Três notas sobre a guerra

Não deixar por isso que o amor à violência, na nossa maneira de pensar e de falar, ganhe raízes dentro de nós, não é um extra para os virtuosos: é uma condição básica para os cristãos viverem no meio do mundo sem serem do mundo.

Não deixar por isso que o amor à violência, na nossa maneira de pensar e de falar, ganhe raízes dentro de nós, não é um extra para os virtuosos: é uma condição básica para os cristãos viverem no meio do mundo sem serem do mundo.

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia começou no passado dia 24. Não faltam por estes dias bons textos de análise política, geopolítica, histórica, ou sociológica de uma situação que será tão complexa quanto mais for levada a sério. Esta é uma altura em que se justifica de maneira particular atender à qualidade da informação que se lê e se ouve: a cacofonia é geralmente inimiga do rigor e a informação de má qualidade é infelizmente portadora de desinformação. Quanto melhor qualidade tiver a informação que recolhemos nesta altura e quanto mais garantirmos que as fontes às quais recorremos – jornais, redes sociais, livros, comentadores – são fidedignas, melhor poderemos contribuir para um debate que terá enormes consequências no futuro do nosso mundo.

Do ponto de vista do pensamento cristão, há três notas que neste momento parecem ser especialmente relevantes para pensar no fenómeno da guerra. Todas podem facilmente ser desenvolvidas tanto por via da leitura quanto de conferências online.

Três condições para que uma guerra seja justa

O horizonte cristão aponta permanentemente para a paz, como nos lembra o Papa Francisco no capítulo VII da encíclica Fratelli Tutti. Contudo, a tradição cristã não é ingénua em relação à necessidade de em algumas situações muito específicas recorrer ao uso da força para com isso defender o inocente. Numa formulação inspirada em Santo Agostinho e desenvolvida ao longo de toda a história da Igreja, há três condições que simultaneamente têm que ser reunidas para que uma guerra possa ser considerada justa: a causa tem que ser ela própria justa; a intenção tem que ser reta; e a autoridade que sanciona a intervenção tem que ter legitimidade para o fazer. A estas três condições, a jurisprudência medieval e moderna foi associando outras. São especialmente relevantes as condições de o uso da força só poder ter lugar como intervenção de último recurso; e de haver probabilidade de sucesso na intervenção a ter início. Apesar de confusa na apresentação, esta página esquematiza bem a terminologia da guerra justa e dá exemplos que ilustram bem o seu uso.

No que diz respeito à invasão russa da Ucrânia, só um exercício de fantasia permite pensar que estas cinco condições estão reunidas em simultâneo. A causa invocada por Putin de defender as populações russófilas de duas províncias de um genocídio seletivo em curso não é reconhecida pela comunidade internacional; é difícil de fugir ao facto de a intenção de Putin consistir numa declaração feita perante o mundo sobre a força da nação Russa e da sua capacidade militar; esta não é uma intervenção sancionada pela ONU ou por nenhuma nação com credibilidade diplomática internacional; a ação não teve lugar como último recurso; e a probabilidade de sucesso, como se tem visto ao longo dos últimos dias, existe mas não é garantida. De um ponto de vista cristão, a menos que surja informação que altere radicalmente o conhecimento que neste momento a comunidade internacional tem da realidade, não é possível de modo algum encontrar justiça na invasão iniciada pela Rússia no mês passado.

O problema do tiranicídio

Têm-se sucedido, não só nas redes sociais, mas também da parte de ativistas políticos ou de comentadores de assuntos internacionais, sugestões de que para terminar esta guerra bastaria eliminar a cabeça da serpente – seja por via da prisão de Putin na condição de criminoso de guerra, ou mesmo do seu assassinato. O argumento habitualmente utilizado formula-se mais ou menos da seguinte maneira: esta guerra é decretada por um homem concreto; é uma guerra injusta e que provoca sofrimento a uma grande quantidade de inocentes; parar este homem concreto faz com que a guerra deixe de ter condições para existir; portanto, deve-se fazer tudo o que for possível para parar este homem concreto.

Note-se que a tradição cristã não se opõe de modo absoluto à possibilidade do tiranicídio. Num caso em que um tirano, legitimamente eleito para ocupar um cargo de poder ou não, faz perigar a vida da comunidade e impede de maneira grave a possibilidade de viver uma vida moralmente sã, não havendo possibilidade de recurso a uma autoridade superior que destitua este tirano da sua posição e não havendo alternativa para que a grave ofensa à comunidade deixe de acontecer, a porta abre-se para a discussão sobre a morte do tirano. Esta discussão ocupou São Tomás de Aquino, o Papa Pio XII e mais recentemente uma quantidade significativa de académicos a propósito de algumas das nações tirânicas com capacidade nuclear ou na iminência de adquirirem capacidade nuclear.

O problema do argumento de que “para terminar esta guerra basta eliminar a cabeça da serpente” prende-se com uma das condições que em qualquer ponderação que justifique o tiranicídio tem que estar reunida: a certeza de que a eliminação do tirano permitirá restaurar a paz e a justiça. E essa certeza, no caso de Putin, não existe. O desconhecimento sobre o grau de adesão do establishment russo ao seu Presidente é grande, não havendo nenhuma garantia de que não surgisse no lugar de Putin outra figura agregadora que mantivesse a retórica pró-URSS e securitista que tem marcado o governo do Presidente russo.

Não deixar que a violência se internalize

Um ponto que entre os primeiros cristãos levantava muita dificuldade prendia-se com aquilo a que se veio a designar como o problema da internalização da violência. É verdade que para Tertuliano, Orígenes e muitos outros padres da Igreja, se assume que por vezes, para alcançar a paz, é preciso usar a força. Por vezes, para corrigir a violência que impede a paz de existir, é preciso ser violento com o intuito de que a paz se instale. Esta é a posição dominante para o pensamento cristão e é daqui que nasce a necessidade de definir quais os critérios que fazem com que uma guerra possa ser considerada justa.

Mas é preciso notar que para todos estes padres da igreja, há uma preocupação fundamental que tem que ser assegurada: é preciso garantir que a força não corrompe. Na carta que escreve a Fausto, por exemplo, Santo Agostinho pergunta-se sobre qual é o mal que existe na guerra. E a resposta não refere a morte, nem a dor causada, nem a destruição provocada – mas sim a possibilidade de se ganhar amor à violência, de se ficar apegado ao poder, etc. Esta é uma visão da qual em grande medida nos afastámos: a guerra preocupa-nos por causa da destruição que provoca e do mal que causa. Mas não deixa de ser interessante perceber que durante uma grande parte da nossa história esta preocupação fundamental com a internalização da violência tenha sido o principal foco de atenção.

Em tempos de guerra, levar seriamente esta preocupação dos primeiros cristãos é crucial. O horizonte cristão aponta permanentemente para a paz e por isso a nossa resposta à guerra não é a guerra, mas a paz. A guerra nunca é uma resposta: em algumas circunstâncias muito específicas e raras, é uma necessidade – mas não é e nunca será uma resposta. Não deixar por isso que o amor à violência, na nossa maneira de pensar e de falar, ganhe raízes dentro de nós, não é um extra para os virtuosos: é uma condição básica para os cristãos viverem no meio do mundo sem serem do mundo.

 

O P. Francisco Mota, sj tem escrito sobre este tema na revista Brotéria, nomeadamente:

Pode uma guerra ser justa? Notas a propósito do 4º centenário da morte do P. Francisco suárez, SJ – I , Vol. 185, Nº. 6, 2017, págs. 979-990

Da indignação justa – I Vol. 186, Nº. 4, 2018, págs. 511-520

O problema da força e da guerra – I Vol. 191, Nº. 5, 2020, págs. 401-409

Imagem: Birmingham Museums Trust – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.