Como é que esta crise está a afetar a situação dos refugiados nas diversas partes do mundo?
Tal como noutras questões, a situação com os refugiados e as pessoas deslocadas à força varia de sítio para sítio. Depende nomeadamente da força da propagação do vírus. Neste momento, a situação é mais intensa na Europa e isso afetou naturalmente o trabalho do JRS [Serviço Jesuíta aos Refugiados] e de outras organizações quanto à sua capacidade de oferecer uma série de serviços. Muito do nosso trabalho desenvolve-se no âmbito de centros de detenção, implicando visitas que neste momento não são possíveis de fazer. Obviamente, também não são possíveis todos os programas que implicam a junção de pessoas. Na Europa, continuamos a gerir os nossos abrigos, em especial na Roménia, na Sérvia e na Macedónia. Em termos de aconselhamento e acompanhamento continuamos a fazer tudo o que é possível online. Os nossos serviços continuam disponíveis.
Nos EUA continuamos também a nossa atividade. Somos capelães nos centros de detenção para migrantes que passam pelo processo de deportação e continuamos a fazer esse trabalho. E estamos agradecidos por todos os que arriscam a saúde continuando a acompanhar essas pessoas deslocadas à força.
Podem, portanto, continuar a exercer o vosso trabalho como capelães nos centros de detenção?
Temos que continuar a fazê-lo pelo contrato que temos.
Em África, os governos encerraram programas de apoio e acesso a centros de detenção ainda antes que houvesse um grande número de casos. Nesse sentido, África foi mais preventiva e proativa do que muitos países do Norte.
E como estão as coisas noutras partes do mundo?
Noutras partes do mundo, a situação é mais complicada e menos clara. Em África, os governos encerraram programas de apoio e acesso a centros de detenção ainda antes que houvesse um grande número de casos. Nesse sentido, África foi mais preventiva e proativa do que muitos países do Norte. Todos os programas que impliquem o encontro de grupos estão suspensos. Mas continuamos a fazer muito trabalho que implique contactos um a um. No Campo de Kakuma [no Quénia] temos um programa de Educação Especial para crianças com necessidades especais. Algumas dessas necessidades têm que continuar a ser atendidas em casa dessas crianças. E por isso alguns dos nossos colaboradores fazem visitas a essas casas. Noutros casos, a escolas estão fechadas mas os programas de apoio alimentar associados a essas escolas continuam a funcionar e a garantir alimentação a milhares de crianças. Este tipo de situação estende-se por toda a rede de ação do JRS.
Mas o que mais o preocupa neste momento?
Tanto quanto podemos prever, esta situação vai prolongar-se pelos próximos meses. E nesse sentido estou especialmente preocupado com a situação em alguns lugares como a Síria, com uma guerra que dura há dez anos e um sistema de saúde que não funciona bem. O que é que isso vai significar para os seis milhões de deslocados internos?
No Myanmar temos muitas deslocações à força e muitos deslocados internos. O governo local diz que não há nenhum problema, mas quem pode garanti-lo? Estes são locais onde os governos estarão pressionados pela situação e em que não terão recursos para lhe responder. O que tenho dito às pessoas é que os refugiados e os deslocados à força serão dos mais atingidos por este vírus. Não têm muito por onde começar e a sua vida será rapidamente atingida. Os sistemas já têm dificuldade de responder às suas necessidades quando não estamos em crise, quanto mais agora, que estamos perante uma crise.
Como é que esta pandemia está a afetar os campos de refugiados? Como têm agido as autoridades de saúde locais e internacionais?
É importante saber que a maioria de refugiados e pessoas deslocadas vivem em zonas urbanas. Provavelmente cerca de 60%. E por isso não é uma questão que se cinja aos campos de refugiados. É também um problema urbano. Os campos têm sistemas sanitários. Como e quando sofrerão impacto depende de caso para caso. Os sistemas vão ser pressionados e levados ao limite. E aqueles que já não são suficientemente fortes em situações normais podem colapsar. Por outro lado, devido à situação económica do mundo prevemos uma diminuição a nível de donativos. E isto pode ter impacto nas respostas que somos capazes de dar. Vai ter impacto na nossa organização e em organizações como a nossa, de um modo mais especial e dramático naquelas que se dedicam a cuidados de saúde.
Prevejo um grande impacto do vírus junto dos refugiados que vivem em zonas urbanas.
E se pensamos em termos de zonas urbanas, há que ter em conta que a maioria dos refugiados vivem em zonas com grande densidade populacional, que não têm bons sistemas sanitários que garantam segurança às pessoas. Nessas áreas as pessoas vivem muito, muito perto umas das outras e aí as práticas de distanciamento social são impossíveis. São pessoas que vivem nas periferias, não podem dar-se ao luxo de deixar de trabalhar. Qualquer que seja o seu trabalho serão forçadas a mantê-lo por questões de sobrevivência, expondo-se ao contágio. Prevejo um grande impacto do vírus junto dos refugiados que vivem em zonas urbanas. E isto afetará ainda mais as mulheres. As mulheres estão usualmente mais expostas e são mais vulneráveis por causa do tipo de trabalho que fazem, dos papéis que assumem nas famílias. Tudo o que nós, e outras organizações, podermos fazer para defender a saúde das mulheres e para lhes dar voz na resposta a esta crise será determinante.
Como é que a estrutura do JRS tem sido afectada, a nível de voluntários e colaboradores? Que dificuldades sentem para desenvolver a vossa ação?
Deixe-me começar por agradecer aos nossos colaboradores e voluntários que continuam a trabalhar. A maioria não está em nenhum trabalho que implique contactos individuais ou de grupos. Uma das máximas do trabalho humanitário é “não faças mal”. Neste caso, pode-se estar infectado sem se saber e por isso espalhar o vírus inconscientemente. Seguimos as orientações das autoridades no que respeita ao distanciamento social. Nos sítios em que é possível o nosso staff e voluntários continuam a trabalhar, mas em muitas situações o principio de “não fazer mal” implica que não continuemos a fazer o que fazíamos. Mas as pessoas têm sido muito generosas em termos de teletrabalho, telefonar, utilizar aplicações como o whatsapp ou outros meios de modo a manter os contactos. E isto não apenas entre os membros do staff e com os voluntários, mas também no acompanhamento do trabalho de campo.
Há algum caso que se possa destacar?
Gostava de chamar a atenção para o trabalho que se está a fazer no Líbano. A equipa do JRS tem usado o whatsapp como modo de manter o contacto com os alunos, dando-lhes assistência, dando aulas e mostrando-lhes que nos continuamos a preocupar com eles.
Se isto tivesse acontecido há cinco anos, nós e outras organizações como nós teríamos muito menos contacto com aqueles que servimos. A maioria das pessoas têm telefone e é possível entrar em contacto com elas. E isso tem sido fundamental. A tecnologia progrediu ao ponto de nos permitir fazer mais. Vamos ser mudados por esta pandemia da Covid-19 e a tecnologia vai ter um papel muito importante nessa mudança.
Gostaria que os líderes mudais ouvissem o apelo (do secretário-geral da ONU e do Papa). Irão ouvir o apelo se a população os pressionar, se os líderes mundiais mais influentes os pressionarem.
O Secretário-geral das Nações Unidas pediu um cessar-fogo e o Papa juntou-se a esse pedido. Parece-lhe que o apelo vai ser escutado?
(hesita na resposta e depois diz enfaticamente) Não sei… Gostaria que os líderes mudais ouvissem o apelo. Irão ouvir o apelo se a população os pressionar, se os líderes mundiais mais influentes os pressionarem. Se o farão… não sei. Mas o Secretário-Geral das Nações Unidas tem razão quando diz que as pessoas mais vulneráveis ao vírus são as que já estão debaixo de fogo. E para nós isso significa deslocados internos, refugiados, famílias lideradas por mulheres que são apanhadas em situações que lhes escapam totalmente do controlo. É a mensagem correta. Seguramente que o Papa Francisco e outros estão a fazer tudo o que podem para pressionar… e espero que resulte. E pode ser que resulte. Não sabemos. Enquanto o vírus faz o seu caminho pode ser que, por razões nobres ou outras, os conflitos cessem. Vamos esperar que sim.
Como vê a situação europeia em que os líderes têm tido dificuldades em encontrar uma resposta comum para a crise, sendo que algumas decisões podem afectar os mais vulneráveis? Como sente que as decisões políticas estão a afetar os refugiados e mais vulneráveis?
Quero ser cauteloso a comentar decisões políticas, especialmente na Europa. Não sou europeu e, por isso, nem tenho direito a dizer muita coisa. Mas antes de tudo, há que dizer que isto é uma crise de saúde pública. É um vírus desconhecido que afeta especialmente os mais frágeis mas também pessoas saudáveis. É uma entidade desconhecida que provavelmente vai estar connosco muito tempo. O facto de esta ser uma crise de saúde pública terá sempre que ser o primeiro factor a ter em conta: o que é preciso fazer para proteger as pessoas.
Agora, há uma dimensão política e uma dimensão humanitária nesta crise. O que é que os governos e as pessoas podem razoavelmente fazer para criar formas de apoio durante a crise? É uma questão muito importante. Em Itália estamos em quarentena há quatro semanas e com contactos sociais muito, muito restritos. E isto resulta de não se ter tomado atempadamente medidas como estas no norte de Itália, onde a situação continua a ser devastadora. É difícil equilibrar a proteção das comunidades com as necessidades individuais.
Mas o que podem fazer os governos?
O que se fizer tem que partir do pressuposto de que esta é uma crise de saúde pública. Assumido este facto, qual é o papel de um governo? Identifico três aspetos. Começando pelo mais prático. As decisões têm que basear-se em boa informação e não em histeria. Há muita histeria por aí…e a histeria espalha ideias de culpabilização. Isto não é uma questão moral, não é um mal moral. É um vírus. As decisões têm que se basear em dados. Nos EUA viu-se uma mudança de atitude em Trump. Nos primeiros dois meses não estava a dar importância aos dados, mas agora está.
Uma delas é rezar. Somos chamados a ser pessoas de oração neste momento.
Em segundo lugar, os governos devem, de um modo articulado, estar atentos aos que vão ser mais afectados. A Praça de São Pedro aqui em Roma está completamente vazia. Há milhares de pessoas em Roma dedicadas ao turismo e agora não têm emprego. Se multiplicarmos isto por diferentes cenários e partes do mundo… percebemos que a próxima prioridade dos governos terá que ser apoiar os que estão em maior necessidade. Como é que os diferentes governos o vão fazer não me compete dizer, mas o pressuposto tem que ser este: a intervenção dos governos para apoiar os que vão sofrer mais. E a intervenção das igrejas deve ir no mesmo sentido.
Finalmente, e talvez o mais importante, é saber se os governos querem assumir uma forma de liderança baseada no isolamento ou na solidariedade. É tempo de cerrar fileiras, de nos fecharmos, de querer mostrar quem manda ou assumimos que o melhor modo de atravessar esta situação é trabalhar em conjunto? Este é o maior desafio de todos. Há uma reação instintiva de proteção, pensando que se nos fecharmos vamos conseguir resolver o problema. A curto prazo, talvez tenha alguns resultados. Mas o vírus não sabe o que são fronteiras. Podemos colocar todos os muros e barreiras que quisermos. O vírus irá onde tem que ir. Temos que trabalhar conjuntamente, num espírito de solidariedade. Se nos deixamos fechar no medo e na ansiedade vamos ser incapazes de tomar boas decisões. Aprendendo com a tradição espiritual inaciana, em termos de discernimento, sabemos que ficaremos bloqueados se nos deixamos submergir pelo medo e ansiedade. O Papa Francisco acertou na mouche na reflexão que fez na Praça de São Pedro, quando de referiu à experiência dos discípulos na barca agitada pelas ondas. Vou fazer uma citação que tenho mesmo aqui à minha frente: “Estamos todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos.”
Podemos protestar com a tempestade, mas estamos nisto juntos. Até podemos dizer ‘ eu estou em primeira classe, tenho o meu camarote’. Amigos: é o mesmo barco. Não podemos escapar disto…
Ninguém se pode colocar de fora…
Estamos no barco. Podemos fazer o que quisermos mas estamos no barco. Podemos protestar com a tempestade, mas estamos nisto juntos. Até podemos dizer ‘ eu estou em primeira classe, tenho o meu camarote’. Amigos: é o mesmo barco. Não podemos escapar disto… Por isto a questão é como nos apoiamos uns aos outros, como “nos abraçamos”, mantendo as distâncias sociais. Este é um momento em que um demagogo pode tomar o poder oferecendo soluções fáceis. Mas isso não é o Evangelho e não é seguramente o que o JRS tenta fazer.
Há muitas pessoas que estão a trabalhar diretamente na solução desta crise. Mas a maioria está em casa e muitos perguntam-se: O que posso fazer para proteger os mais vulneráveis? Não é possível sairmos à rua em ações de voluntariado… Temos que ficar em casa.
[hesita por uns segundos] Deixe-me sugerir três coisas. Uma delas é rezar. Somos chamados a ser pessoas de oração neste momento. E podemos fazê-lo de diversas formas. Rezar pelos que estão doentes, pelos que estão arriscar a sua saúde para poderem servir (pessoal de saúde, quem trabalha em lojas, na limpeza urbana…). Importa assentar, tomar consciência do que se passa dentro de nós. Há muita dispersão, muitas distrações, muitos sentimentos. Mas Deus está nesses sentimentos.
É importante rezar pelos líderes mundiais, para que tomem as decisões certas. E pedir luz a Deus para que cada um de nós possa perceber o que Deus lhe pede neste momento. Não é claro que sairmos todos à rua seja o que nos é pedido… O que é que sou chamado a fazer face à minha família, aos meus amigos, aos meus vizinhos? Falamos muito disto, mas nesta altura faz sentido que a primeira coisa a fazer seja rezar.
Perguntar-se: o que posso fazer? Como disse Santo Inácio “o amor está mais nas obras do que nas palavras”. E a primeira coisa a fazer é ser gentil com a minha família. Estamos todos presos neste espaço e é preciso ser intencionalmente gentil.
A segunda coisa importante é estar informado. E isto não é estar constantemente a ver notícias e a querer ler todas as manchetes e destaques. Isso gera medo. E há muitas notícias falsas, muito lixo. É importante manter o contacto com amigos e com informação fidedigna, não com notícias falsas. Um bom princípio pode ser focar a atenção em assuntos que são mais significativos para nós. Se está interessado na questão dos refugiados, consulte o site do JRS e as nossas redes socais, a nível internacional ou o site do JRS Portugal. Nós estamos a dar informação. É importante ficar ligado, manter o contacto, mas sem que isto se torne uma obsessão. Podemos ficar todos presos na constante repetição das mesmas notícias e isso leva-nos ao medo e à ansiedade. Há coisas de que ter medo. Mas se ficamos presos ficaremos ansiosos e paralisados.
E a terceira coisa é perguntar-se: o que posso fazer? Como disse Santo Inácio “o amor está mais nas obras do que nas palavras”. E a primeira coisa a fazer é ser gentil com a minha família. Estamos todos presos neste espaço e é preciso ser intencionalmente gentil. Talvez exista algum vizinho numa situação de fragilidade, que eu possa ajudar. Se há recursos financeiros que possam ser partilhados. O JRS e outras organizações podem dar bom uso a esses recursos. É importante continuar a fazer a pergunta: o que posso fazer? Talvez não seja muito, mas é importante. Não sabemos como é que esta situação vai transformar a realidade social. Sabemos que o vírus continuará a transformá-la, mas o que sabemos no começo de abril, pode ser diferente em maio, junho ou julho. Manter a pergunta viva, o sentido da solidariedade, gestos que nos lembrem que estamos todos no mesmo barco é muito importante.
E é possível pressionar os Governos a assumirem essa atitude de solidariedade estando em casa?
Claramente que sim! A internet pode ser uma bênção ou uma maldição. Mas é possível vivê-la como bênção, pode ajudar-nos a reunir pessoas, a motivá-las para se implicarem em diferentes grupos. O importante é manter o discernimento. Não se pode fazer tudo. Mas haverá um lugar, alguma situação em que cada um pode fazer ouvir a sua voz. A resposta à pergunta “o que posso fazer” será diferente em Itália, em Portugal ou no Kenya, depende de local para local. Mas é um tempo para fazer ouvir a nossa voz, para influenciar decisões de forma a que os que vão sofrer mais as consequências de tudo isto não sejam abandonados.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.