Já quase se desvaneceram as emoções que os meios de comunicação despertaram na nossa consciência coletiva após a descoberta de 39 pessoas mortas por sufocamento num camião encontrado num parque industrial da região inglesa de Essex, não muito longe de Londres. Este não é, infelizmente, um caso raro num mundo em que o tráfico de seres humanos se converteu numa atividade vulgar e quotidiana. Até diante das nossas portas, ainda que sob formas quase invisíveis ou que nós pretendemos não ver. Apesar de ouvir falar bastante neste infernal comércio no trabalho que desenvolvo na Secção Migrantes e Refugiados da Santa Sé, as palavras de certa Irmã, muito empenhada no combate ao tráfico em Portugal, fizeram-me mossa quando as escutei há uns meses, precisamente no lançamento de um livro sobre o tráfico de pessoas: “Aqui mesmo nesta rua [era, naquele caso, a Calçada do Combro, em Lisboa], há certamente neste preciso momento, atrás de alguma janela, alguém que espera, transido/a de medo, por não saber exatamente onde está, para onde o/a vão levar, o que lhe vão fazer… Mais uma das muitas vítimas do tráfico que está a acontecer agora aqui na cidade de Lisboa, sem (quase) ninguém ver, sem dele (quase) ninguém se aperceber…”.
O Papa Francisco atribui uma enorme importância a este drama de milhões de pessoas que são objeto de tráfico e escravizadas de diversas formas no mundo contemporâneo. A este assunto tem regressado em inúmeras ocasiões. As palavras de condenação que Francisco tem dirigido ao tráfico de seres humanos são muito duras: este é um “flagelo atroz” (03/04/2017), uma “chaga aberrante” (30/07/2017) e uma “ferida no corpo da humanidade contemporânea” (10/04/2014).
Este é também um fenómeno muito complexo, com formas muito variadas e em permanente mutação, tanto no que diz respeito às suas vítimas, aos perpetradores, aos percursos e esquemas utilizados. Para dar apenas um exemplo, acabo de ler um relato da existência de um crescente número de africanos – estamos habituados a pensar que são só os migrantes latinos a fazê-lo! – que cruzam a América Latina às mãos de traficantes e contrabandistas na esperança de chegar aos EUA; muitos simplesmente morrem de exaustão pelo caminho, afogam-se a atravessar os inúmeros rios da região ou acabam em centros de detenção desprovidos das mínimas condições ou a viver nas ruas das cidades do estado mexicano de Chiapas.
A ardente compaixão do Papa para com as vítimas deste comércio e os seus repetidos apelos a um maior compromisso em favor delas por parte da Igreja levaram a Secção Migrantes e Refugiados a encetar um processo de consultas com organizações parceiras empenhadas nesta luta e representantes de Conferências Episcopais de todo o mundo. É esse o fundamento das Orientações Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas (OPTP), que pretendem ser uma resposta da Igreja Católica a este drama e uma sua proposta para a reflexão e ação de quantos se sentem interpelados.
O propósito das OPTP é triplo e visa proporcionar:
● uma leitura do tráfico: por que é que a perversidade do tráfico de pessoas persiste no séc. XXI? Como é que ele pode permanecer tão oculto?
● uma sua compreensão: como é que se processa este repugnante e malévolo negócio do tráfico de pessoas?
● e orientações para a ação para uma muito necessária luta que perdurará por muito tempo: o que poderá ser feito para mitigar e eliminar o tráfico de pessoas? Como é que isso poderá ser melhor feito?
Tendo em consideração as diversas áreas em que as vítimas do tráfico de pessoas trabalham ou operam (agricultura, trabalho doméstico, prostituição e outras), os consumidores constituem uma enorme massa que parece estar em grande medida inconsciente da exploração a que são submetidas as pessoas que são traficadas, embora disfrutem dos benefícios e serviços por elas prestados.
As OPTP procuram analisar os factos cruéis e os desafios suscitados por este impiedoso fenómeno. Sugerem-se uma variedade de respostas, agrupadas em quatro capítulos e dez secções. Cito os títulos apenas dos quatro capítulos: “Entender o tráfico de pessoas: as causas”, “Reconhecer o tráfico de pessoas”, “As dinâmicas do tráfico de pessoas: um negócio repugnante e malévolo” e “As respostas ao tráfico de pessoas: margem para melhorar”. Tudo isto porque, como afirma o Papa Francisco, “a Igreja Católica pretende intervir em cada fase do tráfico dos seres humanos: quer protegê-los do engano e da sedução; quer encontrá-los e libertá-los quando são transportados e reduzidos em escravidão; quer assisti-los quando forem libertados” (12/02/2018). E, de facto, não podemos ignorar o muito que é já feito, não só por congregações religiosas femininas (com especial destaque para a Rede Talitha Kum), mas também por paróquias, ONG e instituições católicas para proporcionar a quem foi apanhado pelo tráfico a oportunidade de estabelecer um primeiro contacto, buscar ajuda para escapar, encontrar acolhimento e segurança básica e poder dar os primeiros passos para a libertação e reabilitação.
Não é possível, no âmbito deste breve artigo, apresentar uma síntese, por mais sucinta, das referidas dez secções. Refiro-me tão só à segunda delas, “o aspeto da procura”, uma vez que questiona a responsabilidade de todos nós, consumidores, como causa da existência do tráfico: “No debate público, dá-se muita atenção aos traficantes que são responsáveis pelo fator da oferta do tráfico de pessoas, embora poucos sejam presos e ainda menos sejam condenados. Pouco se diz dos consumidores: o fator da procura, a que os traficantes continuam a dar resposta. Tendo em consideração as diversas áreas em que as vítimas do tráfico de pessoas trabalham ou operam (agricultura, trabalho doméstico, prostituição e outras), os consumidores constituem uma enorme massa que parece estar em grande medida inconsciente da exploração a que são submetidas as pessoas que são traficadas, embora disfrutem dos benefícios e serviços por elas prestados. Se há homens, mulheres e crianças que são traficados, tal deve-se, em última análise, ao facto de haver uma grande procura que torna a sua exploração rentável” (OPTP, 20).
Não esqueçamos ainda como as meninas e as mulheres são especialmente vulneráveis às malhas tecidas pelo tráfico de pessoas. O Sínodo para a Amazónia, recentemente terminado, não deixou de recordar que a “feminização da migração […] torna milhares de mulheres vulneráveis ao tráfico humano, uma das piores formas de violência contra as mulheres e uma das mais perversas violações dos direitos humanos” (Documento Final, 13).
O objetivo último das OPTP é o de desmantelar e erradicar este empreendimento extremamente malévolo e repugnante de engano, aprisionamento, domínio e exploração. Afirma ainda o Papa Francisco que “esta obra imensa, que exige coragem, paciência e perseverança, tem necessidade de um esforço comum e global por parte de vários protagonistas que compõem a sociedade” (07/05/2018). Esperemos que este documento possa ajudar a Igreja a desempenhar o seu inestimável papel neste combate.
Fotografia de capa: Annalisa Vandelli
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.