Na generalidade dos media, passou despercebido. Foi no passado dia 4 de fevereiro que se celebrou, pela primeira vez na história, o Dia Internacional da Fraternidade Humana. Nem por acaso, a efeméride coincidiu com o segundo aniversário do Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz mundial e da convivência comum, que o Papa Francisco assinou conjuntamente com o Imã Ahmad Al-Tayyeb. Ao revisitarmos aquele texto agora, nestes tempos difíceis que nos são dados viver, talvez possamos reconhecê-lo como um sinal profético que nos desafia.
Muitos cristãos, até mesmo católicos, têm mostrado uma certa desconfiança face às palavras do Papa, sobretudo no que ao Documento sobre a Fraternidade Humana diz respeito. O seu raciocínio é simples. No fundo, trata-se de ver o estender da fraternidade para além dos confins da Igreja como uma recusa em anunciar o Evangelho de Cristo. Como se a proximidade e amizade que o Papa demonstra para com um líder muçulmano significassem que o Evangelho seria, para ele, de algum modo prescindível; como se os seus gestos e palavras implicassem que a adesão a Cristo fosse supérflua ou dispensável para quem deseja encontrar-se um dia face a face com o rosto do Deus misericordioso no Seu Reino, qual Paraíso.
Da minha parte, creio que não se deve compreender assim a ausência de um apelo explícito – talvez desejassem mesmo que fosse violento – à conversão. Para o atual Sumo Pontífice, parece-me, a questão não é tanto a de saber se o Evangelho é, ou não, necessário à salvação – salvação esta cujo protagonista e conhecedor único, note-se, se encontra só em Deus. Em vez de afirmar explicitamente a necessidade da adesão ao Evangelho, o Papa procura, antes, saber como deve agir quem optou por fazer do Evangelho o seu modo de vida. É a partir da centralidade dessa questão, eminentemente prática, que se compreende a inspiração da figura de São Francisco de Assis sobre o atual pontificado. O apelo a uma “fraternidade universal” e a uma “amizade social” pode ser interpretado como uma atualização das exortações paulinas para os tempos de hoje. Refiro-me, por exemplo, ao conselho que São Paulo dá aos Colossenses: “revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência (…) e de amor, que é o laço da perfeição” (Col 3, 12-14). Ou, ainda mais explicitamente, quando o apóstolo dos gentios se dirige aos Coríntios dizendo: “quer comais, quer bebeis, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. Não vos torneis ocasião de escândalo, nem para os judeus, nem para os gregos, nem para a Igreja de Deus. Fazei como eu, que me esforço por agradar a todos em tudo” (1 Cor 10, 31-33).
É por isso que tenho dificuldade em aceitar a crítica, recorrente em certos ambientes cristãos, que considera a ação do Sumo Pontífice como associada a uma estratégica unicamente política e não espiritual. Não só porque agir em prol da fraternidade universal se funda numa espiritualidade genuinamente cristã, mas também porque é assim que vive quem acredita mais na fraqueza da cruz do que numa força que se impõe aos outros desde fora. De facto, os gestos e as palavras do Papa não diluem a identidade cristã: muito pelo contrário, afirmam-na, pois, para um cristão, “vencer” não se confunde com conquistar mundanamente o outro, nem “é sinónimo de destru[i-lo]” (FT §16).
No atual contexto de pandemia, sonhar com essa fraternidade torna-se mais urgente. E o apelo para a construirmos, com a graça de Deus, também se torna mais compreensível, mesmo do ponto de vista teológico e espiritual.
Num mundo como este, feito de pessoas da nossa carne, cuja natureza caída só permite a realização de boas obras a muito custo e com a ajuda da graça divina, o sonho por uma fraternidade universal pode soar a um ideal abstrato ou a uma miragem naïve.
Comecemos por levar a sério uma crítica que pode ser pensada no contexto da mundovisão cristã do mundo, da história e da humanidade. Trata-se de julgar que a fraternidade universal, apesar de ser desejável e querida por Deus, só seria possível no Paraíso perdido. Apenas os homens e as mulheres com uma natureza pura – isto é, antes da Queda original – seriam capazes de viver essa fraternidade. Num mundo como este, feito de pessoas da nossa carne, cuja natureza caída só permite a realização de boas obras a muito custo e com a ajuda da graça divina, o sonho por uma fraternidade universal pode soar a um ideal abstrato ou a uma miragem naïve. Talvez sintamos que, neste mundo, não valha a pena sonhar como se estivéssemos num Éden perfeito. Pois aqui, onde nos encontramos, a fraternidade parece só ser possível em comunhão com o Filho de Deus, numa total abertura à Sua graça. Ou seja, nessa perspetiva, a fraternidade universal só seria possível entre nós, batizados, que aspiramos, com a força da graça, a sermos ‘homens novos’ em Cristo, Jesus.
No entanto, na atual crise, não experimentamos a fragilidade do mundo e da natureza humana como uma queda que nos impossibilita vivermos como irmãos e irmãs. A fragilidade, que agora nos é dada viver, não impede a fraternidade: exige-a. E é por isso que o Documento sobre a Fraternidade Humana, precursor da Fratelli tutti, surge hoje como uma palavra profética. Apesar do documento ter sido redigido um ano antes da pandemia, numa altura em que poucos imaginavam as consequências que viriam com a Covid, estas palavras revelam uma atitude que as circunstâncias atuais exigem. Ou melhor: trata-se de redescobrir, no meio das cinzas que invadem o tempo presente, os elos que podem unir-nos, mesmo apesar das diferenças que assumimos existirem entre nós.
Com efeito, enquanto filósofos como Slavoj Žižek ou Jean-Luc Nancy nos falam em novas formas emergentes de comunismo, não fosse este “vírus que nos comuniza”, o Papa insiste no facto da pandemia mostrar como estamos indissociavelmente interligados uns aos outros. E a fraternidade, à qual ele sempre fez apelo, torna-se possível a partir da realidade que nos une indissociavelmente uns aos outros. Se a pandemia, assim como as crises migratórias e ecológicas que nos esperam, só pode ser vencida em conjunto, então é porque nós formamos, ou devemos formar, um corpo que esteja minimamente unido. Por mais paradoxal que possa parecer, o facto de termos de usar máscara e de nos pedirem distanciamento físico ou confinamentos em casa vem comprovar o elo intrínseco que nos caracteriza enquanto humanidade. Neste contexto, a fragilidade da nossa condição não é só pecado, pois também pode tornar-se lugar de comunhão. E é assim que se compreende como a pandemia não avivou apenas as tensões e angústias psicológicas que atacam pessoas destinadas à solidão dos confinamentos. Para além disso, também temos assistido ao despertar de movimentos espontâneos de uma enorme solidariedade. Tudo isso manifesta como podemos aprender com a crise atual: aprender, não só que não somos ilhas isoladas, mas também a viver a fragilidade da nossa natureza a partir dos elos que nos unem. E é aí que a fraternidade tem lugar, podendo desencadear novos processos de cura e crescimento.
Devemos, por isso, evitar duas possíveis tentações no que diz respeito à fragilidade da nossa condição. Por um lado, seria fácil deixar-se paralisar ou até mesmo afundar na fragilidade, como se nada pudéssemos fazer num mundo onde tudo são pedações de barro desfeitos pelo pecado. Por outro lado, podemos julgar que a fragilidade não define a nossa condição, como se fossemos uma espécie de super-homens, dotados de saber e de tecnologia, com a qual poderíamos dominar e prever tudo.
Perante estas tentações recorrentes, ressoam como que proféticas as palavras de Francisco e de Ahmad Al-Tayyeb: “esta Declaração acredita firmemente que, entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes”.
Ao experimentarmos as nefastas consequências da pandemia na saúde pública, na economia das nações ou no nosso modo de vida, somos levamos a percecionar os limites da ideologia cientista e do mito do progresso.
Ao experimentarmos as nefastas consequências da pandemia na saúde pública, na economia das nações ou no nosso modo de vida, somos levamos a percecionar os limites da ideologia cientista e do mito do progresso. Não obstante o facto da ciência e da tecnologia serem absolutamente necessárias e imprescindíveis no combate contra o vírus e no progresso das nossas sociedades, a verdade é que todo esse conhecimento não elimina por completo a nossa condição de seres frágeis. Face à incerteza, e à necessidade de termos que nos adaptar a uma realidade indesejada que se impõe com toda a força, é tempo de reconhecer que a esperança dificilmente terá lugar no horizonte de um puro materialismo. Não que a pandemia seja, no entendimento do Papa, um castigo divino: nela, apenas se vê a expressão da contingência da nossa vida e do mundo que habitamos. E, de facto, mesmo apesar de todo o conhecimento científico acumulado, o insucesso que experimentamos põe a descoberto, pelo menos no imediato, os limites do paradigma técnico-científico. Não só porque a incerteza e a incapacidade de dominarmos a realidade persistem, mas também porque a solução técnica, dos confinamentos e vacinas, muito embora imprescindível, não satisfaz completamente as nossas aspirações “sobrenaturais”– não tenhamos pudor em adjetivá-las assim. Como diz o Papa na sua mensagem quaresmal: “No contexto de preocupação em que vivemos atualmente, onde tudo parece frágil e incerto, falar de esperança poderia parecer uma provocação. Ao orientar o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante o facto de a maltratarmos com frequência”, o tempo da Quaresma cria processos de esperança.
Para que a fraternidade sonhada pelo Papa aconteça, é preciso abandonar as ilusões de uma liberdade radical, segundo a qual os indivíduos humanos se autodeterminariam independentemente uns dos outros. Não tivessem as nossas escolhas impacto na realidade em redor, talvez pudéssemos escolher quem somos, quem queremos ser, e como queremos viver, em total desconexão com o mundo e com as pessoas que connosco o coabitam. É por isso que o Papa nos alerta para o perigo da “indiferença”, capaz de nos separar e distanciar radicalmente. “A indiferença, disse o Papa na celebração do Dia Mundial da Fraternidade Humana, é uma forma muito subtil de inimizade. Não é preciso guerra para ter inimigos. Basta não se preocupar com os outros”; acrescentando ainda que a “fraternidade é a nova fronteira da humanidade”, pois ou somos “irmãos ou inimigos”, “ou somos irmãos ou nos destruímos mutuamente”.
Estendida aos muçulmanos e a todas as pessoas de boa vontade, a fraternidade universal visa cooperar na construção do Reino a partir da situação concreta em que nos encontramos. É por isso que o Papa apela a “uma Quaresma de caridade”, orientada para uma “Páscoa de fraternidade”. E, se nesse apelo não se explicita a necessidade da adesão a Jesus, ao Evangelho e à Igreja, é porque se pressupõe essa escolha. Na verdade, é a partir da adesão a Cristo que somos chamados a cuidar especialmente “de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19”, tal como o Papa nos pede. No fundo, o desejo de viver autenticamente o Evangelho alimenta o caminho da fraternidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.