Posso até ser George Floyd, mas também sou racista

Há uma reação instintiva que facilmente temos quando o tema do racismo salta para os media e para as redes sociais: Pensar, dizer e sentir “eu não sou racista.”, ou ainda “Portugal não é um país racista”.

Há uma reação instintiva que facilmente temos quando o tema do racismo salta para os media e para as redes sociais: Pensar, dizer e sentir “eu não sou racista.”, ou ainda “Portugal não é um país racista”.

Deixem-me começar por duas pequenas histórias que se passaram comigo.

História 1: Há vinte anos, durante a primeira etapa da minha formação como jesuíta, passei um mês a trabalhar numa das nossas comunidades que fica situada num bairro social. A maioria da população desse bairro provém de países de língua oficial portuguesa, em especial de Cabo Verde. Muitos dos filhos e netos dos imigrantes de primeira geração já nasceram em Portugal.  Durante esse mês parte do meu tempo era passado na rua e a jogar futebol. Quando conhecia algum jovem perguntava-lhe com frequência de onde era. Normalmente, respondiam de forma pronta: sou português. Lembro-me que esta resposta gerava em mim uma certa irritação. Sentia que havia nela um certo desapego ou mesmo uma negação das suas origens. Eu achava que a resposta certa seria: sou cabo-verdiano, ainda que tivessem nascido em Portugal, nunca tivessem ido a Cabo Verde e se sentissem verdadeiramente portugueses. Não vou aqui discutir a Lei da Nacionalidade, mas tenho que reconhecer que, até agora, nunca tinha questionado este meu sentimento. Foi o debate gerado em torno da morte de George Floyd que me colocou em causa.

História 2: Esta história tem apenas alguns dias. No sábado passado, recebi uma mensagem em que uma amiga me dizia: “tendo em conta o que se está a passar nos EUA acho que um jesuíta devia escrever no Ponto SJ sobre o racismo e o papel da Igreja.” Respondi honesta e sinceramente que sim, que ia tratar disso. E registei mesmo o assunto. Mas deixei-o para resolver depois de outras coisas que tinha em mãos. Não lhe coloquei o selo de urgente. E, por isso, o artigo só chega hoje.

 

Há uma reação instintiva que facilmente temos quando o tema do racismo salta para os media, para as redes sociais ou simplesmente para uma conversa de café: Pensar, dizer e sentir “eu não sou racista”, ou ainda “Portugal não é um país racista”. Tenho dúvidas que estas afirmações resistam a um exame sério da nossa sensibilidade ou a uma leitura crítica sobre a realidade portuguesa.

A ilusão de que em Portugal não há racismo tem sido desmontada pelo importante trabalho da jornalista do Público Joana Gorjão Henriqes. A Joana Rigato refletiu sobre uma parte desse trabalho, num artigo escrito para o Ponto SJ. Vale a pena lê-lo como modo de formar a nossa consciência.

Retomando a duas histórias iniciais, examino então a minha própria sensibilidade. Quando falava com os jovens que conheci no bairro em que passei um mês, nunca me passou pela cabeça dizer-lhes “vai para a tua terra”. Contudo, querendo ou não, disse-lhes “esta não é bem a tua terra”. Na segunda história, a minha hierarquia de prioridades levou a que relativizasse o tema do racismo, diante de outros assuntos que tinha em mãos. Naturalmente, há alturas em que priorizamos as coisas não tanto de acordo com a sua importância real mas mais de acordo com a urgência imediata da questão. Ainda assim, a falta de sentido de urgência relativamente a um tema como o racismo, diz alguma coisa sobre a minha insensibilidade à injustiça.

Não peço, nem por um segundo, a vossa condescendência. Mas gostava que estas histórias pudessem ser uma ajuda a olhar com verdade para os nossos preconceitos. Igualmente importante seria fazer um mapa dos nossos medos, reconhecendo a que grupos e diferenças é que eles se dirigem.

Equiparar este meu racismo com o que alimentou a brutalidade policial que matou George Floyd seria perigoso e poderia levar a uma atitude relativista. Mas iludi-lo ajuda a criar uma cultura que se torna insensível a formas de discriminação que atingem a dignidade humana. Os últimos acontecimentos ocorridos nos EUA mostram de um modo claro que a defesa da vida não pode ignorar um tema como o do racismo. Os cristãos e as suas comunidades estão chamados a examinar a sua sensibilidade.

O lastro do racismo toca pessoas concretas, limita-lhes os passos, rouba-lhes o direito a respirar e a serem olhadas com confiança.

Sejamos francos. As nossas cidades, os nossos bairros, as nossas comunidades cristãs têm muitas vezes dificuldade em romper com a lógica de guetos e de bolhas sociais. Reflectem-se aqui escolhas políticas e opções urbanísticas que facilitam esta lógica da exclusão. Mas isso não nos desculpa, nem dispensa a nossa reflexão: O que é que podemos fazer a nível pessoal e comunitário? Como podemos, partindo da nossa tradição e da nossa ação, desmontar todos os discursos e práticas que alimentam lógicas de exclusão e são contrárias à defesa da dignidade e da vida? Como podemos trazer para o centro das nossas comunidades e das  nossas relações pessoas cuja história de vida, marcada pela dor e pela discriminação, pura e simplesmente ignoramos?

O lastro do racismo toca pessoas concretas, limita-lhes os passos, rouba-lhes o direito a respirar e a serem olhadas com confiança. É este o testemunho do jesuíta Patrick Saint-Jean, sj. Patrick é natural do Haiti, viveu boa parte da sua vida e França e estuda atualmente nos EUA. Num artigo sobre a morte de George Floyd comenta:

“Na América de hoje, nunca se é suficientemente negro para ser visto ou ouvido. Isto é verdade mesmo quando se implora desesperadamente pela vida, pela respiração. Apesar do estereótipo de que “os negros são demasiado barulhentos”, quando chega a hora de chorar pelas nossas vidas, parece que não somos suficientemente barulhentos para sermos ouvidos pela polícia.”

A desconfiança que Patrick Saint-Jean experimenta não acontece só por lá. Contaram-me hoje a tormenta dos professores de uma Escola maioritariamente frequentada por alunos de origem africana. Sempre que saem em visita de estudo, os alunos são invariavelmente recebidos em estado de alerta. Numa dessas visitas, foram acusados de roubos que nunca aconteceram, devido ao pânico gerado  pela sua presença em alunos de uma outra escola. Quando a coisa corre bem, dizem os professores, no final de uma qualquer visita dizem-lhes com simpatia “eles nem se portaram mal”.

Enquanto a nossa reposta, pessoal, comunitária e social for a de negar que o racismo está presente naquilo que sentimos, no modo como olhamos o mundo e como organizamos a nossa vida comum será difícil desmontá-lo. Não podemos negar a realidade, nem fugir ao exame da nossa sensibilidade pessoal e colectiva.

Diante da barbárie que levou à morte de George Floyd podemos dizer “eu sou George Floyd”. Mas, por uma questão de honestidade, talvez também tenhamos que dizer, “mas também sou racista”.

Fotografia de Singlespeedfahrer

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.