Tolerância zero aos abusos sexuais

Ao assumir, e bem, tolerância zero, a Igreja assume um compromisso com todos os que foram ou poderão vir a ser vítimas. O que implica, não só desenvolver mecanismos de prevenção, identificação e sinalização mas também de reparação dos danos

Ao assumir, e bem, tolerância zero, a Igreja assume um compromisso com todos os que foram ou poderão vir a ser vítimas. O que implica, não só desenvolver mecanismos de prevenção, identificação e sinalização mas também de reparação dos danos

O abuso sexual de crianças e adolescentes é um problema de saúde pública reconhecido a nível nacional e internacional por diversas organizações, por ser transversal a todas as culturas, níveis sociais, religiões e, nessa medida, representar uma problemática com repercussões individuais, familiares, sociais e políticas.

Com frequência ouvimos falar de pedofilia e abuso sexual como sendo sinónimos. Mas não são. O abuso sexual é um comportamento que se encontra tipificado no Código Penal Português, ou seja, é um crime, que tem uma natureza pública e que, por isso, pode ser denunciado por qualquer pessoa que dele tenha conhecimento, não sendo necessário que a queixa seja feita pela própria vítima. Os actos sexuais podem envolver diversos comportamentos, entre eles as carícias, masturbação, cópula, coito anal, oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos. Podem ainda abranger outros comportamentos que, pelas suas características, possam importunar a vítima (p. ex., exposição a pornografia, utilização da vítima para produção de material pornográfico, chamadas obscenas, exibicionismo, favorecer, facilitar ou fomentar a prática da prostituição). A gratificação sexual do agressor está associada, acima de tudo, à necessidade em exercer poder e controlo sobre a vítima ou, ainda, uma forma de expressar zanga/raiva. Dito de outra forma, numa grande percentagem de situações a motivação não é de natureza sexual.

Então se o abuso sexual é um crime contra a autodeterminação sexual da criança, o que é a pedofilia? A perturbação pedofílica é um desvio sexual que se caracteriza por fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes, envolvendo actividade sexual com crianças pré-púberes. O sujeito tem de ter pelo menos 16 anos e ser pelo menos cinco anos mais velho do que a criança, na medida em que se pretende diferenciar esta perturbação dos comportamentos sexuais normativos entre jovens. O pedófilo pode ser exclusivo, o que significa que apenas sente atracção sexual por crianças, ou não exclusivo, o que leva a que sinta também atracção sexual por adultos. Aqui a motivação é predominantemente sexual.

Deste modo, muitos agressores sexuais não preenchem os critérios de diagnóstico de perturbação pedofílica, da mesma forma que nem todos os pedófilos cometem crimes de natureza sexual.

As crianças podem ser abusadas por adultos de ambos os sexos ou por outras crianças que, pela sua idade ou estádio de desenvolvimento, assumam uma posição de responsabilidade, confiança ou poder sobre elas, e a violência pode ocorrer em qualquer contexto (intra ou extrafamiliar). Pode ainda ser praticada por uma pessoa com qualquer orientação sexual.

Ouvimos falar de pedofilia e abuso sexual como sendo sinónimos. Mas não são. O abuso sexual é um comportamento que se encontra tipificado no Código Penal Português, ou seja, é um crime. A perturbação pedofílica é um desvio sexual. Deste modo, muitos agressores sexuais não preenchem os critérios de diagnóstico de perturbação pedofílica, da mesma forma que nem todos os pedófilos cometem crimes de natureza sexual.

Segundo dados do Relatório Anual de Segurança Interna [RASI], em 2017 96.1% dos agressores são do sexo masculino. Em relação às vítimas, estas são predominantemente do sexo feminino, correspondendo a 80.5%. A maior parte destas vítimas tem uma idade compreendida entre os oito e os 13 anos. Desconhece-se quantos destes abusadores são pedófilos, na medida em que nem sempre é solicitada a sua avaliação psicológica e psiquiátrica.

As estratégias de abordagem das crianças são muito diversas e podem envolver ameaças verbais ou físicas, bem como o recurso à violência física. Noutras situações, englobam estratégias de engano, confusão, surpresa ou pseudo-educação sobre a sexualidade, geralmente associada à presença de distorções cognitivas no agressor (p. ex., “a criança tem interesse pelo sexo, por isso quer saber mais”).

Como grande parte dos abusos sexuais ocorre no seio familiar ou com pessoas conhecidas da criança, os agressores recorrem frequentemente a um processo de “grooming”, que significa “preparar para” ou “aliciar”. Neste processo, o agressor procurar criar uma ligação emocional com a criança para ganhar a sua confiança a prepará-la para o abuso. Fá-lo através da satisfação das necessidades da criança, que já conhece ou procura conhecer. Este processo pode ocorrer numa situação interpessoal real ou num cenário “online”.

Nos cenários “offline”, o agressor procura com frequência não só aliciar as crianças, como também os seus cuidadores. Ocorre uma sexualização progressiva da relação, ou seja, tem início num contacto afectivo regular e progride para uma relação mais sexualizada e intrusiva. É neste contexto que é conseguida uma cooperação, pois o agressor recorre a comportamentos de duplo significado(p. ex., fazer cócegas, tocar nos genitais da criança alegando ter sido algo acidental), que servem de dessensibilização ao toque, impedido a criança de perceber as suas verdadeiras intenções. Com isso,o agressor consegue ultrapassar as inibições que a criança possa ter. Quando a criança se apercebe da intencionalidade destes comportamentos, surgem com frequência sentimentos de culpa. Estes comportamentos abusivos são, por vezes, realizados na presença de terceiros, incluindo familiares próximos da criança, que não os reconhecem ou valorizam, atribuindo implicitamente alguma legitimidade à situação (p. ex., “está a brincar contigo” ou “foi sem querer, ele é nosso amigo e adora-te”).

Neste processo, o aliciamento acontece sobretudo através de recompensas que são dadas à criança (p. ex., doces, brinquedos, quebra de regras e limites impostos). O facto da criança não se opor ao abuso, o que é erradamente percepcionado como uma forma de consentimento, pode decorrer da necessidade em agradar e manter a lealdade perante o agressor, com frequência alguém por quem nutre sentimentos positivos e com quem mantém uma relação de confiança.

Como grande parte dos abusos sexuais ocorre no seio familiar ou com pessoas conhecidas da criança, os agressores recorrem frequentemente a um processo de “grooming”, que significa “preparar para” ou “aliciar”. Este processo pode ocorrer numa situação interpessoal real ou num cenário “online”.

Nas situações “online”, os agressores recorrem a sites sociais, a Apps de mensagens ou de encontros de adolescentes, a plataformas de jogos “online” ou a outros meios em que seja possível estabelecer contacto com a criança ou adolescente. Depois de estabelecido o contacto inicial, procuram manter uma relação de proximidade e avaliar a existência de possíveis situações de risco de serem detectados (p. ex., fazem questões sobre a presença dos cuidadores ou sobre a supervisão da criança quando está “online”). De seguida, procuram isolar a criança dos amigos e família, de forma a manterem a exclusividade da relação. Ao contrário do “grooming offline”, o agressor não procura ganhar a confiança dos pais, cuidadores ou outros significativos da vítima, uma vez que o ambiente virtual potencia essa possibilidade. Pelo contrário, procura que a criança não partilhe a existência desta ligação com os outros.Nessa altura, começam a ser introduzidos temas de carácter sexual ou a ser mostradas imagens de pornografia infantil, podendo persuadir a criança a usar a “webcam” para troca de imagens privadas. Todas as informações recolhidas serão depois usadas para transmitir a ideia de controlo e poder, fazendo com que as crianças acreditem que não têm outra escolha se não submeterem-se à vontade dos agressores. Estes podem ainda introduzir a questão do segredo (“é o nosso segredo”), fazendo com que a criança acredite que contribuiu de forma activa para o processo, potenciando sentimentos de vergonha e culpa e, por isso,se mantenha em silêncio.

A situação evolui e os agressores tentam convencer a criança a enviar imagens sexualmente explícitas delas próprias, a participar em actividades através do recurso à “webcam” (p. ex., masturbação) ou a ter conversas de carácter sexual através de mensagens (“sexting”). Por último, procuram promover um encontro “offline” com a criança, para que possam abusar sexualmente dela. Esta situação pode multiplicar-se, com agressores a manterem processos de “grooming”, por vezes em simultâneo, com numerosas vítimas.

E quem são os agressores sexuais? Esta é uma questão difícil, na medida em que não existe um perfil típico e as suas características tendem a ser heterogéneas. Ainda assim, entre as características mais frequentemente identificadas destacam-se as distorções cognitivas e o défice empático, que facilitam e legitimam o acto agressivo, bem como o défice de aptidões sociais e um desenvolvimento psicossexual muitas vezes inadequado e imaturo, onde as primeiras experiências sexuais foram pouco gratificantes e num contexto de baixa afectividade.

Entre as características mais frequentemente identificadas (dos agressores) destacam-se as distorções cognitivas e o défice empático, que facilitam e legitimam o acto agressivo, bem como o défice de aptidões sociais e um desenvolvimento psicossexual muitas vezes inadequado e imaturo, onde as primeiras experiências sexuais foram pouco gratificantes e num contexto de baixa afectividade.

Em relação às vítimas, embora não seja possível traçar um perfil, identificam-se diversos factores de risco, a nível individual, familiar e social. Do ponto de vista individual, destaca-se a baixa auto-estima, sentimentos de rejeição ou inferioridade, inibição e sintomas depressivos. A nível familiar, relações distantes com as figuras cuidadoras, baixa supervisão parental e disfuncionalidade nos padrões de comunicação e resolução dos conflitos. A nível social, uma rede de suporte social frágil, que não favoreça sentimentos de integração e pertença.

O abuso sexual tende a ser mantido em segredo, por diversos motivos. Não apenas as ameaças ou estratégias de sedução e manipulação por parte do agressor, os conflitos de lealdade, a culpa, o medo ou a vergonha que a vítima sente, mas também os mecanismos defensivos por parte desta, que procura ajustar-se a uma realidade dolorosa e dissonante. Estes mecanismos de defesa implicam, muito frequentemente, evitar pensar e, naturalmente, evitar abordar o assunto. Em algumas crianças observam-se mesmo fenómenos de despersonalização e desrealização, que também inibem uma potencial revelação e reforçam o silêncio.

Ao mesmo tempo, a sexualidade é ainda um tema tabu em muitas sociedades, e a nossa não é excepção. Quantos pais e cuidadores abordam este tema de forma clara e objectiva com os seus filhos? E tal como não se fala de sexualidade, menos se fala de abuso sexual. Perante esta realidade, constatamos que, de uma forma geral, as variáveis que poderiam potenciar uma revelação não estão presentes na vida das crianças, ou seja, o tema não é abordado e, por conseguinte, as crianças não sentem que haja um contexto adequado e uma oportunidade para que possam tentar revelar.

A maioria das crianças não faz uma revelação explícita, mas antes tentativas em revelar. Se se sentem acolhidas e acreditadas, perante um adulto em quem confiam e que não emite juízos de valor, a probabilidade de concretizarem a revelação será maior. O que significa que temos também de apostar na formação especifica dos adultos, no sentido de aprenderem a reagir face a uma revelação ou tentativa de revelação.

A maioria das crianças não faz uma revelação explícita, mas antes tentativas em revelar. Se se sentem acolhidas e acreditadas, perante um adulto em quem confiam e que não emite juízos de valor, a probabilidade de concretizarem a revelação será maior. O que significa que temos também de apostar na formação especifica dos adultos, no sentido de aprenderem a reagir face a uma revelação ou tentativa de revelação. Saber o que dizer e o que não dizer, como questionar a criança e responder às questões que esta coloque e, por fim, como e para onde encaminhar a situação.

Objectivos de intervenção

Existem quatro objectivos gerais de intervenção:

1.    Proteger

2.    Diminuir sequelas

3.    Promover competências

4.    Prevenir recidivas

Atingir estes objectivos implica, em primeiro lugar, acreditar e sinalizar a suspeita às entidades competentes, sendo que a protecção da vítima apenas poderá ser assegurada com a garantia do afastamento físico em relação ao agressor.

Diminuir sequelas envolve um processo de intervenção junto da criança ou adolescente, mas também junto da sua família, tendo em conta que o impacto negativo do abuso sexual não se restringe à vítima directa. Os seus pais, irmãos ou outros familiares, tantas vezes esquecidos e excluídos dos processos de intervenção, manifestam muitas vezes uma clara necessidade de ajuda.

Promover competências significa que a criança deve ser ajudada a identificar potenciais situações de risco e a saber lidar com as mesmas. Reconhecer os seus direitos, nomeadamente sobre o seu corpo, aprender a distinguir bons toques e maus toques, bons segredos (que podem ser guardados) e maus segredos (que devem ser revelados). Ainda, como dizer “não”, desenvolver estratégias de protecção e a quem pedir ajuda.

Promover competências significa que a criança deve ser ajudada a identificar potenciais situações de risco e a saber lidar com as mesmas. Reconhecer os seus direitos, nomeadamente sobre o seu corpo, aprender a distinguir bons toques e maus toques, bons segredos (que podem ser guardados) e maus segredos (que devem ser revelados). Ainda, como dizer “não”, desenvolver estratégias de protecção e a quem pedir ajuda. Com crianças mais velhas e adolescentes, também as estratégias de aliciamento “online” devem ser abordadas, aprendendo que o perigo pode estar à distância de um clique. No fundo, promover competências que ajudem a prevenir o risco de futuras revitimizações.

Por fim, prevenir as recidivas (reincidência), tendo em conta que um processo crime e a consequente responsabilização do agressor não são suficientes. A pena de morte é inconstitucional e a pena de prisão, quando se torna efectiva, tem um término. Significa isto que uma abordagem meramente punitiva se revela necessariamente ineficaz, pois pode assegurar a protecção de uma vitima durante algum tempo, mas não é garantia de uma protecção a longo prazo de tantas outras vítimas. Neste contexto, importa pensar em programas de intervenção terapêutica, quer na prisão, quer em meio livre. Desejavelmente, programas também para agressores sexuais adolescentes, que revelam, à partida, um melhor prognóstico de mudança.

Uma abordagem meramente punitiva revela-se necessariamente ineficaz, pois pode assegurar a protecção de uma vitima durante algum tempo, mas não é garantia de uma protecção a longo prazo de tantas outras vítimas. Neste contexto, importa pensar em programas de intervenção terapêutica, quer na prisão, quer em meio livre.

A Igreja Católica e toda a sua comunidade enfrentam, actualmente, um desafio muito importante. Ao assumir, e bem, tolerância zero face aos abusos sexuais cometidos nesse contexto, assume também um compromisso com todos aqueles que foram ou poderão vir a ser vítimas de abuso sexual. O que implica, não apenas desenvolver mecanismos de prevenção, identificação e sinalização das suspeitas de abuso sexual, como também medidas de reparação do dano para as vítimas e seus familiares.

Que a Igreja possa ser o motor da mudança e dar o exemplo a toda a sociedade, católica e não católica.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.