1. Como mel para a boca
Começamos com Elvis, que canta The Old Rugged Cross. Quando “o King” canta ao Rei, dá nisto:
«Nesta velha cruz tosca, manchada de um sangue divino
Vejo uma beleza maravilhosa
Porque o Cordeiro, amado de Deus, abandonou a glória do Céu
Para me perdoar e santificar»
♪ ♫ ♬
2. Um texto bíblico
«Quando chegaram a um lugar chamado Gólgota, isto é, “Lugar do Crânio”, deram-lhe a beber vinho misturado com fel; mas Ele, provando-o, não quis beber. Depois de o terem crucificado, repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte. Ficaram ali sentados a guardá-lo. Por cima da sua cabeça, colocaram um escrito, indicando a causa da sua condenação: “Este é Jesus, o rei dos Judeus.” Com Ele, foram crucificados dois salteadores: um à direita e outro à esquerda.
Os que passavam injuriavam-no, meneando a cabeça e dizendo: “Tu, que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és Filho de Deus, desce da cruz!” Os sumos sacerdotes com os doutores da Lei e os anciãos também zombavam dele, dizendo: “Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo! Se é o rei de Israel, desça da cruz, e acreditaremos nele. Confiou em Deus; Ele que o livre agora, se o ama, pois disse: ‘Eu sou Filho de Deus!'” Até os salteadores, que estavam com Ele crucificados, o insultavam.
Desde o meio-dia até às três horas da tarde, as trevas envolveram toda a terra. Cerca das três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: Eli, Eli, lemá sabactháni?, isto é: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?
Alguns dos que ali se encontravam, ao ouvi-lo, disseram: “Está a chamar por Elias.” Um deles correu imediatamente, pegou numa esponja, embebeu-a em vinagre e, fixando-a numa cana, dava-lhe de beber. Mas os outros disseram: “Deixa; vejamos se Elias vem salvá-lo.” E Jesus, clamando outra vez com voz forte, expirou.
Mateus 27, 33-50
3. O esclarecimento
Vamos terminar as nossas contemplações do Tempo de Quaresma (no próximo domingo já é Páscoa!) com o Cristo na Cruz de Zurbarán:
Minimalista, a composição dá ao tema uma força particular. Seguindo as recomendações da Reforma Católica, Zurbarán pinta apenas Cristo, num ambiente despojado, que convida ao recolhimento e à contemplação — em vez de o pintar rodeado de Maria, das outras personagens ao pé da Cruz ou dos anjos, como se fazia até então. O fundo preto destaca isto mesmo: somos imediatamente conduzidos para o centro da composição.
Cristo é aqui ao mesmo tempo um ser humano que está a morrer e um deus de uma plasticidade perfeita e inalterável.
Beleza do traço, harmonia do todo:
- Os traços do rosto são finos e acentuados;
- Cada músculo aparece perfeitamente definido, quando o linho branco, habilmente amarrado à volta da cintura, evidencia o tom ligeiramente acastanhado da carne.
A vida parece ainda reinar em todo o quadro…
| Disse… “Reforma Católica”? |
Muitas vezes chamada «Contra-Reforma» (nome forjado pelos historiadores protestantes no século XIX), é a renovação da Igreja Católica durante o século XVI, estimulada pela Reforma Protestante.
| Um Rei “às avessas” |
René Girard é um dos pensadores franceses mais influentes do século XX. Membro da Academia Francesa, foi professor durante muito tempo na Universidade de Stanford, onde morre em 2015, com 91 anos.
Segundo René Girard, pela primeira vez na História, a Paixão de Cristo revela o mecanismo da violência social, com a sua inevitável dinâmica: aquele que é condenado é ao mesmo tempo detestado como causa do mal e venerado, porque, carregando sobre si o pecado – como um bode expiatório – livra a comunidade do mal.
Esta figura do condenado é muitas vezes representada pelo Rei, figura sagrada, com toda a ambivalência do termo: ao mesmo tempo venerada e temida. O exemplo de Cristo na Cruz é, segundo Girard, a ilustração típica desta imagem: o que vemos é um Rei, mas revelado através de um processo paradoxal:
- Portador de um manto de cor real – no Ecce Homo – o Rei é despojado da sua veste;
- Coroado… mas de espinhos;
- Tem uma vara por cetro, com a qual é açoitado;
- Aclamado como Rei, no título da Cruz, é venerado com genuflexões, por entre aclamações de escárnio e de ódio.
Segundo Girard, é o mecanismo da violência social que despoleta este processo. Trata-se de um fenómeno espiritual, onde a irracionalidade toma conta da multidão, que faz recair sobre uma vítima toda violência e todo o mal da comunidade.
Ao insistir na absoluta inocência de Jesus, a vítima levada como Cordeiro ao matadouro, os evangelistas desmascaram este processo e mostram até que ponto é injusto este mecanismo de violência pela violência, abrindo um novo espaço de liberdade na luta contra o mal.
4. E ainda uma palavra final…
Zurbarán não pinta a Virgem aos pés da cruz, mas o evangelista João diz-nos que ela estava lá (Jo 19, 25-27). Para fechar com chave de ouro a nossa Quaresma, vamos acompanhar Maria com Charles Péguy…
(vale a pena ler com emoção até ao fim!)
«Também ela subira, subira,
Por entre a multidão, algo escondida,
Subira ao Gólgota… Até ao Gólgota.
No cume, até o cume
Onde Ele estava crucificado agora…
Pregado… como ave noturna na porta de um celeiro.
Ele, o Rei de Luz …
[…]
Ela sentia tudo no corpo d’Ele, especialmente o sofrimento…
No corpo d’Ele como no seu próprio;
Sentia o corpo d’Ele como sentia o seu,
Porque era mãe,
Era uma mãe,
Era a Sua mãe…
Mãe pelo Espírito e mãe carnal,
A que o tinha amamentado…
Ele tinha uma cãibra,
Sobretudo, Ele tinha uma cãibra, uma cãibra terrível,
Por ter de ficar sempre na mesma posição…
Ela podia senti-la, ao vê-lo assim, forçado a estar nessa insuportável posição…
Uma cãibra no corpo inteiro, e o corpo inteiro a pesar sobre as Suas chagas,
E também ela tinha cãibras, sentia o quanto Ele sofria,
Sabia o quanto lhe doía…
Ela tinha dores de cabeça e doía-lhe o flanco e as chagas d’Ele…
E Ele dizia para si mesmo: “Aqui está minha mãe… o que fiz dela?”»
Charles Péguy, Le Mystère de la charité de Jeanne d’Arc,
Paris: Club du meilleur livre, 1956
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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