Padre Cruz – O Santo do Povo – Histórias de uma biografia

Ana Catarina André e Sara Capelo são autoras de uma obra sobre o Padre Cruz que será apresentada dia 17. Uma biografia do jesuíta que se encontra em processo de canonização e que muitos já apelidavam de santo ainda em vida.

Ana Catarina André e Sara Capelo são autoras de uma obra sobre o Padre Cruz que será apresentada dia 17. Uma biografia do jesuíta que se encontra em processo de canonização e que muitos já apelidavam de santo ainda em vida.

Entre os casarões da frente ribeirinha de Alcochete, a casa de dois andares onde nasceu Francisco Rodrigues da Cruz é talvez uma das mais modestas. Ali ao lado, no extenso Rossio com vista para um Tejo largo de tons acinzentados, viveu o Marquês de Soydos, um apaixonado da sua mãe, Catarina. Também perto, a casa do Barão de Samora Correia, hoje transformada num lar, e a Santa Casa da Misericórdia, onde da rua se vê um busto do próprio Padre Cruz. A memória dos primeiros anos de Francisco, nascido em 1859 e a quem desde muito cedo chamavam padre, passou por todas estas ruas – especialmente pelas traseiras da casa de dois andares, onde corria e caçava passarinhos. A habitação, que visitámos mais de 70 anos depois da sua morte, mantém-se na família, agora já nas mãos de sobrinhos-bisnetos e trinetos de Francisco Rodrigues da Cruz. Durante anos, mesmo após a morte do Padre Cruz, em 1948, muitos devotos foram até ali com a esperança de encontrarem algum conforto no espaço onde viveu. Sobretudo nos anos da Guerra Colonial, chegavam pedidos de familiares de militares portugueses que estavam no Ultramar.

No interior, encontram-se fotografias do Ti’Padre, como todos lhe chamam por insistência do próprio. Uma dele ainda jovem, outra quando era estudante de Teologia em Coimbra, nos anos de 1920, outra com o célebre Padre Crawley, e uma quarta já idoso com o seu estimado breviário debaixo do braço. É como se muito do que já tínhamos lido sobre o Padre Cruz, nos passasse, em poucos minutos, diante dos olhos. Mais: ali a sua humanidade parecia tornar-se ainda evidente, com as imagens e testemunhos que fomos vendo e ouvindo.

Entrámos por bondade dos sobrinhos-bisnetos João da Cruz Alves e Maria da Graça Santinho. É ela quem que nos explica que as histórias que foi recolhendo do Ti’Padre soube-as pela “velhinha” tia Lucinda, sobrinha do Padre Cruz, que com ele conviveu. No rés-do-chão, por onde começámos a visita, ficava a ala dos empregados, mas era também ali, num desafogado quarto com uma janela para o Rossio e o Tejo, que ficava o Ti’Padre sempre que visitava a sua irmã dileta, Isabel.  Outros bens físicos que pertenceram ao Padre Cruz e são muito estimados pela família, como a cama, a cadeira, a cómoda, o tapete e o imponente oratório com secretária – que herdou dos pais – foram, entretanto, transferidos para um quarto do primeiro andar, tal como um quadro da Sagrada Família, e outros dois que representam o Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Sobre a cómoda está uma imagem da Nossa Senhora de Fátima. Este é ainda um espaço de recolhimento e culto familiar. Quando o assunto é grave, é ali que alguns descendentes dos Cruz ainda acorrem. Acende-se uma lamparina de azeite, que está sobre a mesa de cabeceira, e faz-se «uma chamadinha ao Ti’Padre». É impressionante como aquele homem que nasceu em meados do século XIX continua tão presente.

Não muito longe dali, numa outra casa da família onde o Padre Cruz também ficava (escolhia-a pela proximidade à Igreja-Matriz), João da Cruz Alves preserva a biblioteca do Ti’Padre num armário-estante, protegido por um vidro. Manuseamos alguns destes livros, ainda com anotações dos tempos de Coimbra. Encontramos cartas enviadas por uma sobrinha que se tornou freira, a memória mais pessoal do padre que, em breve, poderá ser santo.

Outra parte do espólio que, graças à pesquisa para o livro Padre Cruz – o Santo do Povo (publicado agora pela Oficina do Livro), nos foi possível consultar está guardado na Causa do Padre Cruz, sedeado num hotel da rua da Madalena, em Lisboa, também ele com o certeiro nome de Memória. Ana Braz é a guardiã, desde 1998, do acervo escrito de e sobre Francisco Rodrigues da Cruz, que começou a ser recolhido pouco depois da morte, com o objetivo da sua beatificação e canonização. Uma intenção que em breve pode tornar-se realidade.

Um anúncio de 1949, publicado nas Graças do Padre Cruz, um boletim organizado pela Causa, trazia este «Aviso importante»: «Sendo preciso ir preparando desde já o Processo Informativo acerca da Santidade e Virtudes do Padre Cruz, avisa-se PARTICULARMENTE a todos os que possuírem escritos de qualquer natureza (cartas, etc.) do Servo de Deus, que os enviem.» Naquelas salas, são muitos os dossiês que preservam postalinhos enviados pelo próprio, cartas recebidas de amigos e devotos e os testemunhos de centenas de pessoas que com ele se cruzaram. Ali, descobrimos também uma reprodução do passe que lhe permitia viajar nos caminhos-de-ferro por todo o país sem pagar.  Há pagelas e fotografias do Padre Cruz um pouco por todo o lado.

Durante vários meses, frequentámos a Causa de Beatificação e Canonização do Padre Cruz, lendo e analisando o espólio que ali vai sendo guardado. Deparámo-nos com dezenas de histórias que retratam a sua bondade e despojamento, muitas delas relatadas por familiares, amigos e devotos. Num dos testemunhos assinado por António Pereira Coutinho, um velho amigo dos Cruz, contam-se pormenores que elucidam bem o seu modo de vida, como daquela vez em que, estando no Cais do Sodré, em Lisboa, precisou de ir a Belém e acabou por ir a pé. Deu tudo o tinha na algibeira a um desconhecido que lhe pediu uma esmola e ficou sem dinheiro para o bilhete de comboio – nessa altura, não tinha ainda passe.

Há também relatos de pessoas que mudaram de vida quando o conheceram. Por seu intermédio, converteram-se ao catolicismo o conselheiro monárquico Luís de Magalhães, o filósofo republicano Leonar­do Coimbra e o sindicalista Manuel Ribeiro. Mas muitos outros, anónimos, foram tocados da mesma forma pelo sacerdote. Basta folhear os boletins das Graças do Padre Cruz para conhecer muitas dessas histórias, como a de um médico que o socorreu a caminho de Fátima, na sequência de um pequeno acidente, e que, depois de anos afastado da Igreja, pediu para se confessar.

Àquele edifício situado na rua da Madalena, que curiosamente fica situado em frente ao antigo palácio das Caldas Machado, onde o Padre Cruz pernoitava tantas vezes, continuam ainda hoje a chegar testemunhos de homens e mulheres que rogaram a intercessão do Padre Cruz e viram os seus pedidos atendidos. Em 2023, contou-nos Ana Braz, ainda há cartas de muitos luso-descendentes, provenientes sobretudo de França, Estados Unidos e Canadá. Há também quem escreva a pedir relíquias, num ato de devoção para com este clérigo que sempre esteve próximo dos doentes, dos pobres e dos presos, sem nunca esquecer os que, tendo mais posses, precisavam também de salvar a sua alma. Todos – e são milhares em Portugal e no estrangeiro – reconhecem já a santidade deste homem, o “Santo do Povo”, como lhe chamou o Diário de Notícias.

 

BIOGRAFIA

Lançamento da biografia Padre Cruz, o Santo do Povo, das autoras Ana Catarina André e Sara Capelo, será no dia 17 de maio às 18h30 na Brotéria, em Lisboa. A obra conta com o apoio da Província Portuguesa da Companhia de Jesus e do Patriarcado de Lisboa.

Fotografia: Rodrigo Cabrita

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.