o casamento, descobríamos em casal que estávamos grávidos ou pedíamos um
empréstimo para pagar a primeira prestação da casa que sonhámos. Ainda ontem comíamos um gelado no Santini, trocávamos juras de amor na praia, preparávamos às escondidas a festa das bodas de oiro dos avós, fazíamos os exames do primeiro semestre, ensaiávamos a Via Sacra da Paróquia. Ontem, a vida era o que era e hoje, sabemos que não era pouco o que nos parecia só “alguma coisa”. Hoje, teve que ser tudo desmarcado e adiado e, de repente, parece que tudo nos é proibido ou dificultado.

A quaresma de 2020 está a levar-nos para cenários inimagináveis, de duelo entre a vida e a morte, entre a ameaça e a superação, entre o inesperado e a esperança.

Hoje, provavelmente, percebemos a distância que vai entre o virtual e o real, sem desdém para nenhuma das partes. Estamos perto, vemo-nos mas não nos podemos abraçar. Somos nós sem sermos tudo o que há em nós. Vivemos proibidos uns dos outros e estar longe tornou-se, ainda que provisoriamente, na forma mais inesperada de relação e de respeito. A caridade da quaresma é inédita e tem agora o nome de contingência, prevenção, isolamento e distância e, a esmola, outra das ferramentas quaresmais obrigatórias, reinventa-se, generosa, talvez até excessiva, em mil ajudas que nos chegam de todos os lados, através das plataformas digitais como uma verdadeira bênção para vencermos o tédio e a insegurança dos amigos, que sem certezas esperam o dia de manhã. Estamos todos em vigília, preocupados mas desarmados.

Ao princípio, obcecados com os nossos afazeres imprescindíveis, na concorrência brutal das nossas vidas de sucesso, tudo aparecia e nos parecia, que Deus perdoe a nossa insensibilidade, um problema dos chineses. As notícias eram terríveis, as imagens alarmantes, a situação era preocupante e devastadora. Mas era uma dor vivida do outro lado do mundo, eram outros os protagonistas e outros eram as vítimas, talvez, um pouco, à imagem do modo como vamos acompanhando a situação dos refugiados: comove mas não move. Agora tudo mudou e vai continuar a mudar. No teatro das operações estamos nós, as potenciais “vítimas” somos nós, a história da impotência humana faz-se connosco. Somos nós os atores desta tragédia para a qual não estávamos preparados nem temos uma resposta, apesar de todos os heróis que, por nós, por cada
um de nós, combatem diariamente nas trincheiras dos hospitais, na resistência dos próprios limites, uma luta desigual, sem pressas, entre David e Golias.

Como tem sido difícil reconciliarmo-nos com a nossa condição frágil, impreparada para tão grande batalha? Quem poderá travar esse vírus cobarde e presunçoso, que se julga imperador e senhor das nossas vidas? Quem poderá escapar a esta ameaça viral depois de nos termos convencido que éramos intocáveis, incríveis, imortais antes da própria morte?

É a vida que está em jogo. A terrível ameaça que se propaga cobardemente entre nós, age calada e devora-nos sem razão e sem culpa. Parece um castigo mas não é. É só uma praga que, com muito trabalho científico e muita confiança em Deus, vamos vencer. Até lá, vagarosamente, à medida que os dias da quaresma se vão rezando, precisamos urgentemente de reler a condição humana, deixar todos os mitos e Prometeus alarmistas e recomeçar, renascer, recriar a vida a partir de Cristo que, por amor carregou, transformou e deu sentido á própria cruz. Sozinho mas não abandonado, isolado mas não esquecido. Maria estava de pé, com Ele, n’Ele.

A fé que professamos, mesmo feridos, obriga-nos a estar de pé, como Maria. Distantes por contenção mas presentes por compaixão. Não nos vamos render nem dar por vencidos. Já todos na vida nascemos e renascemos muitas vezes. Nascemos para renascer. Ninguém nasceu sozinho. Nasceu de sua mãe, nasceu com a própria mãe. Nasceu para nascer, para renascer todas as vezes que for preciso. Todos sabemos o que é refazer uma vida, recomeçar a partir do nada, fazer das migalhas pão, sem poder contar com nada nem com ninguém. Nascemos e renascemos para existir.

A quaresma de 2020 vai ser um caminho duro mas não interminável, condenado a prolongar-se para além da Páscoa da Ressurreição. Temos um enorme deserto a percorrer sem sabermos, com a certeza desejada, como vamos conseguir chegar ao fim.

Infelizmente é ainda muito cedo para cantar vitória ou descansar. A quaresma de 2020 vai ser um caminho duro mas não interminável, condenado a prolongar-se para além da Páscoa da Ressurreição. Temos um enorme deserto a percorrer sem sabermos, com a certeza desejada, como vamos conseguir chegar ao fim. Faremos este longo caminho a tremer, talvez até sem GPS ou outras bússolas mas nunca nos sentiremos perdidos. Caminhamos ansiosos mas não angustiados. Já não vamos pelos nossos sonhos. Vamos pelo dever humano de existir. Vamos pelos outros! Não nos vamos render. Vamos resistir, lutar, combater. Vamos vencer este Gólgota como Cristo venceu o pecado na cruz.

Nesta quaresma, a santidade pessoal já não é um projecto de conversão para agradar a Deus e ampliar a alma. A nossa conversão é muito mais do que um desassossego que eleva. A nossa vida ficou sem garantia e ganhou, paradoxalmente, nas cinzas desta quaresma sanitária, um estatuto de valor universal. Impagável, inegociável. Não importa se os que já foram apanhados pela “peste” são santos ou pecadores, milionários ou sem abrigo, grandes artistas ou iletrados. São seres humanos, são da nossa condição, são nossos irmãos, são filhos do mesmo Deus. Esta é a “revelação” da Quaresma deste ano. Descobrimo-nos frágeis e irmãos. No fundo, devemo-nos uns aos outros.

O País está em emergência sanitária, os hospitais estão em “guerra” e os médicos exaustos, as escolas e as igrejas estão em serviço on-line, as praias e os jardins estão proibidos, as bibliotecas e os cinemas estão fechados, as ruas estão desertas, os mais velhos estão escondidos, as famílias estão refugiadas nas suas casas quase anestesiadas no mundo digital, a fingir ou pelo menos a exorcizar os medos que surpreendem os mais fortes, os inquebráveis, todos. Afinal, estamos todos a descobrir que na vida ninguém tem um seguro infalível contra todos os riscos.

Nesta quaresma trágica e irónica não devemos estar juntos, só podemos estar fechados. O que não podemos é estar contra os outros, fora uns dos outros, fora do Corpo de Cristo. Falta-nos o pão de Cristo mas não nos falta a dor de Cristo. Comunguemos a dor dos nossos irmãos.

O jejum quaresmal ganhou uma dimensão que nunca imaginaríamos há umas semanas atrás. Estamos proibidos de viver com o essencial que julgávamos intocável: os outros, a comunidade. Conviver, abraçar, viajar é um luxo adiado, sem preço. Quase não podemos celebrar nem a vida nem a morte. Tudo está ou em rutura ou em espera. Ao mesmo tempo, este jejum obriga a uma tal intensidade de vida que para alguns é um excesso tremendo. Excesso de preocupação pela própria saúde; excesso pelo bem-estar dos amigos e familiares mais próximos; excesso de vida em casa, entre marido e mulher, entre pais e filhos; excesso de notícias, de boatos, de silêncio, de limites, de solidão, de medos e precauções.

Estar de pé. Pergunto-me o que será hoje, estar de pé. De pé, para elevar os outros, para os segurar, para os tirar das trevas, uma vez que hoje, ao contrário do passado, o mártir nem se pode oferecer para estar no lugar do outro e substituir o condenado. O que fazer quando o amor não se pode conjugar na doação física do corpo que se oferece para morrer no lugar do outro? O santo e o mártir perderam espaço no seu holocausto livre e generoso. Como podemos viver hoje o ofertório de Cristo por amor, na comunhão plena com quem sofre?

Julgo que foi Ricardo de São Vítor que escreveu: “Onde há amor há um olhar.” É com este olhar, de um amor sem corpo, que somos chamados a saber estar de pé. A este propósito, o Sr. Cardeal Tolentino de Mendonça, afirmava: “Não raro, esse olhar que o amor nos pede acontece no contexto de um sofrimento que preferíamos absolutamente não viver, mas do qual aprendemos alguma coisa — e alguma coisa preciosa — a que sem ele não chegaríamos. O mundo da dor é vasto e bem mais próximo do que supomos”.

Nesta quaresma trágica e irónica não devemos estar juntos, só podemos estar fechados. O que não podemos é estar contra os outros, fora uns dos outros, fora do Corpo de Cristo. Falta-nos o pão de Cristo mas não nos falta a dor de Cristo. Comunguemos a dor dos nossos irmãos. Nas mãos abertas, limpas, dignas e pobres, prontas a receber o pão do Céu, recebemos o vazio e o silêncio dos que gritam por Cristo sem resposta. Como poderíamos comungar Cristo sem comungar os “sem Cristo”, os “sem alegria”, “os sem terra”, “os sem amor”, os “sem nada”?

É a esta esperança imaculada que a via dolorosa nos conduz. Não para encontrar a alegria do depois, a alegria que está no fim mas a alegria que está por dentro, que permanece na dor, a alegria da semente que resiste na terra e que brotará, se for preciso, do meio das pedras. É esta alegria que vemos sair das redes sociais, das janelas e varandas, e canta e aplaude e agradece e enobrece a condição humana. É a alegria que salva, que redime, que antecipa o memorial da ressurreição.

De pé, com Cristo, por dentro de cada um, vai-se fazendo a nossa quaresma, em cada olhar cheio de amor. Hoje renascemos da dor do outro, inteiros, de pé e vemos a vida como um parto incontornável, arriscado e sem epidural. Está visto que sem a experiência da dor a nossa alegria será sempre incompleta.

Agora que estamos a experimentar, na própria pele, a verdade da contingência humana, não deixemos de rezar, uns pelos outros, como irmãos que somos, como Jesus nos ensinou:

Pai Nosso…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.