Penitência forçada. Confinamento pascal

A quaresma deste ano pode ser tempo particularmente propício para tirar proveito da penitência imposta pela pandemia e pelo longo estado de confinamento em que nos encontramos.

A quaresma deste ano pode ser tempo particularmente propício para tirar proveito da penitência imposta pela pandemia e pelo longo estado de confinamento em que nos encontramos.

“Mostra-lhes a coisa simples […] perto da mão e do olhar”. É de R. M. Rilke a recomendação. Encontrei-a citada por J. M. Esquirol, em A resistência íntima. Ensaio de uma filosofia da proximidade (Edições 70). O filósofo catalão comenta a propósito: «Esta é a chave: “Mostra-lhes o simples” […]. Evitemos procurar sempre o extraordinário, admiremos o simples e o lhano e aprendamos a apreciá-lo porque, de um certo ponto de vista, é o que há de mais sublime. Eis aí a lição […]. Apropriar-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, “salva-nos”». É este o resistente, o que «resiste ao domínio e à vitória do egoísmo, à indiferença, ao império da atualidade e à cegueira do destino, à retórica sem palavras, ao absurdo, ao mal e à injustiça». Em tempos tão extraordinários como os que vivemos, de lamento pelo que de inesperado nos tem trazido e pelo que de adquirido nos tem tirado, atender e cuidar do quotidiano e do simples que está “perto da mão e do olhar” será ato de resistência íntima ao vazio e ao estéril, de contacto e de adesão ao possível e ao fecundo. Para não deixarmos de ser intérpretes da graça da vida, bendizentes do bem possível.

A vida é bela. É belíssima. E não é preciso muito para o saber. Saborear um pouco de pão molhado em azeite bastaria como testemunho da sua bondade radical, sempre nova. Mas a vida também é tão difícil. Há momentos e circunstâncias em que o pão se faz amargo. Os limites que nos fazem insinuam desconfianças, despertam ciúmes, incitam a agressões e transgressões. Aí, quando o custo encobre a bênção que a vida é, tendemos a afundar-nos, como se não houvesse mais nada, ou a evadirmo-nos, fazendo de conta, ou a agredir como forma de proteção. Reaprender a professar a confiança elementar na vida, bendizendo a sua graça e atravessando com esperança o seu custo, sem rendição nem alienação, torna-se um dever de humanidade. E um dever de crentes. Sim, porque a fé cristã não é menos do que ato elementar de confiança na vida, no seu sabor, na sua bondade, nas suas promessas. A profissão de fé em Deus está muito próxima da declaração de amor à vida.

Sim, porque a fé cristã não é menos do que ato elementar de confiança na vida, no seu sabor, na sua bondade, nas suas promessas. A profissão de fé em Deus está muito próxima da declaração de amor à vida.

A penitência antecipou as cinzas

Tudo isto no quotidiano e no simples. Perto da mão e do olhar. Quero parar aqui. Precisamente, por estarmos a iniciar a quaresma, tempo extraordinário que interrompe o curso ordinário do calendário litúrgico para preparar a vida individual e comunitária para a festa maior da Páscoa. Este ano, porém, tudo é extraordinário. Convém tomar nota, para que as palavras e os gestos litúrgicos não passem ao lado indiferentes, nem sobrevoem distraídos a realidade das vidas reais. Este ano, não deixaremos o ordinário para entrar no extraordinário. O extraordinário tem sido o nosso ordinário. Um novo normal, diz-se. Não interromperemos nada. Já andamos como que suspensos. A “quaresma religiosa” chega, pois, quando já estamos saturados de uma longa e rigorosa “quarentena civil”. Por isso, aquela não deveria chegar caída do céu, como se esta não estivesse a acontecer. O nosso quotidiano está transformado em estado de exceção que é verdadeiramente penitencial. Não será na quarta-feira de cinzas que daremos início a práticas penitenciais, passados os supostos excessos do carnaval – se andamos de máscara não é por nos termos mascarado. Há quase um ano que estamos a fazer penitência, de forma tão rigorosa como possivelmente nunca fizemos em nenhuma quaresma passada. Por isso, mais penitências poderiam soar a voluntarismo alienado e a pastiche espiritual. Há muito que nos estamos a privar de encontros à mesa. Cancelamos festas e celebrações. Não nos abraçamos nem beijamos. Passámos a vestir roupa de trazer por casa. Passeamos por tempo limitado. Andamos de luto, por pessoas próximas e por tantíssimas outras que não conhecemos. As privações e renúncias têm sido e continuam a ser muitíssimas e variadas. O nosso corpo já expõe visivelmente marcas de cansaço e o espírito de saturação.

A “quaresma religiosa” chega, pois, quando já estamos saturados de uma longa e rigorosa “quarentena civil”. Por isso, aquela não deveria chegar caída do céu, como se esta não estivesse a acontecer.

Há um ano que a pandemia tem imposto as cinzas da penitência, tanto a crentes como a não crentes, sem distinção. Não como pitada que assinala simbolicamente a fronte ou a cabeça, mas como aspersão completa que cobre realmente o corpo inteiro. Todo o corpo que cada um de nós é: pele e órgãos, cabeça e vísceras, membros e cada um dos sentidos, e as múltiplas e variadas relações que estabelece. Mas igualmente o corpo que somos em conjunto. Vamos todos na mesma barca. Estamos todos a participar do mesmo rito. Há muito que os nossos corpos e casas, as nossas cidades e igrejas, os nossos ritmos quotidianos, ocupações e relações ficaram mais conscientes de estarem envolvidas pelas cinzas da fragilidade e da insegurança, da inibição do encontro e da festa, da ansiedade e da apatia, do isolamento e do luto. Crianças e crescidos, solteiros e casados, robustos e franzinos, vemos, ouvimos, tocamos, sentimos, todos, que somos pó. Ontem estávamos bem. Amanhã poderemos estar doentes. Assim, quando a comunidade cristã vestir de roxo, há muito que a vida de todos nós está revestida destes tons. Quando a liturgia impuser as cinzas sobre a cabeça, há muito que o nosso corpo individual e coletivo está coberto delas. Quando formos encorajados à penitência, há muito que já suspiramos pelo seu fim. Por isso, também na liturgia, precisaremos de discursos que reconheçam significado à penitência que estamos a fazer e de práticas que lhe deem um lugar justo.

Exercícios de reparação

Como começar, então, a quaresma sem fazer de conta que não é assim que nos encontramos? De que modo poderá esta quaresma-em-quarentena ser caminho percorrido com os pés na terra e tornar-se exercício litúrgico e espiritual com sentido e com fruto? Que desejos cultivar? A que práticas sensatas nos poderemos dispor, quando a penitência já está garantida. Observo três. Três exercícios de reparação. Reparação, de olhar com atenção. Reparação, de restauro. Precisamente, reparar no quotidiano e no simples da vida, perto da mão e do olhar, tal como hoje se apresenta a cada um, será um ato de resistência verdadeiramente espiritual e um exercício pascal de reparação da existência. Para preparar a Páscoa, festa dos sentidos e do sentido nos caminhos, carreiros e encruzilhadas da vida de todos os dias.

Reparar no quotidiano e no simples da vida, perto da mão e do olhar, tal como hoje se apresenta a cada um, será um ato de resistência verdadeiramente espiritual e um exercício pascal de reparação da existência.

Reparar nos/os sentidos

Olhar com mais atenção para entrever. Mesmo estando em casa, haverá sempre uma janela que dá para fora. Quanta vida acontece diante dos nossos olhos. Apesar de tudo. Quanta vida se escreve por entre as linhas que nos cosem, mesmo as mais curvas e com mais nós. E nas linhas de livros, de quadros, de esculturas, de danças, de ofícios, de cultivo da terra.

Escutar com mais vagar, a começar por aqueles com quem falamos diariamente – a mulher, o marido, os filhos, o colega de trabalho – para pressentir o sentido no dito e do não dito de tantas palavras e de outros tantos silêncios. E da música, claro. Há quem tenha ficado grávido só pela escuta. A escuta é boa terra. É capaz de nos dar lágrimas.

Tocar com mais cuidado, para reconhecer texturas, rugosidades, contornos, temperaturas. Sobretudo, para ser tocado, porque, sempre que tocamos bem, somos tocados. O contacto é uma questão de tato. E quanto precisamos da inteligência do tato, para não ficarmos distantes e insensíveis, em tempos em que os contactos físicos são arriscados e, por isso, inibidos e mortificados.

Saborear, com o paladar e o olfato, para saber a graça da vida e cultivar as suas promessas. Não precisaremos de alimentos muito elaborados nem de fragâncias exóticas. As coisas e os momentos simples do quotidiano são suficientemente saborosos e perfumados para saberem bem. Para nos fazerem apreciar o bem. Será uma questão de atenção. E de tempo. Porque as coisas e os momentos pedem tempo para dizer o que têm a dizer. E nós precisamos de tempo para as perscrutar e, reconhecidos, acolher e saborear.

Reparar no/o bem possível

Precisamos também de sonhos largos, de grandes desejos. É bom que nos movamos e impliquemos na procura do bem maior. Sabe o povo, porém, que o ótimo é inimigo do bom. E os cristãos também sabem que Deus se identifica mais com o pequeno do que com o grande, mais com o mínimo do que com o máximo.

Sabendo isto, também no que diz respeito aos nossos desejos e expectativas sobre nós próprios, outras pessoas e acontecimentos, o tempo que vivemos pode ser particularmente favorável. Não para renunciar a buscar, a encontrar e a escolher o bem maior, mas para procurar reconhecer com benevolência e alegrar-se genuinamente com o bem possível. Na vida pessoal e na vida familiar, na vida comunitária e na social, na vida da Igreja. Aqui, agora, nestas circunstâncias, com estas pessoas. Entre o tudo inalcançável e o nada da desistência, entre o “agora é que vai ser” e o “já vi, sei que não vai dar nada”, haverá tanto bem, ainda assim, possível. Não se trata de procurar prémios de consolação, quando não se alcança a vitória. Não será falta de exigência ou nivelamento por baixo. Será ainda menos uma qualquer estratégia para contornar o custo das coisas ou para iludir a evidência de que nem sempre as coisas acontecem como se desejaria e seria bom que acontecessem. Trata-se, sim, de se exercitar no ofício de habitar o entre-tanto, de se compreender limitado em processo entre o “já” e o “ainda não”. Com gratidão pelo que existe, mesmo que fosse pouco ou diferente do desejável. Com a benevolência da medida larga para com o que ainda está em falta ou para o que já não parece possível. Com a humildade da aceitação e a paciência da espera. A colheita final, com a qual se saberá verdadeiramente o que é trigo e o que é joio, será de outra ordem. A nós, cabe cultivar com generosidade e cuidado o campo. E alegrar-nos nele.

Trata-se, sim, de se exercitar no ofício de habitar o entre-tanto, de se compreender limitado em processo entre o “já” e o “ainda não”. Com gratidão pelo que existe, mesmo que fosse pouco ou diferente do desejável.

Reparar no/o processo que somos

Somos processo lento de reelaboração do que somos. A vida e a fé são processo. Não são lugares parados que se ocupam e se repetem, acabados. São itinerários abertos que se percorrem. Por isso, têm sempre  algo de imprevisível. Implicam o corpo, a mente, o espírito. E, mais uma vez, pedem tempo. Ora, o tempo presente, que nos ameaça o corpo, que nos afeta a memória, limita a liberdade e fere pelo luto, faz-se particularmente favorável para uma experiência viva de misericórdia e de perdão, começando, precisamente, por nos orientar a atenção para o custo e o impacto vital desta pandemia em nós.

Ser perdoado e perdoar está no coração da fé cristã. Quando associado, porém, à confissão sacramental, é fácil que se empobreça na compreensão e na prática mecânica e automática da confissão-absolvição, sem processo de reelaboração pessoal da dor sofrida e da liberdade ferida (talvez ajude mais a compreender o pecado como ferida do que como mancha; a mancha lava-se rápido; a ferida cura-se, sendo que curar uma ferida implica sempre cuidado, processo e tempo). Na verdade, o sacramento da penitência fica pobre – para muitos, talvez, infantil e sem relevância vital, motivo pelo qual o abandonam – quando não se compreende como sacramento de cura que é, juntamente com o sacramento da unção dos doentes, para os grandes momentos de crise. A unção dos doentes realiza a graça na crise de fé e de vida sem culpa, causada por doença grave. A penitência realiza a graça na crise de fé e de vida causada por escolhas livres. Em rigor, o específico deste sacramento não é o de anunciar o perdão, absolvendo o pecado. Este elemento partilha-o com o batismo e a eucaristia, que são, com o crisma, sacramentos de iniciação cristã. O específico seu, anunciando o perdão, absolvendo o pecado, é o processo penitencial de resposta ao perdão recebido e o acompanhamento do trabalho sobre as feridas e as consequências das faltas a que inicia. Porque o pecado é absolvido, mas as suas marcas perduram no tempo, pedindo um caminho penitencial (percebemos a possível irrelevância vital de receber como penitência do sacramento, por exemplo, três Avé-Marias: serão penitência que se cumpre, mas não caminho penitencial que se percorre). Se difamei uma pessoa, sou perdoado do pecado da difamação. Mas compreenderemos bem o trabalho que ficará por fazer sobre as marcas dessa falta grave em mim, em quem difamei e em tantos outros (trata-se da “pena temporal”, em linguagem sacramental). Ora, esse processo de trabalho sobre si mesmo poderá ser bem árduo e longo. Sim, o sacramento da penitência fá-lo partir da paz e da alegria geradas pelo perdão recebido, mas como processo laborioso de trabalho (S. Tomás de Aquino chamou-lhe “batismo laborioso”) sobre a memória magoada, de reelaboração da liberdade ferida, de reestruturação do conjunto da vida que perdera graça.

Dito isto, a quaresma deste ano pode ser tempo particularmente propício para tirar proveito da penitência imposta pela pandemia e pelo longo estado de confinamento em que nos encontramos. Considerando o sacramento da penitência, poder-se-á começar, precisamente, pelas últimas etapas. Quero dizer, pela reelaboração existencial e espiritual de lutos e de feridas da memória, da liberdade e do desejo que a pandemia nos tem infligido. Reparando no/o que temos em mãos – feridas, dor, angústias, solidões, luto, mortificações, renúncias – quem sabe se, tocados pelo amor de Deus que refaz em nós a confiança na vida, não chegaremos à graça da contrição interior e à confissão honesta dos desacertos da liberdade que poderemos reconhecer na difícil gestão de tanta matéria. A ser assim, a Páscoa do Senhor passará por outro caminho existencial, outro envolvimento do corpo, outra inteligência das coisas, outro calor do coração.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.