Hoje é dia de luto nacional. As primeiras palavras só podem, por isso, ser de homenagem às sete vítimas que morreram no contexto dos incêndios da última semana, de solidariedade para com as suas famílias, e de gratidão pela coragem e sacrifício com que tantos bombeiros, agentes de Proteção Civil e anónimos cidadãos se têm empenhado nesta luta contra o fogo. Lamentamos as vidas que se perderam, os bens e equipamentos que ficaram destruídos e a natureza reduzida a cinzas. Também não podemos deixar de revoltar-nos, porque estas vítimas não são as primeiras de uma tragédia que se repete, verão após verão, e, sabemo-lo, provavelmente, não serão as últimas.
Embora a atualidade seja um dos principais critérios editoriais do Ponto SJ – habitamos uma realidade concreta e é sobre ela que somos chamados a refletir e conversar – , esta semana não publicamos nenhum artigo sobre o tema que dominou a agenda mediática. Mas bastou trazer para os dias de hoje alguns artigos que fomos publicando desde 2018 para perceber como os problemas estruturais como que nos deparamos atualmente continuam a ser os mesmos dos últimos seis anos. Desordenamento, abandono e ausência de gestão florestal, demasiadas ignições provocadas por ações humanas negligentes (uso indevido do fogo como queimadas, máquinas agrícolas, etc), dificuldades de organização no comando e combate, falta de meios… E claro, mão criminosa, embora esta pareça estar a ganhar contornos diferentes dos de outros tempos.
Identificar estes problemas extremamente complexos e de difícil resolução, reconhecendo que existem hoje como existiam há vários anos, não significa dizer que não se fez nada, nem tão pouco que estamos perante uma fatalidade. Mas, implica, pelo menos reconhecer que esta história recente diz muito sobre nós próprios, enquanto país e enquanto cidadãos.
Identificar estes problemas extremamente complexos e de difícil resolução, reconhecendo que existem hoje como existiam há vários anos, não significa dizer que não se fez nada, nem tão pouco que estamos perante uma fatalidade. Mas, implica, pelo menos reconhecer que esta história recente diz muito sobre nós próprios, enquanto país e enquanto cidadãos.
Comecemos pelo início. Nesta leitura guiada que lhe propomos pelo Ponto SJ, com vários artigos sobre este tema dos incêndios, sugerimos-lhe que comece pelo artigo de Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista e um dos maiores especialistas do assunto em Portugal. Em 2022 falava sobre a natureza do fogo, e sublinhava que este, apesar de fazer parte da natureza, não é um “act of God”, na medida em que os responsáveis pelo padrão que vai assumindo – controlado ou altamente violento – são muitos e variados. Na prática, implicados “somos todos e cada um de nós (incluindo quando escolhemos quem nos governa, mas também quando escolhemos o que comer).” Ou seja, se antigamente o fogo era utilizado nas zonas rurais – para fazer a gestão dos combustíveis, isso atualmente não acontece, porque a floresta está abandonada, não há pastoreio, e assim o combustível vai-se acumulando de forma explosiva. Um problema aparentemente fácil de identificar mas muito difícil de resolver, quando tomamos consciência da desertificação profunda que grassa no país e da quantidade de aldeias rodeadas por perímetros florestais nas quais não vive praticamente ninguém, ou onde quem vive não tem capacidade para assumir a limpeza dos seus terrenos. Já para não falar do eterno problema do cadastro florestal que, perante uma propriedade altamente fragmentada, vê inviabilizada a sua gestão.
Para ajudar a desconstruir muitos mitos sobre os fogos, vale ainda a pena ler a longa entrevista que o mesmo Henrique Pereira dos Santos deu ao Ponto SJ em 2018, um ano após a tragédia de Pedrógão Grande, em que antecipava um cenário semelhante para 2030. Sem dramatismos, e com algum realismo e soluções concretas, o especialista dizia, por exemplo, que, para minimizar o problema dos fogos, era mais importante comer cabrito do que plantar árvores.
Quando se fala de reflorestação, alterar a mancha florestal dominada pelo eucalipto e outras espécies inflamáveis, e substituí-las por espécies autóctones surge sempre como uma prioridade apontada.
Quando se fala de reflorestação, alterar a mancha florestal dominada pelo eucalipto e outras espécies inflamáveis, e substituí-las por espécies autóctones surge sempre como uma prioridade apontada. Disso nos fala Luísa Franco no artigo que publicamos em 2020, no qual colocava a questão se essa exigência de uma floresta diferente seria, afinal, uma utopia. A propósito deste tema, a cronista citava dois princípios da Doutrina Social da Igreja, por vezes de tão difícil aplicação: o princípio da função social da propriedade e o princípio da subsidiariedade. O tema é sensível e complexo, admitia Luísa Franco, mas é preciso conversar sobre ele.
Ainda sobre este tema dos povoamentos florestais, recuperamos um texto de Francisco Ferreira e Nuno Forner, da associação ambientalista Zero, em que se defendia que a floresta de hoje não pode ser a floresta de amanhã. Pode ser lido aqui.
Nesta ronda por artigos, propomos-lhe ainda que vá às origens do Ponto SJ e leia um dos textos mais antigos do nosso portal, escrito pelo P. Francisco Mota, sj com o sugestivo título Incêndios, batom e porcos. O jesuíta relembrava os 109 mortos do ano anterior (ainda hoje este número parece impossível, um escândalo absoluto que não pode ser repetido, escrevia Francisco Mota) , e alertava, ao mesmo tempo, para a tentação de os esquecer. Ou seja, a tentação de acreditar que aquelas condições – extraordinárias, de facto – não se iriam repetir. Contudo, já escrevia o jesuíta em 2018, e dando como exemplo anos anteriores também difíceis, embora não tão dramáticos (2010, 2013, 2016): “o passado recente veio demonstrar que a estupefação generalizada na altura dos incêndios foi oca e facilmente suprimida pelo passar do tempo. E que, como muitos previram, até agora, as consequências destes incêndios foram nulas: politicamente, economicamente, socialmente.”
Esta era a indignação de Francisco Mota em fevereiro de 2018, quatro meses depois de uma tragédia semelhante à de Pedrógão Grande se repetir em outubro, na zona centro do País. Também neste artigo, retirava o foco do problema do combate e do número de aviões e de carros de bombeiros e colocava a tónica noutro lado. O problema dos fogos está muito aquém e além da prevenção imediata e do combate, dizia, está na sustentabilidade do mundo rural.
Também neste artigo, retirava o foco do problema do combate e do número de aviões e de carros de bombeiros e colocava a tónica noutro lado. O problema dos fogos estava muito aquém e além da prevenção imediata e do combate: estava na sustentabilidade do mundo rural.
E é para aí que vamos nesta penúltima sugestão. Margarida Alvim, da Casa Velha, associação de espiritualidade e ecologia situada em Ourém, conhece bem o mundo rural e as suas dificuldades e quando vê atribuírem a uma população desertificada e empobrecida a única e exclusiva responsabilidade, por exemplo, pela má gestão e limpeza das florestas, vem em sua defesa. Neste artigo em que fala da necessidade de uma conversão ecológica, cita o Papa Francisco na sua Laudato Sí: “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”. E essa é uma tarefa de todos, não só dos que lá vivem.
Por último, uma sugestão de leitura diferente. Um testemunho de dois jornalistas do Observador em reportagem nos incêndios de Pedrógão, os primeiros a chegar àquela que ficou conhecida como a “estrada da morte”. O relato publicado em 2018 pretendeu trazer a dimensão mais humana do jornalismo, que tantas vezes também corre riscos para recolher as informações que nos permitem analisar e refletir sobre os problemas.
E agora uma nota mais pessoal, aproveitando a deixa da comunicação social e partindo para uma análise mais sociológica e, talvez, até psicológica. Também os media são uma expressão deste Portugal cheio de contradições. Um Portugal onde os jornalistas arriscam a vida para nos informar ao mesmo tempo que as televisões e as redes sociais nos inundam com chamas e momentos de aflição quando está mais do que provado que essas imagens provocam comportamentos miméticos.
Um Portugal onde as contradições estão enraizadas em todos nós. Somos o exemplo da resiliência e da generosidade, mas corremos para ajudar e louvar os bombeiros à mesma velocidade com que criticamos a sua atuação.
Escandalizamo-nos com a dimensão dos incêndios, mas o aumento e a gravidade dos fenómenos extremos está previsto em todos os cenários das alterações climáticas para o nosso país, e os nossos comportamentos individuais e coletivos diários parecem contribuir mais para o agravar deste problema do que para a sua mitigação. Estamos realmente conscientes de que os fogos serão assim, cada vez mais violentos e difíceis de controlar ou continuaremos a acreditar que mais meios aéreos resolverão o assunto? Estaremos disponíveis para suportar com os nossos impostos o custo do ordenamento e da gestão florestal? Estaremos disponíveis para financiar a vigilância que a nossa floresta exige se, ao que parece, há tantos incendiários dispostos a atear-lhe fogo? Na hora de exercer o nosso direito de voto, estaremos capazes de exigir aos partidos políticos que têm passado pelo Governo nas últimas décadas o cumprimento das promessas que fizeram no rescaldo das tragédias? E no momento de apoiar as populações que agora ficaram sem casas, seremos capazes de escrutinar a aplicação dos apoios públicos de forma a que não se repitam os abusos de 2017?
Este especial já vai longo e a lista de questões é infindável.. Se apenas uma puder ficar a ressoar no nosso coração e levar-nos a agir, já valeu a pena.
Fotografia 2: Rodrigo Cabrita
Fotografia 3: João Porfírio
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.