Começa hoje o Advento. Somos convidados, por Jesus, a acordar, a sair de um sono centrado em nós, nos nossos e nos que estão perto e a ficar atentos às necessidades dos outros.
É muito comum, chegado o início do Advento, construirmos calendários para toda a família, colocando em cada janelinha ações concretas que nos fazem sair de nós mesmos para dedicarmos a nossa oração, atenção e tempo ao que, no dia a dia, damos menos atenção. Desde “arrumar o quarto”, “não discutir com os irmãos”, “ligar à avó”, até “fazer um bolo para oferecer aos vizinhos”, são tarefas que podemos encontrar em tantos calendários, sobretudo nos que são feitos pelos pais para os filhos. São ações dirigidas aos outros, sim, mas são tarefas. Fazemo-lo com o objetivo de que o outro fique feliz, mas se a tarefa não passar disso mesmo, o quarto no dia seguinte volta a ser tema de conflito, as discussões entre os irmãos regressam ainda com mais intensidade e a avó fica sem um novo telefonema ou visita até… à Páscoa.
Haverá ainda um dia em que calha a tarefa “separar os brinquedos bons que já não usamos para dar aos meninos que não têm presentes”. Nesse dia, o meu telefone toca. “Sofia, estivemos com os miúdos a fazer uma enorme arrumação no quarto deles e a separar o que já não usam e está em estado praticamente novo e queremos dar a uma instituição. Sabes onde podemos entregar?”
Começa hoje o advento. Somos convidados, por Jesus, a acordar, a sair de um sono centrado em nós, nos nossos e nos que estão perto e a ficar atentos às necessidades dos outros.
Este novo olhar de Advento faz com que sejamos mais generosos. Partindo maioritariamente do que temos, nasce o desejo de repartir tudo o que temos – em abundância – com outros. E então o telefone toca de novo: “Sofia, organizamos um “amigo secreto” na nossa família e só as crianças vão receber presentes. Os adultos não recebem e, em vez disso, vamos juntar o dinheiro para entregar a uma instituição”.
O que têm em comum todas estas pessoas? Um despertar para a necessidade do outro, que muito admiro. E o que têm de diferente? Entre outras coisas, a necessidade – maior nos últimos – de conhecer o destinatário dos bens para reforçar o mérito da sua (boa) ação.
Se dou um saco de jogos que estavam a ocupar espaço no armário, entrego o saco a alguém que entrega a alguém que entrega a alguém e não preciso de saber sequer se e quem recebeu. Se dou arroz, massa, ou 5 litros de azeite, faço-o a uma organização em quem eu confie, mas o valor – reduzido – não justifica que eu tenha o direito a saber mais. Se compro os pijamas de Natal para as 15 crianças que vivem numa casa de acolhimento (vulgo instituição), reunindo um grupo de 15 amigas para cada uma pagar um pijama, já fica no ar o forte desejo (tantas vezes expresso) de lá ir, “conhecer a casa e os miúdos”. E, se possível, “quero levar o meu filho que vai dar a sua Nintendo a um outro menino para ele perceber que há outras realidades e há outras crianças que não têm tudo o que ele tem”.
Mesmo que saibamos que uma determinada casa de acolhimento ou família precisa de certos bens (shampoos, fraldas, azeite, …) muitas vezes questionamos se precisam mesmo do que estão a pedir (não será luxo o leite XPTO quando eu sempre dei aos meus filhos o leite ABC?) e acabamos por ir comprar e escolher a marca que sempre comprámos para os nossos filhos, a ABC, claro. Dinheiro, esse, tão essencial à livre escolha, é difícil pedir e é difícil de dar. Porque quem não conhece nem sempre confia que o outro (seja a instituição ou a família necessitada) vai fazer bom uso do “seu” dinheiro.
E há ainda, por último, quem queira levar meninos que vivem em instituições para passar o Natal junto da sua família. E o meu telefone volta a tocar: “Gostava de proporcionar a uma criança que vive em instituição um Natal em família. Conhecem alguma instituição que aceite voluntários para levarem os meninos a passarem o Natal?”
Porque tenho a certeza de que estas pessoas se sentiram chamadas por Jesus a proteger e a cuidar dos mais pequeninos. Porque sei que quem sente este chamamento fica tão disponível para o outro, saindo do sono mais ou menos profundo em que vivemos para um sonho. E porque já atendi tantas vezes o telefone para responder a questões destas… a(d)venturei-me a partilhar alguns tópicos que vou respondendo, um a um, de forma a passarmos a ver e a escutar o outro com outro coração.
Este novo olhar de advento faz com que sejamos mais generosos. Partindo maioritariamente do que temos, nasce o desejo de repartir tudo o que temos – em abundância – com outros.
1. É no Natal que as empresas e pessoas mais dão donativos. Não faz mal, mas procurem facilitar e não virar as atenções para si.
A não ser que a Casa de Acolhimento tenha dificuldade em armazenar, não há problema em dar donativos (em dinheiro ou em espécie) durante o mês de dezembro. Há casas que recebem certos bens no Natal e que duram o ano inteiro. Que bom! As verbas que as casas recebem do Estado não permitem, sequer, o pagamento da totalidade dos ordenados com o pessoal e o contributo de particulares e empresas com bens e serviços representa uma ajuda essencial.
Um pedido: tentem saber exatamente o que a casa precisa e levem só e apenas isso. A gestão de roupas, comidas e outros bens numa casa pode ser um verdadeiro desafio (pesadelo!). Se para nós, na nossa casa, é árdua a tarefa de destralhar, imaginem como será numa casa de acolhimento de adolescentes onde as pessoas podem passar à porta e deixar sacos de roupa… de bebé.
Além disso, as Casas de Acolhimento, durante o mês de dezembro, continuam a funcionar, com crianças acolhidas, com entradas e saídas de crianças, pelo que as visitas de benfeitores – sempre bem-vindos – tornam este mês ainda mais exigente. Se tiverem gosto em conhecer a Casa, combinem um dia (e sobretudo um mês) melhor para o fazerem.
2. As famílias mais carenciadas e as crianças em instituições usam quase sempre, ao longo do ano, roupas e outros bens já usados.
É tão bom receber um – pode ser apenas um – presente especial dado com todo o amor do Menino Jesus (ou até do Pai Natal).
Recordo-me de uma menina que já tinha vivido uns anos em acolhimento e que, perto dos 12 anos, disse a uma educadora “nunca recebi um presente com etiqueta!”. Deixo duas sugestões:
- Não deixem para o Advento a arrumação dos quartos, a escolha das roupas e brinquedos dos filhos. Quando fizerem a mudança de roupa de inverno para a roupa de verão e perceberem que as roupas que estavam guardadas do verão anterior já não servem, é altura de as dar – logo – a quem precisa. Porque o verão já terá chegado e serão mais úteis agora
- Contribuam para que um menino ou menina, de uma casa de acolhimento ou de uma família em maiores dificuldades, receba exatamente o presente que desejou ter. Sem julgamentos. Se pode, ou não pode, ter uma camisola da marca que sempre desejou ter. Contribuirei se achar que sim.
3. As crianças institucionalizadas recebem muitos presentes de desconhecidos. Devo repensar se ao dar estou a exigir a exposição do outro.
Ao contrário com o que acontece connosco e com os nossos filhos, estas crianças e jovens recebem presentes da Casa, de benfeitores que eles desconhecem, de empresas com nomes que nem conseguem pronunciar. Coloco dois pontos, para reflexão:
- Colocando-se do lado da criança ou da família que recebe o presente: gostaria de ser exposto? Gostaria de ter de aceitar, sorrindo, tirar fotografias com os bens recebidos, sabendo que esse consentimento era condição do apoio recebido e da promessa de apoio futuro?
- Gostaria de receber um carro telecomandado de um menino que já não o usa e veio entregar-lhe, saindo depois da instituição com a sua família que (aos seus olhos – como criança) é rica e feliz?
Mas tal como o Bom Samaritano, tenhamos sempre em atenção para que, ao ajudar a Casa de Acolhimento, a família desfavorecida, a criança desprotegida, o façamos de forma verdadeiramente gratuita, desinteressada e focada na necessidade do outro
4. As crianças que vivem em instituições estão a viver um momento de crise na sua vida e passaram por vivências muitas vezes traumáticas. Irem passar o Natal com um desconhecido não é um bom trato.
A maior parte das crianças acolhidas têm as suas famílias e amigos e é com eles que vão passar o Natal. Então quem não vai passar o Natal com a sua família biológica?
a) Aqueles (poucos) que não têm nenhuma família presente;
b) Aqueles (alguns) que acabaram de ser acolhidos e ainda não podem passar períodos de fim de semana e férias com os seus familiares no ambiente de onde foram retirados;
c) Aqueles que, tendo ou não família, estão impedidos pelo Tribunal de estar com a sua família biológica e esperam por uma nova família (sobretudo nos casos de decisão de adoção ainda não concretizada – ainda não há família adotiva);
d) Aqueles – jovens, sobretudo – que vão viver até à sua autonomização acolhidos e não têm família de suporte;
e) Aqueles (alguns) que têm incapacidades acentuadas, sejam de saúde física ou mental, que não têm condições de segurança para passarem o Natal com familiares.
Para as crianças e jovens que têm família ou amigos com quem podem passar o Natal, é seguro que é com esses que vão. Estão mais tranquilos. Até evidenciam junto dos outros como estão felizes e aliviados porque, mesmo que não pertençam inteiramente ali, têm uma solução.
Este alívio de uns realça a falta de solução de outros. E para estes miúdos (das alíneas a) a e), o período do Natal é o mais difícil. Desde cedo, começam a perguntar como vai ser, com quem vão passar. E nem sempre a resposta vem cedo ou, sequer, vem. Quem não sai, passa o Natal na Casa.
No entanto, estas crianças nem sempre estão alegres, felizes, nem sempre são conversadoras, ou colaborantes, ou sequer agradecidas. São crianças e jovens a quem está a faltar o essencial e que sentem que não têm valor e não vão brilhar. Precisam de pessoas para quem sejam especiais.
Tentemo-nos colocar no coração da criança: não pertence ali; é um convidado; troca os nomes dos 5 filhos; ainda nem sabe se deve chamar a sua família amiga pelo nome ou por “tios”; ainda pode fazer asneiras que as culpas caem sempre em cima dos outros; aparecem tios, avós, primos, com quem tem de conseguir interagir, de forma adequada, agradecendo, sem desiludir, provando que é merecedor de estar ali e que não fará, em momento algum, com que os filhos da família se sintam desconfortáveis com a sua presença. E assim vai crescendo, também na arte de se tornar invisível…
Por tudo isto, estando as famílias ávidas de dar e se entregar mas ainda a viver esse “sonho”, quando acordam para a realidade percebem que estão pouco preparadas. Estão muito disponíveis, sim. Estão apaixonados pela ideia, pela missão. Mas não pela criança. Pois ainda mal a conhecem. Só quando a família sente amor pela criança, um amor que a faz dar (sem receber), entregar-se (sem gratidão), está em condições de receber a criança na sua casa, na sua família, no seu Natal. Seja ela como for porque, sendo como for, tem todo o valor.
Por isso, levar meninos connosco a passar o Natal exige uma relação prévia.
Então, o que há a fazer?
Se o chamamento passa por cuidar de um dos mais “pequeninos”, um daqueles que foi atacado ao longo da sua curta vida e se sente “abandonado” na beira da estrada com tantos (muitas vezes o próprio sistema) a passarem ao lado, assumam no início do Advento esse compromisso. Deem os primeiros passos. Mas tal como o Bom Samaritano, tenhamos sempre atenção para que, ao ajudar a Casa de Acolhimento, a família desfavorecida, a criança desprotegida, o façamos de forma verdadeiramente gratuita, desinteressada e focada na necessidade do outro para que as crianças não tenham, em troca de algum que têm o direito de ter, seja a fralda, o leite, o brinquedo ou, sobretudo o colo (de família), de expor – ainda mais – a sua vulnerabilidade.
No dia em que começa o Advento, Deus chama-nos a ver com outros olhos e a escutar com outros ouvidos – os do coração. E não me pede que faça a partir do meu coração, mas a partir do coração daquele que quero cuidar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.