Nos primeiros dias de setembro de 2015, a opinião pública europeia confrontou-se com a fotografia de uma criança de três anos morta na costa de uma praia turca. A imagem não era inédita, pelo menos para os que seguiam atentos a realidade de milhões de pessoas que, desde que há memória, são obrigadas a deixar os seus países por diversas razões, tais como perseguições em virtude da raça, religião, nacionalidade ou por desastres ambientais, dificuldades económicas ou motivos de saúde. Por essa ocasião, a agenda mediática ocupou-se de tratar o tema, dando-lhe o epíteto de “crise” e alertando, sobretudo, para os seus números arrebatadores. Todos os dias se batiam novos recordes que, sabemos hoje, continuariam a ser batidos sucessivamente, apesar de o interesse mediático ter praticamente desaparecido.
O número de refugiados desde que há registo, nunca foi tão elevado. Nos últimos 20 anos, a população deslocada à força passou de 33,9 milhões, em 1997, para 65 milhões, em 2017.Só refugiados no mundo são 22,5 milhões, número que aumentou exponencialmente entre 2012 e 2015, principalmente devido ao conflito na Síria.
Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), 30% dos refugiados no mundo encontram-se no continente africano, 26% no Médio Oriente e 17% na Europa. A Turquia é o país que mais refugiados acolhe (2,9 milhões), seguida pelo Paquistão (1,4 milhões), o Líbano (1 milhão) e ainda o Irão, Uganda e Etiópia. Muitas das regiões que assistem aos maiores movimentos de pessoas estão em zonas fustigadas por conflitos dos quais pouco ouvimos falar,mas que incluem os países que mais “exportam” refugiados.
“Crise” na Europa
Em maio de 2015, poucos meses antes de a fotografia virar os olhos do mundo para uma das suas maiores fragilidades, a Comissão Europeia adotava a Agenda Europeia da Migração, que traduzia uma série de orientações políticas para fazer frente à gestão dos fluxos migratórios e encetar ações imediatas. Morriam todos os dias centenas de pessoas a tentar chegar à Europa, muitas vezes em viagens de poucos quilómetros, mas muito perigosas. Calcula-se que tenham morrido, desde 2014, cerca de 12 mil pessoas no Mar Mediterrâneo. Nos primeiros 20 dias de janeiro deste ano já chegaram por mar ao continente europeu 4557 pessoas. Morreram 184 – mais ou menos 20 por dia.
Uma das medidas implementadas no âmbito da referida Agenda dizia respeito ao acionamento do artigo 78º, nº3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que prevê ações em caso de situação de emergência em um ou mais Estados-membros caracterizada por “um súbito fluxo de nacionais de países terceiros”.Decidia, entre outras medidas, que seria levada a cabo a recolocação de 40 mil requerentes de asilo – número que subiu para 160 mil quatro meses mais tarde – da Itália e na Grécia, países mais sobrecarregados com o fluxo migratório, através da distribuição de quotas por cada Estado-membro com efeitos a partir de setembro de 2015.
Os Estados-membros (da União Europeia) aceitaram menos de 30% do número de requerentes de asilo que se comprometeram a receber.
Com um arranque lento, este mecanismo de emergência duraria dois anos e dificilmente cumpriria os seus objetivos, tendo sido fortemente marcado pela falta de solidariedade e pela pouca vontade política de alguns Estados-membros. Viu o seu término no dia 26 de setembro de 2017 e refletiu as diferentes velocidades no entendimento da UE nesta matéria. Os Estados-membros aceitaram menos de 30% do número de requerentes de asilo que se comprometeram a receber, tendo sido apenas recolocadas 19740 pessoas da Grécia e 8839 da Itália. Um dos procedimentos mais criticados pelas organizações humanitárias prendeu-se com a definição das nacionalidades elegíveis a este mecanismo. Apenas os nacionais com uma taxa média de reconhecimento para efeitos de asilo superior a 75%, calculada com base nos dados do EUROSTAT, poderiam beneficiar da recolocação. Os países que alcançaram este valor oscilaram, por exemplo, entre a Síria, Iraque e Eritreia, colocando de fora deste processo muitas outras nacionalidades cujas razões de fuga podem ser perfeitamente justificadas, mesmo não cabendo numa taxa calculada matematicamente. Isto inclui, por exemplo, afegãos e nigerianos, a segunda e terceira nacionalidades que, logo a seguir à síria, mais chegam ao continente europeu. Muitas destas pessoas ainda aguardam ver solucionado o seu problema, nos “hotspots” instalados na Grécia e Itália com o objetivo de identificar, registar e tirar as impressões digitais dos migrantes, o que, em alguns casos, resultou na sua transformação em verdadeiros centros de detenção, muitas vezes sobrelotados e sem quaisquer condições. Neste momento, estão ainda presas nas ilhas gregas cerca de 15 mil pessoas à espera de ver resolvida a sua situação, muitas em condições deploráveis e em clara destituição dos seus direitos.
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Neste momento, estão ainda presas nas ilhas gregas cerca de 15 mil pessoas à espera de ver resolvida a sua situação, muitas em condições deploráveis e em clara destituição dos seus direitos.
As diferentes reações a este mecanismo agudizaram-se no início de 2016 quando a hostilidade face aos migrantes e refugiados começou a suceder-se em diferentes países, culminando no encerramento de fronteiras, no endurecimento de discursos políticos e na efetiva construção de muros (tais como na Hungria, Bulgária, Ceuta e Melila).
O acordo UE-Turquia, em março de 2016, veio juntar-se à resposta marcadamente securitária que pautava as decisões a nível europeu. Este acordo, contestado por muitas organizações, ditou a expulsão de 2130 pessoas para a Turquia, país considerado não seguro para o seu acolhimento, mas cumpriu, em última análise, o seu propósito – a diminuição das chegadas ao continente europeu (menos 97% no primeiro ano da sua implementação, segundo a Comissão Europeia). Falhou, no entanto, no cumprimento do valor fundamental: a proteção de vidas humanas. Desde que entrou em vigor, e desde que a rota pelo mar Egeu encerrou, o número de mortes em proporção aumentou. Passou-se da morte de uma pessoa em cada 52, em 2015, para uma em cada 42, em 2016, provando que as pessoas continuavam a tentar chegar à Europa, mesmo que por rotas mais perigosas.
[O acordo UE-Turquia] Falhou (…) no cumprimento do valor fundamental: a proteção de vidas humanas
O caso de Portugal
Quando a fotografia da criança síria fez capas de jornais e invadiu as redes sociais, Portugal não ficou de fora da onda de solidariedade que se gerou na Europa. Muitas organizações que trabalhavam com esta população receberam inúmeras ofertas de ajuda e assistiu-se a uma mobilização inédita da sociedade civil.
Este clima de solidariedade esteve em sintonia com o poder político que mostrou vontade e consenso parlamentar em acolher requerentes de asilo em Portugal ao abrigo do mecanismo de recolocação. Portugal comprometeu-se a acolher 3343 pessoas, no âmbito da recolocação e 191 no do mecanismo da reinstalação. Este último diz respeito à transferência de refugiados do seu país de asilo para um país terceiro, tendo este previamente acordado acolhê-los e conceder-lhes um estatuto formal. Portugal já tinha adotado este mecanismo, mas as quotas anuais de acolhimento rondavam apenas as 30 pessoas. Recentemente, e depois de o mecanismo de recolocação ter chegado ao fim sem se saber qual será o seu futuro, Portugal anunciou estar disponível para acolher mais 1010 refugiados ao abrigo de um novo programa de reinstalação da UE que pretende distribuir cerca de 50 mil pessoas.
Depois da lentidão inicial, os primeiros requerentes de asilo chegaram em dezembro de 2015, sendo que até à data, Portugal já acolheu 1518 pessoas. O país tem sido apontado como um dos “bons alunos” da UE neste dossiê, a nível político e da sociedade civil. A criação da PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados, cujo secretariado técnico está confiado ao Serviço Jesuíta aos Refugiados– foi um exemplo, tendo até ao momento acolhido 40% dos refugiados que já chegaram a Portugal. No total, cerca de 90 instituições anfitriãs, entre municípios, paróquias, IPSS e Colégios, acolheram 143 famílias (670 pessoas, entre elas 356 crianças) e assistiu-se a uma mobilização notável meses antes das primeiras chegadas. O lançamento da PAR coincidiu com o repto do Papa Francisco, uma das vozes mais ativas no drama de migrantes e refugiados, para que cada paróquia acolhesse uma família, o que acabou por ter um impacto visível no terreno.
Apesar de o número de movimentos secundários a partir de Portugal (refugiados que saem de um país de asilo para outro, cerca de 45%) estar em conformidade com o que acontece noutros países da UE, é necessário perceber as razões que possam estar na sua origem.
Passados mais de dois anos desde que os primeiros requerentes de asilo chegaram, é necessário que o discurso que dá conta da vontade e disponibilidade demonstradas no acolhimento comece a dar lugar a um balanço sério do processo de integração, assim como a um levantamento dos obstáculos que este possa enfrentar. É importante refletir sobre a sistémica burocracia e lentidão dos serviços públicos, como a Segurança Social e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, à qual se junta a falta de harmonização e partilha de boas práticas entre organismos públicos, a pouca oferta de cursos de Língua Portuguesa em regiões descentralizadas e a dificuldade na obtenção de equivalências escolares e académicas.
Apesar de o número de movimentos secundários a partir de Portugal (refugiados que saem de um país de asilo para outro, cerca de 45%) estar em conformidade com o que acontece noutros países da UE, é necessário perceber as razões que possam estar na sua origem.
O funcionamento do mecanismo da recolocação dificulta a permanência de refugiados no país, pela sua natureza voluntária e aleatória, que não tem em conta os laços familiares, distribuindo famílias por países diferentes, mas poderá haver outros motivos para além deste. A lentidão do processo de decisão final do pedido de proteção internacional, que influencia o pedido de reagrupamento familiar, e as próprias expectativas que estas pessoas trazem, muitas vezes alimentadas por falsas informações veiculadas pelas redes sociais, podem, igualmente, dissuadi-las a permanecer em território nacional.
Não obstante, pouco mais de dois anos depois, o balanço é positivo e Portugal pode orgulhar-se de ter tratado este tema com a humanidade e dignidade que merece. Até ao momento, cerca de 50% dos refugiados encontraram trabalho ou oportunidades de formação e as famílias que cá permanecem mostram-se agradecidas e satisfeitas com a vida que puderam recomeçar. Das 262 crianças refugiadas que chegaram, 29 já nasceram em território nacional. Todas podem, finalmente, sonhar com um futuro promissor.
*Diretor-executivo do Serviço Jesuíta aos Refugiados – Portugal (JRS-P)
Texto editado por Inês Braizinha
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.