Ao longo dos últimos anos, numa tendência que se agudizou com a crise aberta pela pandemia de COVID-19, tem crescido em força a ideia de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), de tal modo que, recentemente, até o próprio Papa Francisco veio defender a sua implementação. De que se trata? De uma forma simples, da proposta de “entregar uma quantia modesta de dinheiro paga incondicionalmente a todos os indivíduos numa base regular (por exemplo, mensalmente)”[1]. O RBI é também por vezes chamado Rendimento Básico Universal (RBU), tendo como referência a intencionalidade de ser dirigido a todos os indivíduos de uma comunidade.[2]
De onde surge esta ideia? Na verdade, ela já existe há bastante tempo e tem vindo a ganhar força ao longo de várias décadas, transformando-se progressivamente de uma utopia numa ideia cada vez mais em linha com o mainstream político, com simpatias e oposições em largo espectro, da esquerda à direita; a este movimento ascendente não é alheio o clima de tempestade perfeita que hoje atravessamos, causado pela súbita recessão associada à pandemia de COVID-19, que nos atinge ainda em fase de convalescença após a Grande Recessão de 2008-2010.
Se estamos convencidos que uma boa parte da crise de hoje se deve não a causas estruturais da nossa economia global mas ao súbito abrandamento condicionado pelas medidas de saúde pública, não é menos verdade que as consequências sociais desta crise são em grande medida o resultado de décadas de problemas sociais não resolvidos.
Estamos a braços com níveis nunca antes imaginados de desigualdade na distribuição da riqueza, devido à enorme desproporção no crescimento do rendimento do capital por oposição ao rendimento do trabalho, desproporção essa alavancada não só no progresso tecnológico mas também no crescimento dos mercados financeiros e na procura do lucro como um fim em si mesmo. O mesmo progresso tecnológico, em vez de sustentar uma laboração menos intensiva, veio em muitos casos motivar um sentimento crónico de insegurança e uma real precariedade no mundo do trabalho, face ao risco de extinção ou deslocalização em massa de postos de trabalho. Ao mesmo tempo, o recurso ao crédito fácil (embora frequentemente usurário) levou a um extraordinário endividamento de famílias, empresas e mesmo Estados, deixando-os de mãos atadas em momentos de maior dificuldade.
O mesmo progresso tecnológico, em vez de sustentar uma laboração menos intensiva, veio em muitos casos motivar um sentimento crónico de insegurança e uma real precariedade no mundo do trabalho, face ao risco de extinção ou deslocalização em massa de postos de trabalho.
Todos estes perigos, no entanto, podem não ser os de maior importância, quando comparados com os dois grandes desafios que se levantam no nosso horizonte colectivo:
– por um lado, a cada vez mais aguda consciência dos limites do nosso planeta Terra, da exiguidade dos recursos e da capacidade da Criação se regenerar; conforme sublinha o Papa Francisco, “a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável”[3] – com efeito, somos todos co-responsáveis pelo nosso futuro e só uma modificação radical de estilo de vida permitirá sustentar o futuro da humanidade, dando continuidade ao sonho de Deus para nós;
– por outro lado, a ameaça crescente (e sempre renovável) do fascismo e de todo o género de populismos e autoritarismos, que levantam barreiras entre homens e mulheres chamados a serem “irmãos” (porque filhos de um mesmo Pai), mas que se vêem ostracizados pelo dedo apontador que os qualifica como “o outro” (o estrangeiro, o emigrante, o cigano, o trabalhador indiferenciado, o rico, o sem-abrigo…) em vez daquele que devemos tomar como “próximo”, nas próprias palavras de Jesus.[4]
O RBI traz consigo a noção de segurança básica, a capacidade de cada um (e cada família, cada comunidade) poder enfrentar os desafios a partir de uma posição de mínima estabilidade
Tudo isto assenta numa falácia: no mito do crescimento perpétuo e inexorável, que, apesar dos nossos recursos finitos, aponta como única solução para elevar os padrões de vida dos mais desfavorecidos aumentar o total da riqueza criada para assim aumentar o rendimento disponível, ainda que tal se faça à custa de uma crescente desproporcionalidade de rendimentos entre ricos e pobres. Ao invés, os defensores do RBI (e na verdade a Doutrina Social da Igreja desde a De Rerum Novarum em 1891) propõem uma inversão de paradigma, assente na redistribuição do rendimento disponível. O RBI parte mesmo de um conceito de herança comum, em que todos somos chamados a tomar parte, tal como no grande banquete do Reino, dos frutos do nosso progresso comum.
O RBI traz consigo a noção de segurança básica, a capacidade de cada um (e cada família, cada comunidade) poder enfrentar os desafios a partir de uma posição de mínima estabilidade; fomenta o tempo para cuidar, valorizando formas de trabalho (dar assistência a um familiar doente, acompanhar o crescimento das crianças, participar em projectos de voluntariado ou de intervenção social) que, por não serem remuneradas, não contam como produtivas; valoriza, enfim, uma noção de solidariedade que parte do nosso reconhecimento do próximo como “irmão” e “herdeiro”, uma linguagem que nos deveria ser bastante cara, enquanto crentes cristãos.
Sabemos todos que propostas desta natureza não são isentas de controvérsia e apresentam os seus lados mais frágeis. Um desses argumentos, defensivo mas compreensível e que deve manter atentos os simpatizantes desta via, é uma certo perigo da desvalorização do trabalho como valor ou a promoção de um certo facilitismo social. Há uma atenuante desta argumentação, contudo, que não devemos ignorar: sendo o RBI para todos, ricos e pobres, atenuam-se alguns melindres. Notar ainda que modalidades destas apresentam um grande potencial desburocratizante face às medidas socio-económicas de apoio aos desfavorecidos vigentes na nossa atualidade.
Enfim, um rendimento básico incondicional e universal poderia dispor-nos a todos para uma nova evangelização, assente não na necessidade mas na liberdade, a partir da experiência de fraternidade e amor a que Cristo nos convoca. Não será este um caminho oferecido como sinal dos tempos para ir concretizando a opção preferencial pelos pobres?
Para consulta mais ampla deste assunto, que aqui apenas apresentamos telegraficamente, recomendamos, entre outros, os sites e artigos de opinião abaixo:
Philippe van Parijs, Basic Income And Social Democracy
Roberto Merrill e Guy Standing, O coronavírus e o Rendimento Básico Incondicional
Jorge Pinto e Roberto Merrill, O dinheiro e a vida: uma defesa do rendimento básico incondicional
Luís Aguiar-Conraria, Rendimento Básico Incondicional? Vai mas é trabalhar!
Inês Domingos, Solidariedade na UE: Um Rendimento Básico Incondicional
Rui Tavares, Soltem os helicópteros: por um Rendimento Básico Incondicional de crise.
Bru Laín e Roberto Merrill, Perante a crise do coronavírus, não pode haver mais desculpas: a favor de um Rendimento Básico Incondicional de emergência.
Página do RBI, com muitos recursos em português:
[1] cf. Guy Standing, Basic Income: And How We Can Make It Happen, Pelican Books, London, UK, 2019: Naturalmente, esta definição, aparentemente simples, encerra uma série de dúvidas e questões: por básico, universal, regular e até mesmo incondicional, podemos entender, dependendo do contexto e proveniência de quem os usar, conceitos verdadeiramente diferentes. Mesmo entre os mais acérrimos defensores do RBI, não são questões encerradas e, portanto, não as daremos aqui como tal.
[2] usaremos neste artigo preferencialmente o termo RBI, embora sem descurar a necessária universalidade que lhe subjaz.
[3] PP. Francisco, Carta enc. Laudato Sí (24 de Maio de 2015), 116
[4] cf. Parábola do Bom Samaritano, Lc 10, 25-37
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.