Um ano de guerra, um ano de acolhimento

Volvido um ano, cumpre fazer um balanço daquilo que tem sido o nosso trabalho (JRS), e os principais desafios enfrentados.

Volvido um ano, cumpre fazer um balanço daquilo que tem sido o nosso trabalho (JRS), e os principais desafios enfrentados.

Para o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), um ano de guerra na Ucrânia significa, acima de tudo, um ano de acolhimento de pessoas refugiadas de um conflito na Europa, em que colocamos em prática os três eixos da missão «Acompanhar, Servir e Defender», em prol dos mais vulneráveis que procuraram refúgio em Portugal.

Volvido um ano, cumpre fazer um balanço daquilo que tem sido o nosso trabalho e os principais desafios enfrentados.

RESPOSTAS DE EMERGÊNCIA
No início de março de 2022 chegaram a Portugal as primeiras pessoas refugiadas da guerra da Ucrânia. O JRS rapidamente criou uma equipa de técnicos e voluntários para dar uma resposta de emergência, através de um diagnóstico das necessidades, e da triagem entre o mais urgente e importante. O objetivo era ajudar as pessoas que chegavam a “respirar”, a sentirem-se seguras depois da incerteza de uma saída do país e de uma viagem emocionalmente intensa.

A primeira necessidade que surgiu antes mesmo da chegada massiva de pessoas foi organizar as ajudas disponibilizadas por pessoas que contactavam o JRS: foi criado um armazém de bens de primeira necessidade com as doações e uma lista de possíveis alojamentos que os cidadãos disponibilizaram para acolher os refugiados da Ucrânia, através do programa PAR Linha da Frente Ucrânia.

Outro grande desafio foi garantir que as chamadas “Caravanas Humanitárias” – pessoas ou grupos informais que se organizavam para ir buscar pessoas às fronteiras ucranianas pelos próprios meios – decorriam de forma segura. Foi prestado um apoio de orientação pré-partida e pós-chegada a duas missões de resgate, que concretizaram a chegada de cerca de 190 pessoas a Portugal. No entanto, foi preciso encontrar lugares para as primeiras noites de muitas pessoas vindas da Ucrânia ao chegarem ao nosso país, pois muitas caravanas não tinham organizado o momento da chegada.

O primeiro passo foi o de encontrar esta capacidade de alojamento temporário junto de Câmaras Municipais, da Proteção Civil, e do Alto-Comissariado para as Migrações (ACM). Dado o enorme fluxo de chegadas, foi necessário o JRS encontrar locais de alojamento e acompanhamento para o momento da chegada ao país. Assim, criámos um centro de acolhimento de emergência, juntamente com a Escola de Comércio para mais de 150 pessoas, onde disponibilizámos comida, bens de primeira necessidade, camas e o apoio de intérpretes. Também estabelecemos um protocolo com a rede de hotéis Discovery que permitiu o alojamento de emergência nos Hotéis Discovery (43 pessoas).

Também as famílias portuguesas se mobilizaram para acolher pessoas vindas da Ucrânia nas suas casas. Embora esta não seja uma situação ideal nem uma resposta social duradora, foi possível alojar 32 pessoas através deste novo modelo de acolhimento, de norte a sul do país. Este acolhimento de emergência de larga escala só foi possível graças à enorme solidariedade dos portugueses, às organizações públicas, privadas e movimentos da Sociedade Civil e, principalmente, aos voluntários que partilharam o seu tempo, talentos e afeto. Destaca-se, ainda, o apoio dos parceiros que tanto contribuíram para a criação de respostas de integração, como o Hospital da Luz (que disponibilizou consultas gratuitas), a Missão Continente (que forneceu bens de 1ª necessidade aos centros), e ainda, a Fidelidade (que disponibilizou um seguro de caução, um seguro médico e call center com operadores ucranianos que fazem o agendamento para os serviços do JRS).

Depois de um ano de guerra, também podemos olhar para os que têm sido os maiores desafios deste acolhimento e acompanhamento. Desde logo, a incerteza da guerra e a gestão das expectativas de cada pessoa que chega a Portugal. Há sempre uma grande carga de dor e emoção ao ter de abandonar o seu país, deixando por vezes família para trás e ao  chegar a um novo país, principalmente sem essa ser uma escolha livre. Acresce a incerteza quanto ao tempo de duração da guerra e o desejo de um regresso à Ucrânia “a qualquer momento”. Todos estes fatores criam instabilidade e retraem, compreensivelmente, o desejo de integração num novo país.

RESPOSTAS DE ACOLHIMENTO E ACOMPANHAMENTO DE MÉDIO-LONGO PRAZO
A par do acolhimento de emergência, o trabalho do JRS passou pelo acompanhamento social de todos os recém-chegados da Ucrânia. Embora este trabalho seja parte do nosso dia-a-dia com pessoas refugiadas e imigrantes de todo o mundo, o acolhimento em larga escala exigiu uma adaptação e coordenação especiais por parte das várias equipas do JRS às novas circunstâncias. Centrados na missão, foram recebidos pelo JRS mais de 1250 pessoas vindas da Ucrânia, a maioria nacionais desse país, mas também cidadãos estrangeiros que lá viviam.

Procuramos que este trabalho de acompanhamento tenha sempre um carácter personalizado, próximo e que comece por um diagnóstico inicial: uma conversa para ouvir cada pessoa individualmente, compreender a sua situação e tentar perceber que respostas podemos oferecer para apoiar cada pessoa na (re)construção do seu projeto de vida. A partir deste momento, constrói-se um plano de intervenção onde cada pessoa e/ou cada família é orientada para os vários serviços disponíveis, com base nas vertentes de acolhimento e integração essenciais: apoio social, jurídico, apoio à procura de emprego, cursos de língua portuguesa, formação profissional em diversas áreas, apoio no acesso à saúde, equipas de serviço psicológico e psiquiátrico e encaminhamento para outros serviços públicos ou privados que se revelem necessários.

Em Junho, o JRS foi desafiado a gerir um centro de acolhimento em Gaia. A congregação religiosa dos Redentoristas disponibilizou o Seminário de Cristo Rei para o acolhimento de pessoas refugiadas oriundas da Ucrânia. Por confiarem no JRS, os Redentoristas deixaram este centro ao nosso cuidado. Formou-se, assim, uma equipa do JRS para o Centro de Acolhimento Cristo Rei com o propósito de acolher e acompanhar pessoas refugiadas e migrantes em situação de vulnerabilidade. Desde então, foram acolhidas 182 pessoas neste novo centro.

Também no CATR – Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados, onde o JRS trabalha em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa – foram acolhidas 27 pessoas que vieram da Ucrânia, mas neste caso, apenas estrangeiros que lá viviam. Mais tarde, foi possível implementar o projeto “ARCA” – Acolhimento de Refugiados e Capacitação para a Autonomia – especificamente para o atendimento e acompanhamento de pessoas vindas do conflito na Ucrânia. Foram feitos mais de 3000 atendimentos neste projeto, em Lisboa e no Porto, e ainda em formato online para as pessoas que não têm possibilidade de se deslocar a estes polos ou preferem o atendimento à distância. No CLAIM do Porto, a equipa JRS atendeu e acompanhou 440 pessoas ucranianas.

A par do acolhimento de emergência, o trabalho do JRS passou pelo acompanhamento social de todos os recém-chegados da Ucrânia. Embora este trabalho seja parte do nosso dia-a-dia com pessoas refugiadas e imigrantes de todo o mundo, o acolhimento em larga escala exigiu uma adaptação e coordenação especiais por parte das várias equipas do JRS às novas circunstâncias.

MAIORES DESAFIOS PARA O JRS
Depois de um ano de guerra, também podemos olhar para os que têm sido os maiores desafios deste acolhimento e acompanhamento. Desde logo, a incerteza da guerra e a gestão das expectativas de cada pessoa que chega a Portugal. Há sempre uma grande carga de dor e emoção ao ter de abandonar o seu país, deixando por vezes família para trás e ao chegar a um novo país, principalmente sem essa ser uma escolha livre. Acresce a incerteza quanto ao tempo de duração da guerra e o desejo de um regresso à Ucrânia “a qualquer momento”. Todos estes fatores criam instabilidade e retraem, compreensivelmente, o desejo de integração num novo país. Esta barreira emocional leva muitas pessoas a regressar à Ucrânia (como tem acontecido em todos os países que acolhem) e, para algumas das pessoas que decidem ficar em Portugal, faz com que não vejam a necessidade de aprender português, encontrar trabalho, ou inscrever os filhos na escola portuguesa.

Outro grande desafio do acolhimento e integração da população vinda da Ucrânia é a dificuldade de encontrar uma casa para habitação familiar ou individual. Esta dificuldade leva a que seja impossível às pessoas refugiadas deixar os centros ou as famílias de acolhimento para terem o seu espaço familiar, a sua casa, e projeto de vida. Os programas estatais e municipais de habitação pública (como o Porta de Entrada) não conseguiram e não conseguem dar resposta à urgência das situações e o excesso de burocracia inviabiliza qualquer tentativa de obtenção de apoios.

Com o apoio da Fidelidade, foi criado um seguro de caução para arrendamento de habitação para esta população. Por outro lado, implementámos o projeto Safe Rent, apoiado pelo JRS Europa, que permite o financiamento de rendas para algumas destas famílias. Até ao fim de 2022 tinham sido apoiadas 11 famílias com este projeto.

Por último, destacamos os desafios relacionados com os atrasos do SEF. Embora, num primeiro momento, o Estado Português tenha aplicado a Proteção Temporária a refugiados oriundos da Ucrânia e ex-residentes legais na Ucrânia, bem como a atribuição quase automática do Número de Identificação Fiscal, Número de Identificação de Segurança Social e Número de Utente de Saúde, mais tarde foram alterados os critérios de atribuição desta Proteção e, para muitas pessoas provenientes de Ucrânia, a documentação ainda está por vir, e a sua vida continua num limbo.

Mas não é a incerteza que nos impedirá de fazer a nossa parte: trabalhar todos os dias para Acompanhar, Servir e Defender as pessoas refugiadas e migrantes em situação de vulnerabilidade em Portugal, aqueles que procuram e que confiam na missão do JRS.

PERSPETIVAS
Não sabemos até quando teremos de viver com a sombra da guerra na Ucrânia. Não sabemos até quando os cidadãos oriundos da Ucrânia terão de estar longe da sua terra e das suas famílias. Mas não é a incerteza que nos impedirá de fazer a nossa parte: trabalhar todos os dias para Acompanhar, Servir e Defender as pessoas refugiadas e migrantes em situação de vulnerabilidade em Portugal, aqueles que procuram e que confiam na missão do JRS.

Continuaremos a contar com o apoio de benfeitores, colaboradores, voluntários e parceiros, a quem muito agradecemos.

Se quiser saber mais sobre o JRS e apoiar-nos, visite www.jrsportugal.pt

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.