Faz hoje um mês que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI) apresentou o relatório final. Foi um dia marcante e chocante, pela dureza dos testemunhos e pela consciência da sua dimensão, materializada em números. Números de testemunhos e de vítimas presumidas. E, mais tarde, números de suspeitos vivos e no ativo.
Se os números de vítimas contribuíram para trazer consciência sobre a existência e a dimensão de um sério e grave problema, já os números de suspeitos (sobretudo os que ainda possam estar vivos e no ativo) têm contribuído para gerar um ruído que urge dissipar.
É preciso clarificar. E recentrar nas vítimas. Pois “quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele” (Coríntios 12:26 )
O estudo da CI não foi feito para, através dele, se investigarem criminalmente abusos sexuais nem atos que pudessem configurar encobrimento por parte da Igreja. Para que as vítimas e as organizações dessem voz ao silêncio, a CI definiu uma metodologia de recolha de dados que passou por duas fontes de informação. A primeira foram os testemunhos de vítimas, recolhidos essencialmente através de um formulário. Foram dadas garantias de anonimato e nunca se falou em “denúncia”, mas em “testemunho”. Os dados recolhidos foram adequados para a realização do estudo pretendido, mas sem campos específicos para identificar os atores (vítimas, suspeitos, instituições), não permitiram apoiar as vítimas nem iniciar uma investigação. Os nomes dos suspeitos que resultaram dos testemunhos das vítimas são apenas aqueles em que estas decidiram escrever o seu nome ou deram alguma informação que permitisse apurar a sua identidade.
O estudo da Comissão Independente não foi feito para, através dele, se investigarem criminalmente abusos sexuais nem atos que pudessem configurar encobrimento por parte da Igreja.
Sublinho que as vítimas não tinham como saber o destino do seu testemunho, ou seja, se este iria ser usado para um estudo (caso não referissem o nome do suspeito) ou uma investigação (caso o referissem). É um facto que a estratégia do anonimato permitiu recolher mais testemunhos – muitas pessoas provavelmente não falariam se tivessem de se identificar ou identificar o suspeito – , mas teve como consequência esta dificuldade que se torna agora difícil de explicar.
A segunda fonte de informação resultou dos dados fornecidos pelas dioceses e congregações. Tendo a CI criado, por sua vez, um Grupo de Investigação Histórica (GIH), foi enviado às dioceses e congregações uma grelha onde cada entidade pôde preencher os “processos” ou “casos” conhecidos internamente, relativamente aos quais haveria alguma documentação – uma carta, ata ou processo – que identificasse a existência de um suspeito. Essa grelha solicitava o nome e outros dados dos suspeitos, assim como de vítimas.
As notícias e declarações públicas da última semana, tanto da parte das dioceses como da CI, centraram-se neste tema das listas e sobre o que a Igreja tem ou não de fazer para que, no fundo, os testemunhos (para estudo) se transformem em denúncias (para investigação).
As notícias e declarações públicas da última semana, tanto da parte das dioceses como da CI, centraram-se neste tema das listas e sobre o que a Igreja tem ou não de fazer para que, no fundo, os testemunhos (para estudo) se transformem em denúncias (para investigação).
Em conclusão, se os testemunhos das vítimas foram utilizados para a construção do relatório final, se foram elaborados estudos de casos a partir de informação resultante dos testemunhos e de documentos aos quais o GIH teve acesso, estes, se ainda não foram, devem ser igualmente disponibilizados – retirando-se os dados que permitam identificar as vítimas (que quiseram o seu anonimato) – às Dioceses e Congregações. Com eles, poderemos conhecer a nossa realidade e, com base nela, agir para que os abusos não voltem a acontecer. Este dever recai sobre a Comissão Independente (e o Grupo de Investigação Histórica) que deve facultar estes dados, e sobre a CEP e a Confederação dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP) que, se ainda não o fizeram, os devem solicitar.
Mas continuar a aprofundar este diálogo à volta dos números, categorizando os bispos diocesanos entre os que suspenderam ou não suspenderam os padres vivos, poderá pôr em causa todo um processo que ainda agora começou e que tem outro foco: as vítimas.
Há cerca de 500 pessoas – que podem ser quase 5000, como vimos – que precisam de nós, Igreja. É preciso ser claro com elas: não as vamos conseguir ajudar nem iniciar um procedimento, civil ou canónico, sem o seu envolvimento! Poderia ter sido diferente? Sim. Mas não foi. Mas que isso não nos afaste do objetivo principal de todo este trabalho: escutar e cuidar destas pessoas, feridas e muitas delas abandonadas pela Igreja.
As 500 vítimas que testemunharam, as 5000 estimadas e outras que possamos não conhecer – precisam do nosso acolhimento, acompanhamento e reparação – sem medos e sem reservas.
As 500 vítimas que testemunharam, as 5000 estimadas e outras que possamos não conhecer – precisam do nosso acolhimento, acompanhamento e reparação – sem medos e sem reservas.
Não esqueçamos que a exposição dos testemunhos fez com que as vítimas tenham visto as suas histórias expostas, com detalhes que as podem até identificar perante familiares, amigos e perante o próprio suspeito. E isso fez reavivar os abusos sofridos por parte de outras vítimas que os sofreram dentro e fora da Igreja Católica Portuguesa e que nunca deram voz ao seu silêncio.
Sabemos que a reparação total não vai ser possível, mas podemos evitar ser responsáveis pela revitimização das vítimas. A reparação não é geral e abstrata. É concreta e dirige-se a cada vítima, pois centra-se no sofrimento de cada uma, incomparável com qualquer outra.
Vamos preparar-nos – Comissões Diocesanas, Serviço de Escuta, serviços de apoio às vítimas, escutadores (padres, psicólogos, psiquiatras, educadores, pais e mães) – para receber bem quem nos procura e revela uma história real de sofrimento que precisa de ser reparado, o mais e melhor possível. Uma a uma. O sucesso da escuta e do acolhimento não se mede pelo número de vítimas que nos procuram. Quanto melhor acolhermos, escutarmos, acompanharmos e repararmos a dor de cada uma, mais estaremos a semear. A semear esperança em cada pessoa e a gerar confiança em quem está à volta e sente que – agora – pode dar o passo que nunca antes deu, pois o passo que vai dar – com receio – é seguro. E assim, a Igreja, por dentro, por e com amor, vai recuperar a sua credibilidade.
As vítimas devem ser informadas (com o apoio da comunicação social) que podem recorrer às Comissões Diocesanas (ou serviços de escuta das congregações); às associações especializadas de apoio às vítimas se necessitarem de apoio; que podem ir diretamente falar aos bispos diocesanos, se desejarem formalizar direta e pessoalmente a denúncia. Que podem ir diretamente à Polícia Judiciária ou ao Ministério Público.
Todas as vítimas têm de ser bem escutadas e acolhidas. O seu anonimato tem de ser assegurado (e aceite), a sua vontade respeitada e a confidencialidade garantida, para que possam dormir descansadas e sem medo que as suas histórias sejam partilhadas nos jornais ou na televisão.
O processo tem de ser seguro, fiável. As vítimas têm direito a que lhes seja prestada informação sobre o seu processo – até ao fim, incluindo a decisão que seja tomada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé ou Tribunal Eclesiástico. É necessário que sejam definidos prazos para as etapas do processo e que, em cada uma delas, sejam prestadas contas das diligências feitas, conclusões e decisões tomadas.
Todas as vítimas precisam de sentir que a Igreja reconhece, através dos seus responsáveis, que não foi capaz de as proteger, de detetar as situações e de agir a tempo de as eliminar. Reconhecer o abuso é reconhecer o dano, o sofrimento e as necessidades geradas pelo abuso. Muitas precisam de apoio psicológico ou psiquiátrico (especializado) ou até de apoio financeiro.
Acredito que as crianças e jovens estão mais seguras hoje do que estavam há umas poucas dezenas de anos atrás. Mas ainda temos um longo – muito longo – caminho para percorrer para garantir que não há novos abusos, novas vítimas e novos fenómenos de ocultação. A responsabilidade da prevenção e da atuação é de todos e de cada um de nós. Hoje.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.