“Act of God”

Não, os incêndios não são um “act of God” e os responsáveis pelo padrão que eles assumam são muitos e variados, porque somos todos e cada um de nós (incluindo quando escolhemos quem nos governa, mas também quando escolhemos o que comer).

Não, os incêndios não são um “act of God” e os responsáveis pelo padrão que eles assumam são muitos e variados, porque somos todos e cada um de nós (incluindo quando escolhemos quem nos governa, mas também quando escolhemos o que comer).

O título deste artigo é uma expressão inglesa que designa, inclusivamente nos textos legais, um desastre natural que está para lá da capacidade de controlo humano e que, por isso, não pode resultar na responsabilização de ninguém pelos seus efeitos.

Vale a pena perder algum tempo a discutir em que medida os incêndios são uma espécie de “act of God”, estando por isso para lá da responsabilização individual pelos seus efeitos, ou são uma consequência de opções humanas, permitindo responsabilizações mais próximas ou mais distantes, mais concretas ou mais difusas.

Comecemos pelo começo.

O fogo é um processo natural endógeno, fundamental para a evolução dos sistemas naturais.

Classicamente, é arrumado junto dos outros três elementos naturais primordiais: a terra, o ar e a água.

O que distingue o fogo destes três elementos naturais é que o fogo é um processo químico e, por isso, não pode ser armazenado como os outros três elementos (tal como não conseguimos armazenar electricidade, que é movimento de electrões – uma vez parados, não existe electricidade).

Para que se desenvolva o processo é preciso que exista energia inicial para desencadear a ignição, e para o processo se manter é preciso que exista um comburente – oxigénio, de maneira geral – e um combustível.

Esta característica do fogo, a sua não existência se não houver uma ignição inicial, alimenta uma falácia muito frequente na discussão dos fogos florestais, a de que só existem fogos florestais porque há ignições, portanto podemos evitar os fogos florestais, evitando as ignições.

Esta característica do fogo, a sua não existência se não houver uma ignição inicial, alimenta uma falácia muito frequente na discussão dos fogos florestais, a de que só existem fogos florestais porque há ignições, portanto podemos evitar os fogos florestais, evitando as ignições.

É uma falácia, não porque o raciocínio não respeite as regras da lógica formal, mas porque não é possível evitar todas as ignições, quer porque existem ignições naturais, em especial os raios, quer porque o fogo é uma ferramenta que usamos muito mais frequentemente do que, sequer, admitimos.

Poder-se-ia admitir que ainda assim valeria a pena tentar, porque menos ignições é melhor que mais ignições.

É aqui, neste ponto, que começa a dificuldade na classificação dos incêndios como “Act of God” ou como responsabilidade de indivíduos, entre outras razões porque apenas 1% das ignições são responsáveis por 90% da área ardida, tornando difícil o estabelecimento de relações de causa/ efeito entre ignições e consequências de cada fogo.

É verdade que o fogo é um processo natural, é verdade que o crescimento das plantas é um processo natural e é verdade que o crescimento das plantas alimenta o fogo, pelo menos em muitas circunstâncias, sendo ainda verdade que o fogo “decompõe” as plantas nos elementos químicos que estão na base da vida, realimentando o crescimento das plantas.

Se formos muito, muito eficazes a evitar fogos e, ao mesmo tempo, não gerirmos o crescimento das plantas, o que estamos a fazer é potenciar os problemas causados pelo primeiro fogo que fugir do controlo, favorecendo a acumulação de combustíveis, sabendo nós que haverá sempre fogos que fogem do controlo.

Precisamos de saber mais para tentar compreender este “eterno retorno” de modo a tirar partido dele, potenciando os efeitos benéficos do fogo e limitando os seus efeitos negativos.

Todos nós compreendemos facilmente que para fritar precisamos de um fogo alto e para estufar precisamos de um fogo lento, isto é, para obter um determinado efeito queremos uma libertação de energia rápida, para obter outro efeito, preferimos uma libertação lenta de energia.

Nos fogos florestais passa-se exactamente o mesmo: fogos de elevada intensidade, que consomem combustíveis muito secos, sob ventos fortes, irradiam muita energia e, consequentemente, têm um determinado efeito no solo e na vegetação, fogos de baixa intensidade, em condições de temperatura e humidade controladas, têm efeitos completamente diferentes no solo e na vegetação porque irradiam muito menos energia.

De tal forma, que num fogo de Verão podem ser consumidos combustíveis até 10 cm de diâmetro, mais ou menos, mas num fogo controlado pretende-se que não haja consumo de materiais acima de 0,5 cm de diâmetro. Sendo a irradiação de energia durante o fogo completamente diferente, o calor nem sequer penetra no solo, no caso de um fogo controlado, não destruindo a matéria orgânica da sua camada superficial.

Como o que comanda o desenvolvimento de um fogo são os combustíveis finos – na frente de fogo, o que transmite o fogo tem menos de 0,6 cm de espessura, são ervas, raminhos, folhas, cascas, manta morta, etc. – isto significa que se num fogo no Inverno consumirmos estes combustíveis, eles não estão disponíveis no Verão, dificultando, ou mesmo impedindo, a progressão do fogo.

Como o que comanda o desenvolvimento de um fogo são os combustíveis finos – na frente de fogo, o que transmite o fogo tem menos de 0,6 cm de espessura, são ervas, raminhos, folhas, cascas, manta morta, etc. – isto significa que se num fogo no Inverno consumirmos estes combustíveis, eles não estão disponíveis no Verão, dificultando, ou mesmo impedindo, a progressão do fogo.

Também podemos usar pastoreio ou corte para fazer este controlo dos combustíveis finos – aliás, muitas vezes se compara o fogo a um herbívoro que vai escolhendo o que comer à medida que avança – o que significa que sendo o fogo um fenómeno natural, e sendo o crescimento das plantas outro fenómeno natural, nós temos ferramentas eficientes para lidar com estes dois processos, moldando-os aos nossos interesses.

Não podemos evitar o fogo, é um “act of God” no sentido alargado e não jurídico em que estou a usar a expressão, mas podemos escolher quando arde, onde arde, de que forma arde, sendo nós os responsáveis pelo padrão de fogo – medido pela frequência, intensidade e dimensão – que temos hoje nas nossas paisagens.

Provavelmente, arde hoje menos que há setenta ou oitenta anos, se usarmos como critério a área ardida anualmente.

Nessa altura a frequência de fogo era muito maior – o fogo de renovação de pastagens tem uma frequência à volta dos três a cinco anos, em muitos casos – mas a sua intensidade muito menor, por não haver acumulação de combustível, e era em mosaico, porque havia muito menos continuidade dos combustíveis.

Hoje temos uma frequência de fogo à volta dos 12 a 15 anos, mas como arde menos frequentemente e, ao mesmo tempo, deixámos de roçar mato para as camas do gado de modo a ter estrume, deixámos de cozinhar a lenha e passámos a comer abacate e salada de alface em vez de feijão com couves e cabrito em dias de festa, há uma enorme quantidade de combustível acumulado, com continuidade ao longo de áreas enormes.

Durante centenas de anos, a economia pagou a gestão destes combustíveis, quer através da agricultura – as terras marginais eram o alfobre de fertilidade das terras de pão – e do pastoreio. Durante um curto período, mesmo a exploração florestal trazia rendimento suficiente para pagar parte da gestão, mas hoje estas circunstâncias estão restritas às zonas de mais elevada produtividade de eucalipto, nas explorações tecnicamente mais evoluídas, ou onde as árvores convivem com outros usos do solo, como no montado.

Fora estas duas circunstâncias, são relativamente pontuais as áreas e actividades em que a economia paga a gestão destes combustíveis e nós continuamos a achar que são os donos dos terrenos que nos devem prestar o serviço de gestão do fogo, assumindo eles os custos de uma gestão que não dá retorno.

80% da área ardida é explicada pela meteorologia, e sempre que a meteorologia for extrema, como por estes dias, teremos dificuldades.

A opção de termos uma paisagem mais ou menos preparada para isso é nossa: ou criamos economias que paguem a gestão de combustíveis, ou teremos de criar mercados públicos que permitam às pessoas gerir os combustíveis das suas propriedades sem irem à falência.

O que não podemos esperar é que os proprietários façam a gestão necessária dos combustíveis finos, perdendo dinheiro.

Em todo este texto não escrevi uma linha sobre a relação de tudo isto com as alterações climáticas, como me pediram, e isso tem uma razão simples: quaisquer que sejam as condições futuras, teremos sempre de encontrar maneiras de gerir os combustíveis finos para conseguirmos conviver serenamente com o fogo.

Não, os incêndios não são um “act of God” e os responsáveis pelo padrão que eles assumem são muitos e variados, porque somos todos e cada um de nós (incluindo no momento em que escolhemos quem nos governa, evidentemente, mas também quando escolhemos o que comer, pelo menos três vezes por dia).

 

Ps- O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.