Os direitos de uma minoria silenciosa

Apesar de uma grande evolução, ignora-se frequentemente a vontade das crianças com a desculpa de que não sabem o que é melhor para elas, mesmo quando chegam à adolescência.

Apesar de uma grande evolução, ignora-se frequentemente a vontade das crianças com a desculpa de que não sabem o que é melhor para elas, mesmo quando chegam à adolescência.

Hoje, no Dia da Criança, devemos recordar e trazer para o debate público uma forma de discriminação tão antiga quanto discreta: a discriminação das crianças e jovens.

O estatuto da criança enquanto sujeito de Direito conheceu uma evolução que me parece ter sido bastante orgânica, mas muitíssimo lenta. Não sendo o propósito alongar-me sobre uma análise histórica da questão, convém recordar que as crianças eram inicialmente propriedade do pater familias, que dispunha até do direito a decidir sobre a vida das mesmas. Um longo e paulatino caminho é feito durante a Idade Média em que os sentimentos ligados à infância começam a surgir – veja-se a obra de Philippe Ariès (L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, 1973) – sendo que o conceito de criança só se autonomiza do de (mini) adulto, mais recentemente.

A partir do século XVII, parece-me que o conceito de criança foi muito moldado pelo liberalismo e neoliberalismo. O liberalismo exclui as crianças e jovens do pacto social bem como de toda a organização social: Locke, por exemplo, entende que a exclusão das crianças se deve ao facto de estarem “fora do domínio da lei da razão” (Second Treatise of Government, 1690).  De facto, além de facilitar a fundamentação do contratualismo, a exclusão das crianças enquanto sujeitos é consequência da separação entre privado e público. Entendendo o privado como um espaço de liberdade, poucas são as restrições impostas no seio da família ao poder paternal: tal constituiria certamente uma ingerência abusiva por parte do Estado (seja como legislador, seja como Administração).

De facto, além de facilitar a fundamentação do contratualismo, a exclusão das crianças enquanto sujeitos é consequência da separação entre privado e público. Entendendo o privado como um espaço de liberdade, poucas são as restrições impostas no seio da família ao poder paternal: tal constituiria certamente uma ingerência abusiva por parte do Estado (seja como legislador, seja como Administração).

Atualmente, muitos avanços foram feitos, nomeadamente no plano jurídico internacional. A inovadora Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), adotada pela ONU, veio propor uma alteração de paradigma, pondo o foco na criança e reconhecendo-a como sujeito e titular de um extenso catálogo de direitos. Esta Convenção inspirou a produção de legislação em vários países: veja-se o caso de Portugal, em que foi adotada a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147º/99).

Está, pois, claro que um grande caminho foi feito. Porém, ao contrário da maioria das conquistas sociais em que os avanços decorrem da mobilização da população discriminada, no caso das crianças, por razões evidentes, só existem avanços quando os adultos assim o determinam. Mas estará o estatuto desta minoria silenciosa consolidado de forma a responder às suas necessidades?

Porém, ao contrário da maioria das conquistas sociais em que os avanços decorrem da mobilização da população discriminada, no caso das crianças, por razões evidentes, só existem avanços quando os adultos assim o determinam. Mas estará o estatuto desta minoria silenciosa consolidado de forma a responder às suas necessidades?

A nível social, se é verdade que há, hoje, muito mais sensibilidade para a discriminação enquanto fenómeno sistémico que afeta pessoas em função do seu sexo, orientação sexual, etnia, religião, também é claro que o fenómeno de discriminação das crianças é bastante ausente das habituais discussões relativas a conquistas sociais. Note-se, também, a ausência da referência à idade enquanto categoria sobre a qual poderia recair uma suspeita de discriminação, mesmo ao nível da nossa Constituição: no artigo 13º/2, a idade não faz parte do catálogo de categorias em função das quais comummente são cometidas violações do princípio da igualdade. Veja-se que mesmo quando se fala de discriminações em função da idade é frequente falar-se da discriminação de idosos (fenómeno que também nos deve preocupar) mas não de crianças e jovens. Quer este silêncio dizer que a discriminação das crianças e jovens deixou de ser um problema?

Veja-se que mesmo quando se fala de discriminações em função da idade é frequente falar-se da discriminação de idosos (fenómeno que também nos deve preocupar) mas não de crianças e jovens. Quer este silêncio dizer que a discriminação das crianças e jovens deixou de ser um problema?

É difícil falar de discriminação das crianças porque existe um critério objetivo que determina que estas gozem de menos direitos: com uma menor maturidade, têm, também, uma menor capacidade para exercer os seus direitos. Porém, essa diferença, que justifica, efetivamente, uma distinção no tratamento da criança face ao do adulto, não pode justificar toda e qualquer distinção nesse tratamento.

Parece-me que o fenómeno de discriminação das crianças tem um impacto mitigado no que toca à legislação, mas faz-se sentir intensamente nas práticas sociais que continuam a ser adotadas e validadas. Apesar de uma grande evolução, ignora-se frequentemente a vontade das crianças com a desculpa de que não sabem o que é melhor para elas, mesmo quando chegam à adolescência. Aceitam-se comportamentos perfeitamente humilhantes ou degradantes no âmbito da educação, comparando-se alunos ou expondo aqueles que têm um pior desempenho escolar. Descredibiliza-se crianças que relatam situações de abuso pelas quais passaram, com o argumento de estão a inventar ou de que interpretaram mal um certo comportamento ou gesto. Ouve-se frequentemente apologias ao cometimento de ofensas à integridade física contra crianças, afirmando-se, por exemplo, que a ausência de violência (vulgo “falta de estalo”) leva à má-educação.

Todos estes exemplos são referentes a uma sociedade – a nossa – em que a cultura do Cuidado está, ainda, por construir. Não falta tudo e muitos passos têm sido dados, mas não tratamos, ainda, as crianças com todo o respeito que lhes é devido, continuando a discriminá-las, permitindo que haja atitudes para com elas que chegamos até a criminalizar quando referentes aos adultos. E tudo isto, não porque têm menos maturidade ou competência, mas apenas porque têm menos idade.

Construamos, então, comunidades cada vez mais seguras e acolhedoras, onde as crianças e jovens possam ser cuidadas e bem tratadas, sem terem de esperar pela maioridade para que assim seja.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.