Na próxima semana, o Parlamento Europeu dirá se quer uma Europa aberta ou fechada, que faça parte da solução das crises humanitárias.
Em plenário, decidirá se solicita à Comissão Europeia a apresentação de um programa de visto humanitário europeu, que seja emitido por qualquer Estado-Membro, em qualquer consulado, a quem demonstre carecer de proteção internacional. Um visto desta natureza permitiria eliminar o principal obstáculo à proteção internacional de mais pessoas, de forma regulada e segura, e, simultaneamente, desmotivar as viagens genocidas a caminho da UE.
De facto, as regras europeias garantem o direito a pedir proteção internacional, mas esse pedido tem de ser feito em território europeu, o que é, na prática, impossível para quem carece de proteção internacional, dado que os cidadãos não europeus precisam de um passaporte e de um visto para entrar na UE e o atual regime de vistos foi concebido para motivos turísticos, profissionais ou familiares – não para motivos humanitários.
Embora cada Estado-Membro tenha a liberdade de conceder vistos humanitários, a inexistência de regras e de apoio logístico e financeiro europeus para esse efeito, faz com que na prática os Estados-Membros raramente usem essa prerrogativa. O visto humanitário europeu constituiria, assim, um meio jurídico inovador, permitindo criar pontes entre a UE e os mais vulneráveis.
Curiosamente, a UE não enfrenta, neste momento, qualquer crise migratória ou humanitária. As políticas de controlo de fronteiras surtiram o efeito pretendido. Depois de 1.822.177 passagens ilegais detetadas em 2015, em 2016 o número foi reduzido para 511.047 e, em 2017, já foi de 204.654, um número inferior a 2014 e ao período pré-crise migratória (283.132).
O resto do planeta sim. As Nações Unidas estimam que, em 2017, o número de pessoas deslocadas bateu um novo recorde de 68,5 milhões, dos quais 24,4 milhões são refugiados. E a UE tem um papel secundário na ajuda. O número de pessoas que, a 1 de janeiro de 2017, residiam num Estado-Membro, com nacionalidade de um país terceiro, era de 21,6 milhões, representando apenas 4,2 % da população da UE.
Em 2017, apenas um país europeu – Alemanha – figurava entre os 10 países com mais refugiados (Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano, Irão, Alemanha, Bangladeche, Sudão, Etiópia e Jordânia). Em termos relativos, só dois países europeus estavam entre os 10 países com maior taxa de população refugiada (Líbano, Jordânia, Turquia, Uganda, Chade, Suécia, Sudão do Sul, Malta e Djibuti). Em termos regionais, 31% dos refugiados estão em África, 21% na Ásia e Pacífico, 17% na Turquia, 14% no Médio-Oriente e norte de África, 14% na UE e 3% nas Américas.
Contudo, no passado dia 18 de outubro, reunidos em Conselho Europeu, os chefes de Estado dos Estados-Membros reafirmaram a sua preocupação em diminuir a vinda de pessoas. Deixaram claro que apesar das passagens ilegais detetadas nas fronteiras da UE terem diminuído 95% em comparação com o pico em outubro de 2015, ainda não é suficiente. A proposta de criação dos vistos humanitários nasce neste contexto – que, como se vê, é tão paradoxal.
É idílico falar de religião, de tolerância e de liberdade sem levar em consideração aquilo que constitui as questões concretas com que os crentes se debatem. E a questão das migrações e da crise mundial – não Europeia – dos refugiados é um dos tópicos que não pode ser ignorado. A que hospitalidade estão os crentes obrigados? Pode-se impor fronteiras aos inocentes que fogem da guerra, da fome, ou que procuram cuidados médicos urgentes mas indisponíveis nos seus países de origem? De que tolerância se fala verdadeiramente, quando se aplica a tolerância só aos que já têm o privilégio de viver como nós? A crise dos refugiados não é um problema estatístico ou demográfico, mas fundamentalmente ético e por isso também religioso. Nenhum debate sobre a presença da religião no espaço público pode ignorar este ponto.
De que tolerância se fala verdadeiramente, quando se aplica a tolerância só aos que já têm o privilégio de viver como nós? A crise dos refugiados não é um problema estatístico ou demográfico, mas fundamentalmente ético e por isso também religioso. Nenhum debate sobre a presença da religião no espaço público pode ignorar este ponto.
O importante, dito isto, é que se assuma também que o debate ético e religioso sobre temas de migrantes e refugiados não admite respostas ingénuas. Não basta responder ideologicamente, mas sem considerar as implicações da resposta que se dá. Apoiar a criação de vistos humanitários permitiria, por exemplo, reduzir o número de barcos ilegais que atravessam o mediterrâneo e que são tão propícios a trágicos acidentes; mas, ao mesmo tempo, criaria nos países de origem um enorme potencial para o tumulto junto das embaixadas dos países de destino sempre que houvesse algum tipo de crise humanitária no horizonte. A confusão social e diplomática que isto poderia criar tem que ser ponderada. Da mesma maneira, rejeitar a criação de vistos humanitários permitiria sustentar a tese de que é junto dos países de origem que o problema dos migrantes e refugiados tem de ser resolvido, fortalecendo as economias, eliminando a corrupção nos sistemas, trazendo saúde e educação às populações; mas aí, claro, dá-se azo a que se perpetuem fenómenos de extorsão, de tráfico humano, ou de mortes em massa entre aqueles que se aventuram na tentativa de chegar a um país que os acolha.
Sem espaço para a ingenuidade, este é um debate obrigatório quando se pensa no futuro da religião no nosso espaço público. Não há fé sem consequências. E não há verdadeira tolerância sem um cuidado concreto pelo bem do próximo.
Este texto foi escrito para o site Fronteiras XXI, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.