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Estamos todos mapeados no amor de Deus
1.A esperança existe.
Nascemos, vivemos e, talvez com um enorme espanto, constatamos que nada mobiliza tanto o ser humano como o dinamismo da esperança. Podemos prescindir de muita coisa, da esperança nunca. Como é bela, como pode ser bela a vida, quando viver é muito mais do que um existir, um “andar por aí”.
Saber que nascemos prometidos à esperança, que ninguém se criou a si mesmo, que somos recebidos e desejados, que a vida nos foi dada gratuitamente, que nos antecede, que é matricial dá-nos uma liberdade e auto-responsabilidade que para além de ser uma tarefa é sobretudo imerecido prazer. E cada um vai construindo o seu “mapa”, tomando consciência de si, construindo uma identidade, abrindo-se aos outros, assumindo-se a si mesmo como aprendiz de ser humano.
O espírito humano recusa o absurdo e busca um sentido que torne a vida apetecível.
A existência traz um “seguro” de vida, um sustentáculo: a esperança. Ao longo da vida, a esperança revela-se como uma árvore no jardim: verga, mas não quebra. A esperança em nada diminui o “trabalho” de cada dia e a responsabilidade com que cada um é chamado a assumir as suas escolhas, tornando-se senhor de si mesmo e corresponsável por um mundo que se quer sempre mais justo.
A vivência pessoal da esperança encontra um suporte social, quase incontestável, na “vox populi”: “a esperança é a última a morrer”, dando a cada pessoa um suporte social de ânimo, que permanece para além do seu próprio desejo e vontade, que se consolida como um dinamismo de quem descobre que a esperança, sobretudo a esperança do evangelho, mais do que as esperanças psicológicas, científicas, sociais ou culturais, é sempre mais do que episódio, talvez uma ousadia de quem aspira a mais e melhor e ponderando se existem ou não condições, não deixa de sonhar em “construir a sua casa sobre a rocha” (cf. Mt. 7, 24-27)
A esperança tornou-se para cada ser humano num ”alfa” e num “ómega”. Tem o poder de nos manter acordados, fazendo tudo para “não vivermos acomodados a este mundo”.
E imediatamente, em particular para os cristãos, levanta-se a questão: A que esperança nos sentimos chamados? Qual é a esperança que nos garante o futuro?
2. A esperança é o novo modo de acreditar
O mundo de hoje, que em relação à fé, continua, pelo menos em alguns ambientes intelectuais e sociais, a experimentar muitas dúvidas e preconceitos, justificados ou não, em relação à esperança, parece não sentir tantas resistências intelectuais, independentemente das “ razões” que levaram muitos dos seres humanos a sentirem-se mais “verdadeiros” e coerentes quando adotam uma atitude mais agnóstica do que crente (talvez porque receberam a fé como uma herança e nunca tenham assumido a fé como uma escolha), aderindo porventura ao ateísmo e à descrença, uma vez que a fé não é um “óbvio” da vida.
Para muitos, hoje, talvez seja mais “fácil” fazer o caminho da indiferença e da descrença que o caminho da fé. A evitar são os “juízos” que “qualificam” com preconceito crentes e não crentes.
No entanto, em relação à esperança, permanece um crédito de possibilidade que, em geral, se vai esboroando em relação à possibilidade da fé.
Será que a esperança é a nova expressão da fé adequada aos tempos que vivemos? Será que a esperança é a expressão de uma confiança, um modo novo de dizer e de acreditar, uma vez que ninguém quer viver sem um horizonte, sem um rumo, sem saber o que quer nem para onde vai?
Será que a esperança é a nova expressão da fé adequada aos tempos que vivemos? Será que a esperança é a expressão de uma confiança, um modo novo de dizer e de acreditar, uma vez que ninguém quer viver sem um horizonte, sem um rumo, sem saber o que quer nem para onde vai?
Que esperança importa ao ser humano, que esperança o pode “salvar” e “orientar” para que viva com sentido e transcendência e não se limite a fazer “voos rasos” e planos de “curto alcance”?
A esperança é a bússola que os nossos tempos precisam?
O cristianismo quer garantir a cada ser humano um valor pessoal “único” que não depende de nenhuma das suas qualidades ou talento.
Deus na sua original liberdade, revelada em Jesus, “proibiu-se” a si mesmo de ser um descrente, um desconfiado, deixando a cada pessoa, na autonomia da sua consciência, todas as possibilidades sem o obrigar a nada.
O cristianismo tem fé no ser humano, acredita que Deus tem mais fé no ser humano do que o ser humano em Deus, que acreditar é próprio de um Deus que ama. Segundo o cristianismo ninguém nasceu condenado a ser crente ou descrente, esperançado ou desistente.
Saber que sou amado, que Deus acredita em mim, que me senta na mesa do seu reino, que em cada ser humano joga a sua credibilidade e coerência, que pode contar comigo, que eu sou para ele uma esperança, coloca-me num patamar de confiança que encontra a expressão sacramental máxima na comunhão do seu corpo e sangue.
Saber que sou amado, que Deus acredita em mim, que me senta na mesa do seu reino, que em cada ser humano joga a sua credibilidade e coerência, que pode contar comigo, que eu sou para ele uma esperança, coloca-me num patamar de confiança que encontra a expressão sacramental máxima na comunhão do seu corpo e sangue.
Só Deus sabe quem é Deus, só Deus se pode definir a si mesmo e falar de si, só Deus é Deus. Não há metáfora que o defina. No entanto, Deus revelou-se plenamente em Jesus Cristo. Para uns, foi uma desilusão total, para outros uma enorme promessa. A muitos, em particular aos fariseus, ofereceu uma nova exegese a partir da misericórdia que os deixou em total rutura e alvoroço; a outros, pecadores e excluídos, abriu as portas do reino, partilhando a mesa e os sonhos do reino.
O seu reino não é um imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança. Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar com toda a sobriedade, dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor é para nós a garantia que existe aquilo que intuímos e, contudo, no íntimo, esperamos: viver a vida em amor, a vida sensata e verdadeira.
Abriu-nos o reino de Deus como uma “mãe” que não esgota nenhuma das possibilidades em relação ao futuro dos seus filhos, que nunca desiste de esperar o seu regresso quando o fascínio de um momento sedutor pode parecer mais arrebatador do que a fidelidade das coisas pequenas e o valor de cada momento.
O regresso de um filho ou a adesão de cada um a colaborar com Cristo na redenção do mundo é a concretização de uma esperança que faz vibrar Deus de alegria. Deus não tem pressa, espera, confia.
Jesus, do seu Natal à sua cruz, revela-nos um Deus “largo”, portador de um projeto que não se restringe a uma pequena metanoia, mas a um “deixar tudo” que se concretiza na proposta das Bem-Aventuranças (cf. Mt 5, 3- 12), talvez a mais ousada de todas as esperanças que Jesus colocou ao coração de cada um. Trata-se verdadeiramente de um processo pascal, de morte e ressurreição, de transfiguração.
Não é a ciência nem nenhuma outra realidade, por mais preciosa e oportuna que seja, que justifica a vida e redime o homem na esperança. A esperança – certeza de saber que se é “alguém” para “alguém”, de se ser único para Deus, de procurar viver o mandamento do amor, de saber regressar ao Pai, de curar das feridas dos mais desprotegidos, de descobrir o significado da cruz, mostra como o homem só pode ser redimido pelo amor. Redimido por amor? Por qual amor?
A esperança – certeza de saber que se é “alguém” para “alguém”, de se ser único para Deus, de procurar viver o mandamento do amor, de saber regressar ao Pai, de curar das feridas dos mais desprotegidos, de descobrir o significado da cruz, mostra como o homem só pode ser redimido pelo amor.
Quando alguém experimenta na sua vida um grande amor, conhece um momento de “redenção” que dá um sentido novo à sua vida. Mas, rapidamente se dará conta também de que o amor que lhe foi dado não resolve, por si só, o problema da sua vida. Não há amor que não seja frágil.
O ser humano busca o amor incondicionado que define Deus, precisa daquela certeza que o faz exclamar: “Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor“ (cf. Rom 8,38-39).
3. Esperança “cresce” e “aparece”. Quando amadurece?
Muitas vezes, em relação ao amor e em particular ao primeiro amor, vivemos tudo de uma forma tão exagerada, doentia, com uma tal intensidade, que corremos o perigo de ficar “cegos” e de absolutizar o que nenhum amor humano nos pode assegurar.
Sem transcendência, o amor que por si só se espera sempre digno, pode não passar de um episódio quando poderia ser uma história de vida. Que maravilha saber que o Amor de Deus, revelado em Jesus, não só não é concorrencial dos nossos amores como a garantia do seu futuro.
Podemos dizer o mesmo, sem sermos ingénuos, em relação à esperança?
Nunca ouvi a ninguém dizer mal da esperança e dos esperançados, mesmo quando a esperança não é levada muito a sério, confundindo-a com a sorte ou azar, imaginando que o “tempo” ou a “magia” lhe trouxessem, sem mais, o expectável.
Quer no acreditar, quer no esperar, encontramos pelo menos três “tipos” de pessoas, sabendo que o que todos procuram alcançar é a felicidade. Há os insatisfeitos, sempre “aborrecidos”, para quem a felicidade é uma miragem; há os “lutadores” para quem a felicidade é uma tarefa, um equilíbrio de quem aprendeu a viver bem consigo, pacificado com a pessoa que é, com o que pode e tem ou não tem, sabe viver com a realidade; e, finalmente há os que na vida se veem como “peregrinos”, despojados, para quem a vida e felicidade é, sobretudo, um dom. Experimentam a gratuidade e não precisam de muito para serem felizes.
Os verdadeiros peregrinos sabem que não é possível a ninguém ser feliz sozinho.
Finalmente há os que na vida se veem como “peregrinos”, despojados, para quem a vida e felicidade é, sobretudo, um dom. Experimentam a gratuidade e não precisam de muito para serem felizes. Os verdadeiros peregrinos sabem que não é possível a ninguém ser feliz sozinho.
4. A esperança é felizmente pobre
Encontramos dois textos referenciais, separados no tempo, de S. Agostinho e Charles Péguy, que na sua semelhança e acutilância, ajudam-nos a entender a esperança.
Independentemente do tempo histórico em que foram escritos, num e noutro, vemos como a esperança foi o “motor interior” que sem cessar, projetava sonhos de dias melhores, utopias viáveis, possibilidades realistas, caminhos ainda não percorridos que podem significar que nenhum ser humano vive num beco sem saída.
O ser humano é, para Santo Agostinho, habitado por três virtudes: a fé, o amor e a esperança. Se perdemos a fé, nem por isso morremos. Se fracassamos no amor, sempre podemos arranjar outro. O que não podemos é perder a esperança. Pois a alternativa à esperança é a morte, por absoluta falta de sentido de viver”.
Também o poeta francês, Charles Péguy, situa a esperança no conjunto das três virtudes teologais – fé, esperança e caridade – como se fossem três irmãs que caminham juntas:
«A pequena Esperança avança no meio de suas duas irmãs grandes
E não se nota sequer. (…).
Ela, a pequenita, é que arrasta tudo.
Porque a Fé não vê senão o que é
E ela vê aquilo que será.
A Caridade não ama senão aquilo que é
E ela, sim ela, ama aquilo que será. (…).
É ela que faz caminhar as outras duas
Que puxa por elas.
E que nos faz caminhar a todos»
(cf. O pórtico do mistério da segunda virtude, Milão 1978, 17-19).
A novidade destes dois olhares comuns, embora separados no tempo, está no facto de a esperança surpreender o próprio Deus.
Tal como o pequenino “grão de mostarda”, também a esperança “praticada” e não apenas “desejada”, lançada à terra cresce como uma árvore de vida consistente.
Se na experiência da fé, muitos se assumem como “crentes não praticantes” é mais raro encontrar “esperançados não praticantes”, talvez porque todos demos por adquirido o exercício da esperança.
Conscientes dos “apóstolos” do bem que trabalham calados nos bastidores do mundo e em tantas das suas instituições, formais e não formais, nas famílias, nas escolas, nos hospitais, na política, na cultura, desenvolvimento e erudição, na promoção da justiça, arriscando muitas vezes a própria vida, de todos aqueles que tiram o pão da boca para partilhar com os que nada têm, creio ser legítimo, mesmo assim, perguntarmo-nos como estaria o mundo e como seríamos enquanto seres humanos, se fossemos todos mais “praticantes” da esperança?
De facto, a esperança não pode ser arrogante. A verdadeira esperança só pode ser humilde, porque não é um direito, mas um dom ou uma conquista.
Como poderíamos viver sem esperança? Como seriam os nossos dias?
5. A ninguém interessa uma esperança qualquer.
É impossível, hoje, fazer qualquer consideração sobre a esperança, sem contar com o contributo de Bento XVI, que na sua brilhante encíclica “Spes Salve”, ofereceu à Igreja e ao mundo, um “estudo” bíblico e cultural incontornável para que ninguém duvide que “fomos salvos na esperança” (cf. Rom, 8, 24).
Bento XVI, apoiado em inúmeras passagens bíblicas, em particular nas cartas de S. Paulo, apresenta-nos a esperança como um ato concreto de fé, fundamento para pensar que a afinidade entre a fé e a esperança é tão grande que é possível intercambiar os termos “fé” e “esperança”, uma vez que, como afirma a carta de S. Paulo aos Hebreus, a “plenitude da fé” está ligada de forma estreita “à imutável profissão da esperança” (cf. Heb. 10, 22).
Bento XVI, apoiado em inúmeras passagens bíblicas, em particular nas cartas de S. Paulo, apresenta-nos a esperança como um ato concreto de fé, fundamento para pensar que a afinidade entre a fé e a esperança é tão grande que é possível intercambiar os termos “fé” e “esperança”, uma vez que, como afirma a carta de S. Paulo aos Hebreus, a “plenitude da fé” está ligada de forma estreita “à imutável profissão da esperança” (cf. Heb. 10, 22).
Esta afinidade impede a fé e a esperança de se fecharem no âmbito da virtude ou do emocional, obrigando-as à “prova” do contexto racional que impele a “estarmos prontos a encontrar as razões da esperança”.
Bento XVI destaca as palavras que S. Paulo escreve aos Efésios recordando-lhes que “antes do encontro com Cristo estavam “sem esperança e sem Deus no mundo” (cf. Ef. 2, 12). Tinham muitos deuses, uma religião, experimentavam uma pluralidade espiritual esotérica de movimentos espirituais “não formais”, viviam arrastados por um desejo de “harmonia” mais do que por uma esperança “sólida”. E pergunta-se como é possível terem tantos deuses, sem ter Deus nenhum?
Neste sentido, é verdade que quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida (cf. Ef 2,12). A verdadeira e grande esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, só pode ser Deus – o Deus que nos amou, e ama ainda agora, “até à plena consumação”(cf. Jo 13,1 e 19,30).
Todas estas referências bíblicas querem garantir-nos a certeza que em Deus todos temos um horizonte e um futuro. Portanto, não é em vão que vivemos e esperamos.
Não estamos perdidos no universo, não nascemos condenados, não vivemos no pânico de uma fatalidade divina que nos impede de ser livres e responsáveis e viver em fraternidade. Não terminaremos no vazio existencial, mas num horizonte de sentido, onde mesmo o que pode ser absurdo ou não fazer sentido nenhum no momento, não fica fora de uma ”leitura crítica” que vai muito para além do momento ou da resignação do “não há nada a fazer”. E mesmo para os que não receberam o dom da fé, os que por alguma razão se desencantaram com a vida, os que foram magoados ou ignorados pela Igreja, os que não encontraram uma comunidade humana de inserção ou uma comunidade de fé saudável, os que preferem fazer à sua maneira o seu próprio caminho, saibam que não são menos amados por Deus nem Deus lhes assegura um futuro de segunda categoria.
A fé cristã, que pela sua própria natureza não vive sem afetos nem sem vontade, se ficar privada de “razões” corre o risco de não passar de uma vivência devocional e não acolher o que Deus nos oferece na plenitude sua encarnação e redenção. A primeira consequência positiva é o facto do cristianismo ser ainda mais do uma “boa notícia” de santidade e salvação, poder ser um dinamismo capaz de transformar a realidade em reino, de converter as estruturas, de inspirar culturas, humanizar o mundo, oferecer um “húmus” de bondade que a partir do novo mandamento do amor configura, a partir de uma ética de justiça e bondade, seres humanos criadores de cidadania, pessoas corresponsáveis pelo bem comum, porque não é possível ser amigo de Deus sem ser amigo do mundo.
Usando as palavras de Bento XVI nesta encíclica, “a mensagem cristã não será só informativa, mas performativa (cf. Spes Salvi, 2)
6. A fé das coisas que se esperam
S. Paulo não deixa de nos surpreender quando na Carta aos Hebreus afirma convictamente que “a fé é vista como a ‘substância’ das coisas que se “esperam”, a “prova” das coisas que não se “veem” (cf. Heb,11.1) um “gérmen”, um “hábito”, uma predisposição constante do espírito, em virtude do qual a vida eterna tem início em nós e a razão é levada a consentir nas realidades que não se veem.
Sob o ponto de vista “prático”, a esperança parece ser um fruto da fé, vivida como uma experiência de perseverança, de constância, de espírito de sacrifício, de “não esperar sentado” para que “as coisas prometidas” aconteçam. Atrai o futuro para dentro do presente, de modo que não ficamos apenas no “talvez” ou no “ainda não”.
Sob o ponto de vista “prático”, a esperança parece ser um fruto da fé, vivida como uma experiência de perseverança, de constância, de espírito de sacrifício, de “não esperar sentado” para que “as coisas prometidas” aconteçam. Atrai o futuro para dentro do presente, de modo que não ficamos apenas no “talvez” ou no “ainda não”.
Como diz Bento XVI, “o facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras” (cf. Spes Salvi, 7).
A fé confere à esperança um novo fundamento quando uma pessoa decide dar a vida pelo outro, substituí-la no seu martírio, uma perspetiva que só na oblação mártir de Cristo ou no amor humano mais puro se podem entender.
Mas não é só no martírio… Esta liberdade foi-se manifestando ao longo do tempo, desde as grandes renúncias dos monges da antiguidade até a todas as “Teresas de Calcutá” do nosso tempo que não desistem de ser um pouco de “céu” na vida dos desesperados.
Como é difícil, hoje para quem tem tudo e pode tudo, aceitar o mínimo limite, o fracasso, a morte.
Queremos viver? Viver como? Viver quanto? Viver em que circunstâncias e limites? Viver com um projeto definido segundo as suas convicções religiosas, éticas, sociais? Preferimos viver muito, viver intensamente, viver o “agora”?
Alguém quer viver eternamente? Viver eternamente parece ser mais uma condenação do que um dom.
Não é esse o entendimento cristão. A vida eterna não é um “prolongamento” da vida terrena, nem sequer do seu melhor; é uma vida nova, plena em Cristo, uma “ressurreição”, nunca uma reencarnação ou uma reanimação.
Obviamente, há um paradoxo na nossa atitude. Por um lado, ninguém quer morrer, sobretudo quem nos ama, não quer que morramos; por outro lado, também ninguém deseja continuar a existir ilimitadamente. Todos queremos uma vida “abençoada”, “redimida”, uma vida feliz.
Decisivo para cada um é saber que foi salvo gratuitamente e redimido na cruz de Cristo e, que, portanto, “tendo sido justificado pela fé pode viver em paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, pode gloriar-se nas suas tribulações, ao saber que a tribulação gera a perseverança; a perseverança gera a firmeza; a firmeza gera a esperança. Ora, a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi concedido”. (cf. Rom, 5.1-5).
Movidos pela certeza da esperança de Cristo que nos redimiu, vivemos o tempo “por dentro das coisas”, sem pressa, “em demora e presença” (Cf. Viagem, de Sofia Mello Breyner), felizes e comungados por Cristo, anunciamos ao mundo a sua morte e proclamamos a sua ressurreição.
Voz de Francisco Malva
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.