Uma vocação para servir o mundo

Ana Rita Leite sempre teve um desejo profundo de ajudar os que sofrem. Depois de um intenso processo de reflexão, acredita que agora concretiza plenamente essa vocação como médica. Já esteve em Moçambique e na Grécia a apoiar os refugiados.

Ana Rita Leite sempre teve um desejo profundo de ajudar os que sofrem. Depois de um intenso processo de reflexão, acredita que agora concretiza plenamente essa vocação como médica. Já esteve em Moçambique e na Grécia a apoiar os refugiados.

Ter excelentes notas equivale a ir estudar Medicina. Esta é uma ideia feita que ainda permanece enraizada no pensamento de muitos jovens quando chega a altura de terminar o secundário e aceder ao ensino superior. Apesar de nunca ter posto de parte a possibilidade de vir a ser médica, Ana Rita Leite tentou resistir a esta ideia pré-concebida de ir apenas porque tinha boas notas. Até porque, além do bom aproveitamento e do gosto pela matemática e as ciências, também gostava de outras coisas, como filosofia ou até ballet, que praticava nas horas livres. Aliás, estava mais preocupada em compreender-se a si própria e em encontrar o seu lugar no mundo do que propriamente em escolher uma profissão para exercer.

Foi isso que procurou fazer desde o 10.º ano, quando entrou na área de ciências, apenas porque era a mais abrangente e lhe limitava menos as opções para o futuro. Ao contrário do que acontecia com alguns colegas, Rita não sofria pressão por parte dos pais para determinar um rumo para os seus estudos, pelo que foi adiando a decisão, sem se forçar muito em querer saber o que seguir.

A verdade é que chegou ao 12.º ano sem ter como preencher os papéis de acesso à universidade e teve de pedir a ajuda de um psicólogo para descortinar a sua vocação. Algumas características começaram a ficar claras, como o desejo enorme de ajudar os que mais sofrem e a sensibilidade para o que ia acontecendo à sua volta, mesmo que fosse do outro lado do mundo. “Lembro-me quando foi o sismo do Haiti de comentar com a minha mãe que queria ir para lá ajudar. Sentia como responsabilidade minha ajudar a fazer no mundo uma distribuição mais homogénea das coisas boas, uma vez que eu tinha tudo e aquelas pessoas tinham ficado sem nada”. Estas eram as coisas que verdadeiramente mexiam consigo e, aos poucos, foi sentindo que a medicina – a que tanto resistira – poderia ser, afinal, uma forma de responder positivamente ao que de mau ia acontecendo pelo mundo e à sua volta. “Era uma forma de me por ao serviço das pessoas”.

A verdade é que chegou ao 12.º ano sem ter como preencher os papéis de acesso à universidade e teve de pedir a ajuda de um psicólogo para descortinar a sua vocação. Algumas características começaram a ficar claras, como o desejo enorme de ajudar os que mais sofrem e a sensibilidade para o que ia acontecendo à sua volta, mesmo que fosse do outro lado do mundo.

Candidatou-se à universidade mas falhou o acesso por poucas décimas na avaliação. Não deixa de ser curioso que uma escolha que recusara, à partida, por corresponder a um estereótipo, ficava – agora que se decidira por ela – a uma distância tão curta. Mas Rita não desanimou: entrou em medicina veterinária, confiante de que se não fosse médica, seria uma veterinária igualmente feliz. Ao fim de um ano, em que aproveitou para fazer as cadeiras que eram comuns aos dois cursos, resolveu repetir os exames de acesso à faculdade e fazer uma nova tentativa.

À segunda foi de vez e Rita, que já tinha deixado a cidade de Aveiro, de onde é natural, para rumar ao Porto, ingressou no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Os primeiros anos foram de aprendizagem teórica, e o curso até se tornou um pouco maçador, mas a partir do terceiro ano tornou-se mais clínico e prático e alcançaram-se as expectativas. “O que eu buscava eram as pessoas. Quando comecei a fazer mais parte clínica, chegou a confirmação de que era aquilo que me sentia chamada a fazer”.

Outra experiência seria fulcral nesta certeza de que estava, como gosta de dizer, a preparar-se para exercer a melhor profissão do mundo. No verão de 2017 foi para Moçambique colaborar no projeto “Sementes do Amanhã”, da Fundação Gonçalo da Silveira, que presta apoio a um centro de crianças órfãs das comunidades, em Satemwa. Durante um mês e meio, Rita foi a mamã destas cerca de 70 crianças, acompanhando-os enquanto voluntária, prestando-lhes apoio na alimentação e na saúde mas, acima de tudo, fazendo-lhes companhia.

Ana%20Rita%20esteve%20em%20Mo%C3%A7ambique%20em%202017%20a%20trabalhar%20com%20crian%C3%A7as
Ana Rita esteve em Moçambique em 2017 a trabalhar com crianças

Foi uma experiência de encher o coração, de enorme alegria e gratidão por um tempo  tão abençoado. Apesar de a ideia de ir ter sido difícil de tomar, Rita teve a certeza de que “não havia no mundo lugar mais certo do que aquele para estar”. Sente que cresceu como médica e como pessoa, embora não estivesse propriamente a fazer trabalho médico.

Em Portugal, Rita já tivera também alguma experiência de voluntariado e serviço, através da VOU – Associação de Voluntariado Universitário, onde participou no Projeto VOU Crescer, dedicado ao acompanhamento de crianças em risco social que estão acolhidas ou junto das famílias.

Completou depois o sexto ano do curso, entregou a tese e no final optou por não fazer o exame da especialidade e deixá-lo para o ano seguinte. Surgiu a oportunidade de fazer uma missão humanitária na Grécia, onde esteve a trabalhar com uma organização não governamental de apoio médico junto dos refugiados. No primeiro mês esteve num campo em Tessalónica e depois em novembro em Lesbos, trabalhando essencialmente com crianças mas atendendo também muitos adultos na área da saúde mental. Pessoas que vinham dos seus países de origem – África ou Média Oriente – com profundas marcas de sofrimento causadas por atos de tortura, violação e outras violências, e que sofriam de ansiedade, stress pós-traumático, até alucinações.

“Muitas vezes era a primeira pessoa a quem eles estavam a contar a sua história. Foi muito duro, mas, ao mesmo tempo, muito gratificante poder partilhar o sofrimento com aquelas pessoas e aliviar um pouco o seu fardo”. A jovem médica diz que tentava focar-se no amor – “pois o amor é sempre maior do que tudo” – mas as histórias que partilhavam consigo eram sempre muito dramáticas. Recorda-se da depressão de tantas mães que sofriam por não poderem ter como alimentar ou como aquecer os seus filhos, e do relato que uma lhe fez: “contou-me que o filho à noite rezava alto, pedindo a Deus que lhes desse eletricidade para conseguirem aquecer-se e dormir à noite”.

Regressar é sempre um processo difícil, depois de uma experiência com tanta densidade, e Rita confessa que voltar no Natal agravou ainda mais esta dificuldade. Comparar as carências profundas que sofriam as famílias que deixara na Grécia com a abundância do mundo em que vivia aquela quadra natalícia foi uma dinâmica difícil, mas serviu para reforçar o seu sentimento de gratidão e para a tornar mais sensível aos problemas que a rodeiam. “Ouvir alguns comentários que as pessoas fazem aos refugiados também me custa pois, depois de os conhecer, transformaram profundamente o meu coração”.

Já este ano de 2019, a jovem médica esteve três meses a exercer o ano comum do curso, na área da cirurgia, mas depois rescindiu o contrato para começar a estudar para o exame da especialidade, que ainda não decidiu qual será. Recentemente, em junho, regressou à Grécia, a Atenas, para mais duas semanas de trabalho médico ao serviço dos refugiados. Uma missão a que pretende voltar sempre que puder.

Tal como anteriormente, o futuro não é agora a sua maior preocupação. Rita sabe que a sua missão como médica passará, sempre que possível, por ajudar os que mais precisam. Afinal, ser médica é muito mais do que uma profissão, é uma vocação.

Nos%20%C3%BAltimos%20tempos%2C%20j%C3%A1%20esteve%20duas%20vezes%20na%20Gr%C3%A9cia%2C%20a%20ajudar%20os%20refugiados
Nos últimos tempos, já esteve duas vezes na Grécia, a ajudar os refugiados

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.