Recordar Pio XII no dia da libertação de Auschwitz

Quando se faz memória da história, horrorizar-se com o quão banal foi o mal no passado pode parecer pouco. Convém que nos esforcemos, também, por compreender os dilemas de quem teve de ser personagem daquele momento histórico.

Quando se faz memória da história, horrorizar-se com o quão banal foi o mal no passado pode parecer pouco. Convém que nos esforcemos, também, por compreender os dilemas de quem teve de ser personagem daquele momento histórico.

Foi a 27 de janeiro de 1945 que o Exército Vermelho pôs termo ao mais terrível campo de extermínio nazi. A partir daquele dia, dizer “Auschwitz” faz-nos ver um lugar habitado pela morte. Não obstante a alegria pela libertação do campo, o cenário das imagens transmitidas por todo o mundo nunca parou de nos horrorizar. Pessoas mortas, como cadáveres sujos de preto, ou já em cinzas abandonadas ao vento, partilhando aquele lugar sinistro com outras, ainda em vida, que nos olham com rostos desfigurados e destruídos. E hoje, sempre que ouvimos “Auschwitz” vem-nos à memória a barbárie de uma cegueira ideológica num horror sem limites.

Nem por acaso, a Audiência Geral que o Papa Francisco concedeu na passada quarta-feira coincidiu com o 76.º aniversário da libertação do campo de Auschwitz-Birkenau. Como seria de esperar, a efeméride não passou despercebida. Referindo-se explicitamente ao Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, Francisco fez um apelo para que recordássemos esse momento da história, porque “recordar é expressão de humanidade. Recordar é sinal de civilização. Recordar é condição para um futuro melhor de paz e fraternidade. Recordar também significa estarmos atentos, pois estas coisas podem voltar a acontecer, começando por propostas ideológicas que pretendem salvar um povo e acabam por destruir a humanidade. Estai atentos a como começou este caminho de morte, de extermínio, de brutalidade”.

Creio ser importante reavivar a memória da tragédia, não só para não a repetir no futuro, mas também para fazer justiça aos protagonistas do passado.

Creio ser importante reavivar a memória da tragédia, não só para não a repetir no futuro, mas também para fazer justiça aos protagonistas do passado. Por um lado, recordar essa história leva-nos a desconstruir os extremismos ideológicos dos quais não queremos que haja mais vítimas para lamentar no futuro. Por outro lado, também nos ajuda a compreender os dilemas dos seus protagonistas, sobretudo daqueles que, no passado, se esforçaram, o mais que puderam, por minimizar o desastre.

Neste contexto, convém ler o livro que a editora italiana Rizzoli acabou de lançar, em janeiro de 2021: Pio XII e gli ebrei (“Pio XII e os judeus”). Desde março do ano passado, altura em que a Igreja, sem “medo da história”, havia aberto “à consulta dos pesquisadores a documentação respeitante ao Pontificado de Pio XII” que o autor desta obra, Johan Ickx, esteve a pesquisar nos Arquivos do Vaticano. Agora, chegou o momento de nos apresentar, em livro, as suas conclusões.

Em entrevista ao Vatican News, Johan Ickx relata o sentimento de impotência que muitas vezes se viveu no gabinete de Pio XII, cujos colaboradores mais próximos se empenhavam incansavelmente à procura de soluções para pedidos muito concretos de ajuda. Desfaz-se, assim, a chamada “lenda negra” de um Papa insensível à barbárie do antissemitismo nazi ou até mesmo próximo de Hitler. São milhares de documentos que testemunham o modus operandi da diplomacia da Santa Sé em prol das vítimas. Foram milhares os pedidos de ajuda que, entre 1938 e 1944, chegaram ao Vaticano. E chegou-se mesmo a falsificar documentos de forma a salvar o maior número de vidas.

É verdade que o Papa Pacelli, Pio XII, estava a par dos massacres perpetrados pelo regime nazi. Também é indiscutível o facto de ter escolhido uma diplomacia mais “imparcial” ou mais “suave” do que a do seu predecessor, Pio XI. Contudo, para Johan Ickx, é evidente que a estratégia visava salvar o maior número de pessoas, independentemente da sua etnia ou religião.

Para que se possa compreender a opção por esse modus operandi “mais suave”, convém não esquecer o papel que Eugenio Pacelli desempenhou, antes de assumir a cátedra de Pedro, enquanto Secretário de Estado de Pio XI. Colaborador próximo do seu predecessor, Pacelli acompanhou de perto o processo de difusão da encíclica Mit brennender Sorge que Pio XI publicou a 10 de março de 1937. Destinado sobretudo à Igreja alemã, e escrito na sua própria língua, o documento continha uma crítica feroz ao nazismo, ali reduzido a uma simples expressão de paganismo. Tão rápidas quão violentas, as retaliações do Reich reduziram a capacidade de manobra da Igreja. E inumeráveis martírios cristãos se seguiram à encíclica papal. Não esqueçamos que já em 1931 acontecera algo idêntico em Itália, com a publicação da encíclica antifascista Non abbiamo bisogno. Enquanto diplomata do Vaticano, Pacelli percebeu claramente qual seria o preço a pagar se adotasse uma postura muito agressiva. Provavelmente, quando subiu à sede petrina, julgou que uma posição mais “suave” poderia gerar mais frutos, não só no combate contra os totalitarismos, mas sobretudo no auxílio aos perseguidos. É aliás Jesus quem, no Evangelho, exorta a sermos não apenas humildes como as pombas, mas também astutos como as serpentes (cf. Mt 10, 16).

Quando se faz memória da história, horrorizar-se com o quão banal foi o mal no passado pode parecer pouco. Convém que nos esforcemos, também, por compreender os dilemas de quem teve de ser personagem daquele momento histórico e que, à medida das suas forças, procurou agir em prol do Bem numa Europa então dominada por regimes totalitários.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.